livro. uma rosa pela manhã

livro não editado

 


 

 

Uma Rosa pela Manhã

 

Autor: Roberto Marcos.                                  

 

 

I.

 

O bairro ficava no alto duma colina. Eram 7 Torres, cada uma com vinte andares e nelas habitavam pessoas de todas as raças ecredos.Havia Torres de quase todas as cores. Era um verdadeiro arco-íris feito de cimento,circundadopor um caminho deplorável. Os passeios estavam esburacados, as árvores tombadas e, os candeeiros,destruídos, completavam o mobiliário urbano. As árvores, outrora viçosas, resistiam heroicamente àdegradação generalizada.Tudo estava desmazelado.

Quase ao centro,aquilo que outrora fora um parque de diversões, era agora mais um local onde os viciados consumiam e entre as altas torres, havia um complexo de corredores, quais labirínticas galerias onde graúdos e jovens se digladiavam por um metro quadrado onde pudessem drogar-se sem serem importunados.

Não muito longe, na escola básica,que funcionava alheada dos problemas e conflitos locais, O abandono escolar era uma triste realidade. Contudo, havia sempre alguém que destoava da maioria. Alguns pequenos heróis, quais bravios soldados,resistiam a silenciosa guerra. Tratava-se de rapazes e raparigas que,embora vivendo rodeados de lama,apesar de tudo, não se sujavam. Eram umas Bravias e obstinadas almas que interiorizaram os alvitres dos mais velhos e usaram-nos como lema para a vida.

Odesprezível bairro, projectadopor um dos mais afamadosarquitectos,transformara-se num antro de perdição!Longe de imaginar estava ele que suas noites em claro resultariam num dos mais mal-afamados bairros de Portugal.

- Não,não era esse o meu propósito - disse ele um dia.

Claro que ninguém ousava dizer o contrário. Quem projectaria um bairro para bandidos? O certo é que se transformou num covil de lobos, de alcateias devoradoras de almas,onde gente sem escrúpulos vivia a conta das raparigas e rapazes que lhes compravam a morte em pequenas doses diárias,num lugar onde pais choravam de joelhos o falecimento dum filho que se havia vergado perante a rainha de todo o mal: a heroína. Ecoavam gritos de angústia, carpiam mães e pais, choravam amigos.Lamentavam-se todos os que ainda resistiam a maldita.

O poeta escreveu:

“Vi a morte em tons de castanho…

Vestia-se de luto a malvada!

Não tinha face, nem tamanho,

Roubava tudo,

Não dava nada.”

Jornais escreveram sobre a maneira como fora construído e a forma calamitosa como foi habitado. Várias televisões estrangeiras visitaram o malfadado bairro. Era preciso perceber como é que em tão pouco tempo um bairro passou dum magnífico empreendimento para um antro de delinquentes!Um exemplo a não seguir, concluíram quase todos os meios de comunicação social.

Teve-se quase tudo em conta,mas não se percebeu que as pessoas que o iam habitar era gente que até então vivia em fétidos bairros de lata.

Claro que os governantes a época tentaram sacudir a água do capote,mas era demasiado evidente que havia sido mandado construir a pressa e, como se dizia, para inglês ver!

Como quase sempre acontecia aquando de grandes obras públicas, haviagrandes discrepâncias entre o custo final da obra e o valor do orçamento inicial. Essa época ficou conhecida como a época dos sacos azuis. Ilustres membros do executivo, quais D.Sebastiões, apareceram no Governo para logo se escapulirem,após alguns escândalos financeiros, tudo isto como resultado do muito dinheiro que entrava. Mas todos ficaram mais ou menosincólumes. Fez-se uma remodelação governamental e tudo foi rapidamente esquecido.

Era dinheiro a mais para ser desperdiçado na construção de bairros para os desgraçados. Subtraía-se uma coisinha aqui, outra ali e ninguém daria por nada. Foi assim que, como cogumelos, nasceram novos e bem-sucedidosempresários,homens e mulheres que até então ninguém sabia que existiam, muito menos que eram donos de grandes fortunas.

O povo dizia que a vaca do estado era suficientemente gorda para alimentar os gulosos do governo.

Na verdade e não sendo uma exclusividadeportuguesa, os políticos transformaram-se numa matilha de cães. Ano após ano, de forma mais ou menos encoberta, foram-se criando grupos de pessoas com um único intuito: governar-se e não governar!

Como um rebanho de pacíficas ovelhas comandadas por maus pastores, o povo português deixou-se ir no canto da sereia. Conhecido pelosseus brandos costumes, ia sobrevivendo, à mercê das vontades de meia dúzia de delinquentes que subiram ao poder, não por mérito próprio mas, sim, por fazerem parte duma quadrilha que foi magicada com o único propósito de se alimentar da rechonchuda vaca!

Morre o pai, sobe o filho;morre o tio, surge o sobrinho;reforma-se o avô, substitui-se pelo neto! Depois…, bem, depois, as obras públicas fazem-se com a vigilância da raposa que, pacientemente, guardava o galinheiro.

Foi mais ou menos assim que se fez a feira internacional na zona oriental de Lisboa, para gáudio dos governantes da altura. Enterraram-se milhões e milhões, roubaram-se outros tantos…Mas, que interessava isso, se Portugal,no final,se mostrava de cara lavada?

Depois da universal feira, a vida teria de prosseguir e, quanto aobairro, já que fora construído e habitado, só restava que as autoridades locais o mantivessem mais ou menos limpo, mais ou menos longe de conflitos, mais ou menos fora das notícias dos jornais. Masessa era uma tarefa quase impossível.

O Presidente da Junta, homem do povo, desdobrava-se em cuidados para o manter limpo, arranjado, de boa cara. Mas não só não o conseguiu como, pouco tempo depois,quase desistiu de gastar com ele o orçamento da autarquia, já de si anémica. Entendeu por bem desviá-lo para casos que valessem realmente a pena mas, apesar de todos os seus esforços, de toda a sua boa vontade, foi como que obrigado a retomar a complicada empreitada de conservaro bairro que todos conheciam como o covil dos lobos, num bairro aprazível.

Júlio estava de pés e mãos atados. Se desobedecia aos cabecilhas do Partido, provavelmente o seu nome seria retirado das listas das próximas eleições. Assim sendo, contra a sua vontade, gastava o que tinha e o que não tinha no malfadado bairro.

- Isto é deitar dinheiro fora! Esta gente é como animais! Hoje coloca-se um baloiço no parque e no dia seguinte só resta o lugar -dizia.

Noentanto, foi fazendo o que os graúdos do Partido lhe ordenavam.

“É imperioso que o covil dos lobos seja esquecido,pelo menosaté as eleições”, disse-lhe um dia o Secretário-Geral do Partido.

Mas Júlio não se sentia bem consigo próprio. Não gostava de ir contra os seus princípios. Por esse facto e não obstante toda a lealdade ao Partido, no que concernia ao terreno propriamente dito, fazia o contrário. Não desperdiçaria mais o parco dinheiro da junta em baloiços ou bancos de jardim, uma vez que havia situações, problemas muito mais aflitivos. Assistiatodos os dias a casos de arrepiar.

Com a ajuda do Gabinete para a Prevenção e Contra as Drogas, instalado pela Segurança Social numa das muitas ruas do bairro, era convidado a deslocar-se todos os dias a certas casas. Era uma diligência que não lhe competia, contudo, alinhava sempre. O que ia lá fazer? Junto dum guarda, ladeado por duas meninas do Gabinete, procuravafazer com que moços e moças, alguns ainda crianças, quisessem, enquanto fosse possível, largar as drogas e fazer uma cura. Porvezes era tarde demais. Deparou-se inúmeras vezes com a morte por overdose. Aquilo mexia com o mais ingrato dos sentimentos: a impotência! Impotência por a luta ser desigual. Impotência porque nada seria feito sem o consentimentopróprio, caso se tratasse dum adulto.

Quanto as crianças, almas apanhadas no fogo cruzado duma guerra sem quartel, eram levadas para lares da Segurança Social. Poucos, muito poucos, se regeneravam. Passado o prazo, atingida a maioridade, regressavam quase sempre a pocilga em que haviam nascido.

Falava-se de culpados. Nobres sociólogos, ilustres pensadores, cidadãos instruídos, todos tinham o milagroso elixir, a poção mágica. Mas, qual deles estaria certo? Essa era a pergunta de um milhão. Dividir os moradores por etnias, integrar alguns deles em locais mais civilizados ou, simplesmente, colocar um polícia em cada esquina, eram as propostas. Ora, o Governo tudo ouvia, todos escutava mas,quanto a agir, nem por isso. Então, resolveu criar uma comissão que ficaria encarregada de estudar o problema.Velhos hábitos... Quando se queria empurrar com a barriga, criava-se uma comissão. Quando se queria deixar a batata quente para os que viessem de novo, mais uma comissão. Eram comissões para aqui, comissões para ali…, enfim, uma trapalhada.

 

 

 

 

II.

 

A leste dos devaneios governamentais, despreocupados com que o governo legislava, mais ou menos tranquilos com o que tinham, vivia a família Marques. Era uma família de duas pessoas:a mãe Rosa e o seu querido filho Fábio.

Vítima da droga em virtude de seu marido ter falecido por overdose, Rosa viu-se viúva aos 33 anos de idade, com um filho de apenas 6 meses nos braços. Contudo, a obstinada mulher não cedeu perante a adversidade. CriouFábio sozinha. Transmitiu-lhe todos os seus preceitos, ensinou-lhe qual o lado certo da estrada. Foi com muito amor mas também rigidez, quando era preciso, que Fábio cresceu e se fez um lindo homem, o orgulho de sua mãe.

O dia tão aguardado chegara finalmente: Fábio completara o secundário! Rosa desdobrava-se na cozinha.Naquele dia havia rancho melhorado.Seu filho terminara os estudos obrigatórios como o melhor da turma! Retirou debaixo do colchão uns dinheiritos que vinha guardando para alguns imprevistos. Seu coração de mãe rejubilava de orgulho. “Valera apena sofrer o que sofrera para lhe dar todas as condições”, pensou, junto do fogão.

Tinha pedido um dia de folga. Não era fácil. A coordenadora responsável pela área em que trabalhava, no supermercado, não era mulher de ceder por dá cá aquela palha,mas Rosa era uma das suas melhores subordinadas,pontual, buliçosa, uma verdadeira formiguinha.

- Claro, querida- disse-lhe,sorrindo. - O que haverá de mais importante que os filhos?- acrescentou.

Era graças a dona Matilde e à sua generosidade que podia fazer uma surpresa ao seu filhote.

A pequena sala, simples mas brilhando de limpa,foi o local escolhido. Avisara os vizinhos debaixo, amigos de hámuito, quechegassem uma hora antes de Fábio.Tudo teria de parecer perfeitamente surpreendente.

Carlos, filho do casal Medeiros, era como um irmão para Fábio. Ele também tinha sido alertado:

- Nem penses em abrir o bico!- avisou-oRosa.

Carlos não era tão dedicado aos estudos. Seus pais queixavam-se muito a Rosa.

- Só quer namorar. Sai cedo, entra as tantas, enfim…Tiveste muita sorte, querida - dizia-lhe Lurdes, mãe de Carlos.

Quanto ao seu marido, homem de bom coração, porém de ar austero, só sabia ameaçar.

- Não sei, querida - confessou Lurdes,certo dia, a Rosa. - Qualquer dia passa-se da marmita e mata-me o filho!

- Fernando? Não! Ele adora o filho - respondia-lhe Rosa.

- Não sei, querida, não sei mesmo, querida - concluía quase sempre Lurdes.

Quanto ao seu filho, era aquilo a que se podia chamar dum salta-pocinhas. Carlos nunca gostou da escola. Ia porque era obrigado.

- Se somos um país democrático, devíamos poder escolher entre ser analfabetos ou instruídos- gostava de dizer.

- Cala-me essa boca,ignorante! Não sabes o que dizes. Preferias trabalhar nas pedreiras?

Fernando não suportava aquele tipo de comentário.

- Se ganhasse bem, qual é o mal?- respondia-lheo seu filho. - O pai é estivador e ganha bem, não é?

- Mas eu não tive escolha! Só ganho bem agora.No início, trabalhava de sol-a-sol para ganhar uma miséria!

As discussões iam invariavelmente desembocar nos estudos. Mas apesar das vozes exaltadas, uma aparente agressividade,tudo acabava bem. Fernando adorava o seu filho. Se discutia, se ficava alterado, isso não era mais do que uma tentativa de o alertar para os riscos de não se ter estudos. Ele estava apar das dificuldades de quem procurava trabalho. Até para se ser estivador, um emprego para onde antigamente se podia entrar sem qualquer habilitação, era preciso ter o 12º ano de escolaridade.Noutrostempos,quando atecnologia não passava de uma quimera,os analfabetos tinham sempre trabalho. Não era necessário grandes estudos para se cavar terra. Não era indispensável saber línguas para se pescar. Não era necessário saber matemática para cozinhar. Fundamental, sim, era ser-se saudável, robusto e,principalmente, trabalhador quanto baste!

- Não sei o que aquele rapaz quer da vida - comentava Fernando com Lurdes, muitas vezes.

- Ele muda, homem. Ele muda - repetia sua esposa, sem grande convicção.

- Espero que tenhas razão. Senão, acho que vamos ter um desgosto.

LURDES NÃO PENSAVA de modo DIFERENTE. Andava muito preocupada com o seu filho. A idade ia avançando e ele nada de criar juízo! Por isso é que dizia muitas vezes a Rosa que ela tinha muita sorte.Fábio era um rapaz muito atinado.

Lurdes tinha uma admiração desmedida por Rosa. Sabia o caminho de pedras que ela teve de ultrapassar até a sua vida, por fim, normalizar. Teve de socorrê-la muitas vezes quando Gustavo a agredia. Foram várias as ocasiões em que foi obrigada a chamar a polícia e foram várias as vezes em que teve de a abrigar em sua casa,pois Gustavo entrava em desnorte com a falta da maldita droga.Rosa, um dia antes de Gustavo falecer, chegou a apanhar uma coça dele, era Fábio ainda bebé.

Não era por acaso que Lurdes a admirava tanto. Tinha muito orgulho em ser sua amiga. Rosa, além de ser uma mulher muito bonita, era dotada de um coração e de uma benevolência fora do comum.

Deixada num convento, Rosa foi lá criada e educada até aos 18 anos, idade em que conheceu Gustavo, para mal dos seus pecados.

Mas o rapaz,naquela época não consumia. Era um bom aluno, simpático, filho de gente abastada e muito influente. Mas, infelizmente, o dinheiro não previne desgraças. Muitas das vezes, até as agrava. Foi mais ou menos assim, o caso de Gustavo. Quando conheceu Rosa, apaixonou-se logo. Como ele, havia mais uma dúzia que gostaria de ter namorado com ela,contudo, foi Gustavo o escolhido pelo coração da bonita moça.

Passado um ano, felizes, cheios de projectos, os dois namorados resolveram que estavam preparados para o casamento. No entanto, tal ideia foi de imediato repudiada pela família do jovem, que fez questão de lhe dizer que não os procurasse enquanto não metesse juízo na cabeça. Como isso não aconteceu, nem ao seu funeral compareceram.

Masainda distantes da conturbada passagem do jovem Gustavo pelo mundo da droga, decididos, fosse contra quem fosse, os dois apaixonados contraíram matrimónio.Ambos largaram a escola,ambos procuraram emprego,ambos conseguiram-no,num curto espaço de tempo. Estavam a viver um verdadeiro conto de fadas. Tudo corria como o planeado, apesar da família de Gustavo se ter auto-excluído.

Começaram por arranjar uma barraca num dos bairros mais problemáticos da grande Lisboa.

- É só para começar - disseram.

Nos primeiros meses, tudo decorreu dentro duma certa normalidade.Todavia, a certa altura, Gustavo começou a chegar tarde a casa e a cheirar a álcool. Rosa estranhou, porém não o confrontou de imediato com isso. Só quando as coisas pioraram, quando constatou que ele já não ia para o emprego, resolveu intervir.Tarde demais! Gustavo já consumia heroína em grandes quantidades.

- Porque não me disseste que andavas na droga? Porque não me pediste ajuda? Não queres ajuda?

Foram muitas as perguntas mas as respostas foram, no mínimo, inconsequentes. Gustavo nunca lhe disse directamente que queria sair. Disse-lhe, sim, que a amava muito, que se tratava de uma fase difícil e que tudo se arranjaria. Nessa noite, já nessa noite, Rosa dormiu sozinha.

Entretanto, realizou-se a Feira Internacional deLisboa e, Comela,deu-se a ordem para acabar com os bairros de lata. Rosateria uma habitação condigna! Estava farta de ouvir tiros,de ver drogados a deambular pelo bairro em busca de algodões usados e de assistir à prostituição a céu aberto.

Gustavo metera-se no tráfico. Foi um ofício de pouca dura, pois não demorou muito até ser detido e condenado a três anos de cadeia.

Ora, alguns regeneram-se nas prisões. Muitos saem de lá como homens limpos de drogas. Contudo, a maioria sai pior do que entroue Gustavo não foi excepção. Quando saiu,aparentava melhorias mas tudo não passava de dissimulação.

Rosa ainda o amava. Não havia semana em que não o tivesse ido visitar à prisão.Dentro da ingenuidade de quem se esforça por acreditar, a bonita jovem cedeu e abriu-lhe novamente o seu coração.

- Vamos ser pais - anunciou Rosa, regressada do médico.

- Que bom, meu amor - foi a resposta de Gustavo.

- Só isso? “Que bom, meu amor”? Não foi isso que um dia planeámos?

Rosa achou-o muito frio. Recordou-se dos tempos em que, só porse falar em ter um filho, os olhos de Gustavo brilhavam de emoção.

No entanto, a gravidez decorreu sem grandes sobressaltos. Rosa fazia de conta que não sabia que ele estava novamente a consumir.

Gustavo, por seu lado e depois de saber que iria ser pai, resolveu procurar auxílio.Não podia ajudar a criar um filhonaquela situação.Tinha sido a primeira vez que pedira auxílio!Procurou os seus pais, até então afastados dele mas teve o maior desaire da sua vida. Não só não o ajudaram como ainda lhe pediram que os esquecesse!

- De nós, não levas nem um escudo!- disseram-lhe.

Nesse mesmo dia, depois de ouvir o que ouvira, consumiu pela noite dentro, até ao amanhecer.

Rosa preparava-se, pouco a pouco, para ser mãe mas também para encostar Gustavo à parede. Não aceitaria que ele vivesse debaixo do mesmo tetoenquanto estivesse a consumir.Seu rebento não assistiria a qualquer acto menos próprio. Então, o dia de todas as decisões chegara. Rosa confrontou-o:

- Ou vais curar-te ou sais daqui imediatamente!

Ela já havia perdido a esperança. Contudo, para sua surpresa, houve um milagre. Gustavo aceitou o veredictoe procurou a ajuda do Estado.

Regressou passados três meses, depois duma desintoxicação profunda, ainda atempo de assistir ao nascimento de Fábio.Depois…, bem…, depois, foram mais alguns meses de muita felicidade. Rosa, finalmente, começou de novo a acreditar em Gustavo. Na verdade, o jovem pai esforçava-se por não voltar às drogas. Empregou-se num restaurante e tudo parecia estar a entrar nos eixos,até ao momento em que Gustavo foi abordado por um antigo companheiro de cela.Malfadado dia. Rosa, nessa mesma noite, já teve de chamar a polícia. Gustavo entrou-lhe porta adentro, perdido de bêbado e cheio de heroína, conforme descaradamente lhe contou.

Rosa e o seu lindo bebé viviam já na nova casa que lhes havia sido atribuída.Era uma dádiva dos céus, como gostava de dizer.Contudo, Gustavo não lhe largava a porta. Não hádeixava em paz um só minuto.Rosa vivia os seus piores momentos. Lurdes e Fernando foram o seu suporte. Foram o seu porto de abrigo quando Gustavo a surpreendia em casa para lhe sacar dinheiro e, muitas vezes,à força!

O casal amigo também tinha vindo dos bairros de lata. Fernando pregava aos quatro ventos que viviam muito melhor anteriormente, naquilo a que eles chamavam de barraca.Não chovia,não havia ratos,a electricidade era ``a borla, enfim, era tudo melhor.

- Não diga isso,Senhor Fernando - respondia-lhe Rosa. - Como pode dizer uma coisa dessas?

- Que queres, filha, ele só não está no Júlio de Matos porque não há vagas - intrometia-se Lurdes.

Fernando pregava sozinho mas não era por estar só que deixava de o fazer, quando o assunto vinha a baila.

- Nos dias de chuva, tínhamos lama até aos joelhos. Não havia ratos? Só se fosse na sua casa, eram as centenas!

- Tens razão, querida - mais uma vez, intrometia-se Lurdes. - Ele sabe bem quantos apanhámos nas ratoeiras.

- Ratitos!

- Quais ratitos, senhor Fernando? Eram ratazanas velhas,maiores que gatos!

Ora, as duas mulheres, felizes por terem um teto , uma habitação condigna, insurgiam-se contra Fernando.Ele,lá no fundo,sabia queelas tinham razão mas gostava de as provocar.Uma questão de feitio.Então, eram recorrentes as altercações sobre o assunto: as saudades que Fernando tinha do bairro de lata!

Mas o que mais aproximava Rosa do casal, era a generosidade que ambos demonstravampara com ela. Fernando podia parecer duro mas não passava de um coração de manteiga.Lurdes era um tanto ou quanto metediça, mas sónãoajudava senãopudesse!Eles complementavam-se. Eram felizes dentro da diferença de género e de pensamento.Rosa era-lhes eternamente grata. Não fossem eles e a sua vida teria sido bem pior.

Gustavo foi encontrado morto no dia em que Fábio fazia precisamente seis mezinhos. Um dia muito triste para Rosa pois, afinal ela ainda o amava!

- Como podes chorar por ele? Não passa dum canalha!

- Não devemos condenar quem entra neste mundo. Todos temos filhos, todos temos direito à vida, todos temos as nossas fraquezas.

Lurdes ficava de boca aberta com as respostas de Rosa.

- Não sei como podes gostar duma pessoa que só te fez mal, querida.Finalmente vais viver em paz!

- Não, Gustavo não é criminoso mas, sim, a vítima. Perdoo-o do fundo do coração e desejo que Deus tenha compaixão de sua alma.

Lurdes nãopercebia mas respeitava o seu modo de pensar.

A poetisa dizia:

“Passaste por minha vida…

Foi raio flamejante!

Ficou uma ferida;

Um coração errante.

 

Deixaste teu sinal,

Tua marca dentro de mim;

Foste importante, especial;

Porque teve de ser assim?”

 

Depois da morte de Gustavo, Rosa dedicou-se em exclusivo ao seu rebento. Ninguém a viu com outro homem. Na verdade, Rosa não queria mais relacionamentos. Não sentia desejo pelo sexo oposto nem procurou ajuda nesse âmbito.Vivia para o filho. Ele era a razão do seu contentamento!

- Ó filha,tu és tão linda…Porque não arranjas outro homem? Um homem sério e que te trate bem!

Lurdes e mais duas ou três colegas de trabalho, não se cansavam de a incentivar,mas Rosa não estava para aí virada.Podiam dizer-lhe que era linda e gostosa,podiam dizer-lhe que fulano x ou beltrano y estava de olho nela, podiam fazer de tudo, mas ela não mudava de atitude.

Na verdade, Rosa era desejada e ela bem o sabia.O próprio chefe da loja onde trabalhava fartou-se de a convidar para sair, porém, sem sucesso.Como se dizia na gíria,deu com os burros na água!Depois,foiomoço dafarmácia que, após muitas tentativas, acabou por desistir.Mais dois ou três ainda arrastaram a asa para o seu lado, todavia, tudo foi infrutífero. Rosa sentia-se bem assim e, como estava bem, não queria mudanças na sua vida.

- No futuro, só Deus saberá - dizia ela às pessoas mais chegadas.

Rosa   era tudo menos triste. Acreditava em Deus e na sua palavra, Fazendo dos caminhos do Senhor o seu desígnio.

Fábio foi surpreendido ao entrar em casa. À sua espera estavam todos os amigos mais chegados e a sua mãe, rejubilando de felicidade. Foram momentos únicos para o jovem. Afinal, estava rodeado daqueles que mais amava. Sua mãe, a cabeça e, o maluco do Carlos e seus estimados pais, logo a seguir.

 

 

 

 

III.

 

Quando cruzou os portões da escola pela última vez, Fábio respirou fundo e, sorrindo, murmurou:

- Finalmente poderei ajudar a minha mãe.

Ele sabia muito bem que ela não aceitaria a sua decisão e iria fazer de tudo para o demover, mas estava firme na sua posição.Não cederia! Estava ciente das dificuldades que Rosa passava, só para lhe dar todas as condições. Sabia que aquilo que ela ganhava mal dava para sustentar a casa, o que faria, se ainda fosse pagar-lhe a universidade. Não!Não podia assistir à degradação física da sua mãe.Vinha notando que ela já nem se cuidava, pois tudo quanto conseguia amealhar tinha um único destinatário: o seu filho.

Fábio tinha tomado essa decisão já há algum tempo,desde o dia em que a viu debruçada sobre a mesa da cozinha, chorando.Por sorte, tinha acordado com vontade de ir à casa-de-banho e, sem que ela tivesse dado pela sua presença,deixou-aadormecer e foi espreitar,procurando o motivo das suas lágrimas. Então,verificou que, sobre a mesa, havia uma carta duma empresa que concedia empréstimos pessoais,uma daquelas que levam quase tanto de juro como de prestação. Foi naquele preciso momento que tomou a firme decisão:

- mamã, vou tirar-te deste sofrimento! – pensou.

Era doloroso ver o estado deprimente de sua mãe. Não se vestia em condições, seu lindo cabelo loiro estava muito maltratado, seu rosto angelical, cheio de pequenas manchas, precisando com urgência duma limpeza, enfim,aparentava ser mais velha do que na realidade era. Mas isso iria mudar!

- Obrigado a todos. A sério, muito obrigado.

Fábio, depois dos agradecimentos, pediu que ficassem mais um pouco.Tinha algo a revelar. Rosa não tirava os olhos dele. Seu brando coração quase rebentava de tanta felicidade. Seu filho ia anunciar que iria entrar na universidade, era óbvio.

- Mamã, meus queridos vizinhos, tomei uma decisão, já há algum tempo. Terminada, por fim, a escolaridade obrigatória, decidi que a partir de hoje vou…

- Boa, filho! - Rosa não se conteve.

- Mamã, ouve até ao fim, por favor!

Rosa tapou a boca.

- Como estava a dizer - prosseguiu Fábio -, decidi que a partir de hoje começo a procurar trabalho.

Os olhos azuis de Rosa arregalaram-se.Todas as atenções estavam agora viradas para ela.

- Mas, filho… Tu prometeste-me!

- Desculpa mãe,por ter quebrado a promessa - declarou Fábio.

O casal Medeiros verificou que aquele assunto não era para ser discutido na sua presença e, então, apressou as despedidas. Carlos foi o único que ficou feliz.

- Boa decisão, camarada!

- Obrigado - agradeceu Fábio.

Depois de os vizinhos terem saído, Fábio precisava de explicar à sua mãe o porquêdaquelacambalhota.

- Senta-te aqui, mãe - pediu-lhe Fábio, batendo com a mão no sofá.

- Ó filho, tanto esforço para nada!

- Não te lamentes,por favor, mãe!Não faças isso. Não podia mais assistir a esta situação.

- Qual situação, filho? Mas, falta-te alguma coisa, querido? Diz-me que eu compro, meu amor.

Fábio não queria acreditar. Endividada até aos cabelos, mas estava sempre pronta a ajudar.

- Mãe, tu és única - disse-lhe ele, de voz embargada.

- Senta-te aqui - insistiu Fábio.

Rosa acedeu. Fábio pegou nas suas mãos estragadas e levou-as à boca.

- Mãe, diz-me uma coisa:

- Queidade tens?

- Filho, tu sabes a minha idade!Para quê isso agora?

- Que idade tens?

- 39 anos, filho - respondeu-lhe Rosa.

- Olha bem nos olhos do teu filho - pediu Fábio.

- Tens uns olhos lindos, filho - observou.

- Abre bem os ouvidinhos, tontinha - disse-lhe Fábio.

- Vou trabalhar, queiras tu ou não. Vou-te ajudar a pagar o empréstimo!.

- Qual empréstimo, filho?

- Não te faças de desentendida comigo!

Rosa baixou a cabeça.

- Como soubeste?- murmurou.

- Não interessa.O que interessa é que tu não mereces ficar endividada por causa de mim -, asseverou seu filho.

- Aquilo paga-se bem.

- Mãe! Pára! Não te massacres mais!

- Não te zangues, filho, foi para teu bem - disse-lhe Rosa.

- Mãe, eu não estou zangado contigo mas, sim, comigo!

- Contigo? Como assim?

- Eu não podia ter te deixado chegar a esse ponto. Estás um bagaço! Não te cuidas mais, pareces mais velha do que és!

- Não procuro namorado.

- Mãe, olha para mimnovamente, por favor.

Rosa levantou a cabeça e fez o que Fábio lhe pedira.

- Tu és linda! Não por seres minha mãe mas porque na realidade o és! Tens de começar a viver um bocadinho para ti também, não achas?

- Gostava tanto de te ver formado, filho - confessou Rosa, tristemente.

- Eu estou bem formado.Olha para este cabedal - gracejou Fábio.

Rosa esboçou um ligeiro sorriso.

- A partir de hoje, aqui, não se fala mais em estudos, ok?

Rosa abanou a cabeça em concordância e Fábio deu-lhe um abraço apertado.

 

 

 

 

IV.

 

- Meu caro Júlio, sempre julguei que me tivesses em boa conta.

Júlio tinha sido chamado ao gabinete do Secretário Geral do partido. Este, naturalmente, já estava a par do que ele fazia…Ou melhor, do que não fazia!A política é como as vizinhas: quem mais mexerica,mais vasculha, mais consideração merece por parte do chefe. O que seria de um bom governante sem os quadrilheiros?São pessoas muito úteis. Pequenas ratazanas que se movimentam agilmente entre a superfície e o subsolo.Almas dotadas de uma espinha dorsal muito flexível.Gente que não sabe o que quer dizer amor próprio. Contudo, são sempre bem-vindos, com as devidas distâncias, pois a qualquer momento roem a corda. Júlio conhecia-os bem. Aliás, estava rodeado deles.

- Acho que ficou acordado entre nós que não olharias a gastos no que ao bairro dissesse respeito. Estou errado, meu caro Júlio?

- Não, não estás enganado.

- Então, porque fiquei sabendo que existem muitas reclamações contra ti por causa do desleixo que se vem verificando?

Júlio respirou fundo.Depois de puxar uma cadeira e de se sentar, respondeu:

- Olha, meu caro. Agente já se conhece há muito tempo, certo?

O Secretário concordou,meneando a cabeça em aprovação.

- O nosso partido tem vindo a tornar-se num ninho de hipócritas, de chulos, de porcaria que vive em função dos seus interesses particulares.

O Secretário Geral levantou-se energicamente, dizendo:

- É melhor que pares por aqui!

Júlio repetiu:

- Não, não senhor, meu caro. Tu e a corja que te segue têm vindo a transformar o partido num covil de bichos repugnantes.

- Júlio! Que se passa contigo?

Júlio colocou as duas mãos sobre a secretária e, olhando no fundo dos olhos do seu até então mentor, acrescentou, furioso:

- Não passas de um rato almiscarado! Só estás na política para te servires e não para servir!

- Júlio, eu vou banir-te do partido!

- Não é necessário, meu caro - berrou-lhe Júlio. - Aqui tens o meu cartão - rematou o indignado Presidente da Junta.

- Rua! Rua!- gritou-lheo seu chefe.

- Com muito prazer - respondeu-lhe Júlio, batendo com a porta.

Minutos mais tarde, já um pouco mais calmo, Júlio riu-se do que tinha dito ao Secretário Geral. Estava agora livre do espartilho em que se havia metido.

- Agora é vida nova - pensou, andando vagarosamente pelo passeio que ladeava o Jardim da Estrela.

Júlio tinha o seu emprego,não precisaria dos míseros 450Euros que auferia por ser presidente da junta de freguesia.No futuro, só pensaria no seu trabalho como funcionário dos correios de Portugal.Teria tempo   para se dedicar às coisas do coração e, quem sabe, tomar coragem para se abrir com a mulher que lhe vinha tirando o sono.Não seria fácil, até porque ela nem sabia que ele existia!

Solteiro aos 40, além de uma namoradinha que teve na juventude, Júlio não sabia o que era na verdade uma mulher, na sua real dimensão.

- Maldita vergonha - pensou Júlio, parando para acender um cigarro.

Sentia-se mais leve. Não se meteria tão cedo novamente na política.Quanto à feiticeira, a mulher que havia tomado conta do seu abandonado coração,teria de deixar-se de pejos e declarar-se a ela.

- Não há outra forma - reflectiu, iniciando novamente a marcha.

No dia seguinte e como era esperado, Júlio foi exoneradodo cargo, e a pasta foi passada a um jovem do partido.Nesse mesmo dia, meteu férias do serviço. Era preciso tirar uns dias para reflectir sobre o futuro.

O bairro era grande mas quase todos o conheciam.Quase todos o tinham em boa conta,mas não havia volta a dar.Ele, Júlio Trindade da Silva, não se meteria noutra tão depressa.

Meteu uma semana de férias e decidiu que durante esse período se declararia à mais bela mulher do País.Pouco sabia sobre ela, além dofacto de ser viúva, com um filho de 19 anos.Não foram raras as vezes em que a vira passar, provavelmente voltando do emprego.Não havia dia em que não se colocasse num local estratégico, só para a poder contemplar. Eram momentos de grande volúpia. Roía-se de vontade de, pelo menos,lhe dar as boas tardes, mas nem isso conseguia!

Só uma vez, uma única vez, ouviu a sua linda voz, inalou o perfume dos seus olhos, apreciou a áurea dos seus lábios, a magnificência da sua presença.Foi num dia em que ela pediu auxílio àJunta, no sentido de se inteirar dos apoios a mães e pais solteiros com menores a cargo.Depois desse dia, desse mágico dia, nunca mais lhe falou, para mal dos seus pecados.

 

 

 

 

V.

 

Um dia após a decisão do seu filho, Rosa, como sempre, saiu pela matina, em direcção ao seu emprego. Não se havia conformado com a escolha dele. Não desistiria de o ver formado!

Durante o trajecto, lembrou-se das palavras de Fábio:“Mãe, pareces mais velha do que na verdade és”. Sorriu,encostou a cabeça ao vidro do autocarro e pensou   em Gustavo. Fechou os olhos e esforçou-se para não chorar.

Volta não volta, lá estava ele a invadir-lhe a mente.Ela amava-o muito.

- Que pena - murmurou.

- Não penses mais nele!

Marta tinha acabado de entrar. Era sua colega de trabalho e de sector.Uma boa amiga, contudo um pouco destravada de língua.

- Foda-se!Queres crer que, na paragem, um gajo apalpou-me o cu?

Rosa riu-se.

- Só mesmo tu para me fazeres rir.

- Ainda se fosse um gajo todo bom…Mas não…Era um velho a cair aos bocados. Ainda estive para lhe dar com a mala nos cornos mas, quando olhei bem para a figurinha, bem, desisti.

Marta era uma morena que dava nas vistas. Tudo nela era para o grande. Usava seu cabelo quase sempre preso num rabo-de-cavalo. roupas justas, talvez justas demais,na opinião de Rosa.Media um metro e setenta e cinco, era dotada dum par de mamas verdadeiramente grandioso e dumas volumosas cochas.

Um tanto ou quanto descarada, Marta pregava aos quatro ventos que, enquanto se pudesse divertir,iria fazê-lo.

- Não podes estar num relacionamento e ao mesmo tempo divertires-te.

Rosa não se regia pelo mesmo diapasão. Gostava muito de Marta, porém,não da maneira como encarava a vida. No entanto, respeitava-a, gostava da sua companhia, embora as vezes a colocasse em situações veramente embaraçosas.

Mas Marta não era só carne. Era provida duma genuína benevolência, sempre pronta a ajudar um amigo a qualquer altura. Fosse como fosse, Marta era uma boa amiga e, para Rosa, isso era suficiente.

No âmbito laboral, não haviam queixas.

- Pão é pão, queijo é queijo - dizia a atraente morena.- Não podemos confundir - repetia muitas vezes.

O dia para Rosa foi penoso. Não retirava da cabeça a decisão de seu filho. Para complicar tudo mais ainda, Gustavo tirara o dia para a atormentar.

No outro lado da grande bela e cosmopolita cidade, Fábio desdobrava-se em   visitas a lojas,supermercados, tabacarias, etc. Não estava a ser fácil.Estava tudo preenchido!

- Tarde demais, amigo – era a resposta mais ouvida.

Tinha sido um dia horroroso. os contactos de empregos que havia retirado da net estavam ocupados. No finalzinho da tarde,quando chegou ao bairro, Carlos já o esperava.

- Onde andaste?

Fábio não estava bem-disposto e pior ficou com a pergunta do seu amigo:

- O que é que tens haver com isso?

- Eh pá! A coisa está feia!

- Se não queres ouvir respostas destas, faz perguntas, no mínimo, inteligentes.

 

Carlos levantou os braços.

- Calma! Sou eu, lembras-te?

- Desculpa. Hoje o dia correu-me mal.

- Já deu para perceber - retrucou Carlos. - Bem, então falo-te mais tarde - disse-lhe, virando-lhe as costas.

- Não! Espera!Podes falar agora - disse-lhe Fábio, de rosto mais desanuviado.

- Certeza?

- Sim, podes falar.

- Tudo bem.

Carlos olhou bem nos olhos verdes do seu amigo e declarou:

- Engravidei uma gaja!

Fábio arregalou os olhos.

- Como?

- Isso mesmo que ouviste, amigo.

- Que gaja?

- Uma miúda do bloco 15.

- Há quanto tempo vocês se conhecem?

- Um mês, mais ou menos - afirmou Carlos,tentando puxar pela memória.

-Não tensemenda! - Teu pai vai-te picar em milbocados! Já para não falar da tua mãe.Essa, coitada, vai ter um treco.

- Porra, Fábio! Vim aqui pedir apoio e tu julgas-me como a um criminoso!

Fábio baixou a cabeça.

- Não queres que te julgue, pois não? -perguntou-lhe.

- Claro que não!

- OK. Então, vou perguntar-te uma coisinha: que idade tem ela?

- Carlos ficou por brevessegundos em silêncio.

- Estou à espera - disse-lhe Fábio, flechando-o com os seus olhos verdes.

- Carlos ficou visivelmente perturbado.

- Só tem 15. - Eh pá, mas parece ter 20! - Havias de ver o caparro da gaja. Boa todos os dias!

Fábio estava incrédulo com a falta de senso do seu amigo.

- Vou-te dizer uma coisa - afirmou. - Quando o teu pai estiver a fazer do teu lindo corpo um saco de boxe, podes ficar ciente que vou assistir e aplaudir! - És um irresponsável!

- Acho que desta vez meti a pata na poça -murmurou Carlos, cabisbaixo.

- Metestefoio corpo todo! Meteste o teu e, provavelmente,também o da rapariga!

- Ainda por cima é ciganita.

- Que disseste?

Fábio quase teve um enfarte do miocárdio.

- Ai, Jesus!O circo vai pegar fogo.

- Os pais são boa gente.

- Vais ver a boa gente - disse-lhe Fábio, notoriamente nervoso.

- A conversa prolongou-se por muitos minutos,o tempo suficiente para verem chegar Rosa. Fábio ficou de ajudar Carlos a anunciar a sua façanha.Ele tinha a certeza de que haveria gritos e, provavelmente,alguma pancada. O Senhor Fernando não aguentaria mais uma. Eram diversas as vezes em que quase lhe batia. Contudo, Fábio tentaria por água na fervura.Mas desta vez achava que o caso era sério demais para ficar somente por palavras.

- Que cara é essa, querido - perguntou-lhe a sua mãe.

- Nada.O dia não me correu nada bem - respondeu Fábio.

- Não conseguiste nada?

- Não. Todos estavam ocupados.

- Filho…

- Mãe, por favor,não recomeces!

- Agente aguenta bem.

- Mãe, não comeces com isso. Olha que eu vou-me embora - ameaçou.

- OK, eu calo-me - disse-lhe Rosa. - Amanhã vem cá a Marta.

- Que disseste?- perguntou-lhe Fábio,da cozinha.

- É como te disse.A tua admiradora vem cá amanhã - repetiu Rosa, sorrindo.

- Não acredito, mãe! A tarada? –perguntou, espreitando à porta da sala.

- Sim, essa mesmo.

Fábio   ficou em pânico. Todas as vezes que Marta aparecia lá por casa, ele era o foco.

- Rosa, minha querida, se não fosse teu filho… Mas que pedaço de homem!

Marta dava-lhe cabo da cabeça. Não o fazia com o intuito de assediá-lo, não, mas adorava ver o embaraço do rapaz. Ele ficava sem saber onde meter os olhos! Apanhou-o várias vezes olhando-a de lado, como quem não quer a coisa. Afinal, ele também era um macho.

Rosa divertia-se com o jogo de sedução. Fábio, desde pequeno, era muito introvertido.Que se lembrasse, só o havia visto com uma miúda e mesmo essa perdeu-a para a droga.

Cristina era linda e inteligentemas vivia sobre um verdadeiro barril de pólvora. Os seus irmãos eram consumidores de heroína e a sua mãe e o seu pai, alcoólicos. Resistiu até onde pôde, mas era inevitável.

Fábio passou tempos difíceis mas, após essa fase, dedicou-se ainda mais aos estudos.Praticamente não saía de casa. Limitava-se a ir decasa para a escola e da escola para casa. Sendo uma mãe extremamente protectora, dir-se-ia que Rosa estava nas suas sete quintas.Contudo, ela começou a preocupar-se. Não era muito normal naquelas idades escolher-se o quarto em vez da rua e dos amigos.

- Foi só um susto - concluiu mais tarde.

Embora continuasse a não ser um moço de grandes exteriorizações, foi modificando o seu comportamento, especialmente quando começou a praticar desporto, nomeadamente judo.Quanto a raparigas, nada! Havia dezenas delas que certamente não se importariam, todavia, seu filho não lhes dava troco.A maldita vergonha emergia sempre! Não obstante esse grão de areia na engrenagem, Fábio prosseguiu sendo o filho afável, amigo e cuidadoso .

- Era uma questão de tempo - pensou Rosa.

Depois do jantar, como era habitual, sentavam-se ambos a ver televisão. Enquanto Fábio, a pedido da sua mãe,lhe massajava os pés doridos dum dia de trabalho, a conversagirava quase sempre a volta dos que morreram por overdose, dos roubos, das pancadarias.Enfim, o covil dos lobos no seu melhor.

- Amanhã vou de novo para a Baixa. Encontrei mais alguns contactos.Acho que é desta - comentou Fábio.

Sua mãe ficou sem dizer palavra e manteve-se assim toda a noite. Fábio conhecia-a como ninguém!

- Amuou - murmurou o jovem, na beira da cama. - Tontinha… parece uma criança – pensou, sorrindo, ao lembrar-se do rosto dela.

Pela matina, bem cedo,Fábio acordou com gritos no andar debaixo. No começo não deu grande importância, todavia, recordou-se de Carlos e da conversa que tiveram.

- Ai Jesus!

Num salto, pulou da cama, vestiu-se à pressa e em pouco tempo descia velozmente as escadas.

- Aimoço, vou cortar-te as bolas e dar ao gatinho, ai, ai...

O Cigano parecia um leão numa jaula. Na sua mão direita segurava uma faca. Junto da porta do Senhor Fernando, a mãe da miúda gritava bem alto para o prédio todo ouvir:

- Bartolomeu, meu homem, corta-lhe os tomates!Ai, minha filha, ai, minha Súria, que perdeste os três, ai,ai!

-Sai da toca!Ai, se te apanho…- sucedia-lhe o marido.

Do lado de dentro, Fábio conseguia ouvir a voz de dona Lurdes dizendo:

Vamos todos morrer às mãos do cigano!

De repente, a porta abriu-se e aprimeira coisa que se vislumbrou foi um cano duma caçadeira bem segura pelo braço musculado de Senhor Fernando.

O cigano apanhou um susto tão forte que, ao recuar, precipitou-se escadas abaixo, estatelando-se lá em baixo, depois de ter batido com os costados em pelo menos vinte degraus.

- Ai, Marcolina! Ai, Marcolina, chama alguém que me carregue - gritava o cigano.

Marcolina, esquecendo-se das injúrias, foi em auxílio do seu homem.

Ora, os gritos, berros e barafunda, num ápice, transformaram-se num acampamento de ciganos.Senhor Fernando não dizia palavra, seu rosto fechado conjecturava algo de sinistro.Tanto dona Lurdes como Carlos estavam remetidos ao silêncio.Entretanto, veio a Polícia e com ela deu-se a debandada dos ciganos.

Duas horas depois, após as autoridades terem dado por concluídas as diligências, Fernando resolveu fechar-se em casa. Fábio bateu à porta e foi lhe dito pela boca do próprio que era tempo de reflecção, que viesse mais tarde. Vendo que as coisas estavam mais ou menos resolvidas, o rapaz subiu, vestiu-se convenientemente, fez sua higiene íntimae saiu a procura de emprego.

 

 

 

 

VI.

 

A velha Praça da Figueira, Antes do terramoto de 1755, era o local do Hospital de Todos-os-Santos, cujas fundações foram postas a descoberto durante a construção do atual parque de estacionamento subterrâneo.

No desenho de Marquês de Pombal para a Baixa, a praça transformou-se no principal mercado da cidade. Em 1885, foi aí construído um mercado coberto, o qual acabou por ser demolido nos anos 50 do século passado. Hoje, os edifícios de quatro andares são ocupados por hotéis, lojas e cafés e a praça já não é um mercado.

Uma das características interessantes da praça são os bandos de pombos que se empoleiram no pedestal da estátua equestre de D. José I, erguida em bronze no ano de 1971, da autoria de Leopoldo de Almeida.

A praça é servida pelas estações de metro do Terreiro do Paço, na Linha Azul e do Rossio, na Linha Verde, bem como por algumas carreiras da Carris e pelo serviço da CP Lisboa, na estação de Lisboa Rossio.

O jovem, naturalmente, a leste da História,tinha dado início à sua odisseia em busca de emprego. Depois de algumas horas entrando e saindo de tudo o que era comércio, de ouvir sempre a mesma resposta, sentou-se num dos bancos da Avenida da Liberdade, deveras desanimado. Um pouco depois, quase em desespero, desceu novamente a Avenida e, decidido a tudo, foi desembocar junto duma afamada pastelaria, ao lado de uma imponente obra que se encontrava em plena actividade.

Não pensou duas vezes. Abriu um enorme portão de chapa de zinco e entrou.A azáfama era grande. Homens serpenteavam entre andaimes e betoneiras que faziam um barulho ensurdecedor.

- Mais massa - gritavam.

-Olha ali, caraças pá!- ouvia-se amiúde.

Entre a barafunda de capacetes amarelos, um branco distinguia-se facilmente dos demais. Quem o usava era um homem de fato cinzento, que esbracejava veementemente com os seus subordinados.

- Bom dia!Bom dia - repetiu o jovem, um pouco mais alto.

- Os olhos do homem fitaram-no.

Ele tinha por baixo do nariz um tufo de pelo, vulgarmente designado de bigode mas, no seu caso, mais parecia um ninho de ratos, tal era a desorganização.

- Quem és tu?- perguntou-lhe, com alguma agressividade.

- Fábio!

- O quê?

- Fábio e procuro trabalho - gritou-lhe o jovem.

- Queres trabalho, é isso?

- Sim senhor!

Desviando momentaneamente o olhar,esbracejou mais um bocado, disse mais uns impropérios e pediu a Fábio que o seguisse.

Alguns momentos depois, já sentados dentro duma pequena barraca de madeira, por detrás duma espécie de secretária, o homem perguntou-lhe:

- Ouve lá jovem. Afinal queres emprego ou trabalho?

Fábio estranhou a pergunta.

- Como?

- Vou repetir, embora não goste de o fazer - disse-lhe o homem, abrindo uma gaveta e retirando uma garrafa de whiskey.

Depois de encher um copo e de engolir o líquido quase num só fôlego, perguntou novamente, desta vez mais calmo:

- Queres emprego ou trabalho?

- Quero trabalho - respondeu-lhe Fábio.

- Errado! Ninguém quer trabalhos. Quem quer trabalhos?

- É para eu responder, senhor?

- Não, deixa-te estar caladinho. Este é o meu momento de glória - respondeu-lhe.

Fábio achava o homem um pouco estranho.Afinal, ele só queria trabalho.Ou seria emprego? Esperou que aquela caricata personagem lá tivesse o seu momento de glória, como havia dito.Então, depois de ouvir o homenzinho divagar pela sua vida, misturar filosofia com poesia e seu contrário, para remate, ouviu:

- Estás contratado!

Fábio olhou-o bem nos seus olhos um pouco salpicados de vermelho e disse-lhe:

- Estou o quê?

O homem deixou-se cair para trás na cadeira e desatou à gargalhada.

Fábio esboçou um ligeiro sorriso.Nem sabia como agir perante tão burlesca criatura.

Um pouco mais tarde e depois de as coisas terem voltado a normalidade,o jovem ficou a saber quem na realidade era aquele personagem saído duma história dum livro de quadradinhos.Chamava-se Mário e era o encarregado de obras. Ficou ainda a saber que começaria a trabalhar no dia seguinte.

- às 8, aqui, rapaz - disse-lhe Mário, junto do portão.

Fábio, finalmente, tinha conseguido trabalho. Não era bem aquilo que tinha em mente, mas mesmo assim ficou satisfeito.

Agora poderia ajudar a sua mãe.Havia jurado para si próprio que, mal conseguisse emprego, os dias de contar tostões desapareceriam para sempre!Trabalharia como um escravo. Trabalharia dia e noite se precisofosse, mas andar com o credo na boca, nunca mais!

- Mãezinha, teu filho vai te dar tudo o que tu mereces – pensou, ao entrar em casa.

Faltavam ainda duas horas para a sua mãe chegar e Fábio resolveu dar um saltinho ao andar debaixo, para ver como tinham ficado as coisas durante a sua ausência.

- Entra, meu filho - disse-lhe dona Lurdes, visivelmente abatida.

- Como está tudo por aqui?

- Oh meu querido - lamentou-se a sua vizinha -, Fernandopôs o Carlos na rua – acrescentou, notoriamente transtornada.

- Para onde foi ele?Não me diga que foi para casa do sogro - tentou gracejar, mas sem qualquer efeito prático. – Desculpa, dona Lurdes, era só para desanuviar um pouco o clima.

- Tudo bem querido.Eu não percebi mesmo nada - disse-lhe a sua vizinha, com a maior naturalidade do mundo. - Fernando está no tasco. Tenho a certeza que hoje ele vai tomar a carraspana!

- Acha que sim? -interrogou Fábio.

- Tenho tanta certeza como de me chamar Lurdes!

Um pouco mais tarde, Fábio encontrou o seu amigo junto da paragem do autocarro que servia o bairro.

- Vais de viagem?

Carlos apanhou um susto.

- Não.

- Porra, pensei… O cigano ainda não deve ter recuperado - brincou Fábio. - Mas quando estiver bem, prepara-te rapaz.Ouvi dizer que eles fazem chouriços com as tripas de humanos!

- Brinca,brinca…Se fosse contigo, queria ver.

- Comigo não acontecem dessas coisas porque eu não me meto nelas!

- Pois, tinha-me esquecido que tens medo de mulheres - declarou Carlos.

Fábio não gostou muito do comentário.

- Como tu quiseres.Se achas isso, que posso eu fazer?- respondeu-lhe. - Não vou entrar em grandes discussões contigo a esse respeito - acrescentou Fábio, virando-lhe as costas.

- Eh pá, desculpa - disse-lhe seu amigo, segurando-o pelo ombro. - Sou mesmo um ingrato. Vieste aqui para saber de mim e eu trato-te mal.Não passo mesmo de uma cavalgadura.

- Não te vou contrariar - disse-lhe Fábio, sorrindo.

Quando Rosa chegou do emprego, cansada como sempre, uma surpresa estava-lhe reservada. Carlos vinha aumentar o agregado familiar, aceitando o convite do amigo.

- Claro querido, ficas aqui o tempo que quiseres - disse-lhe Rosa.

- Boa! Nunca mais saio daqui - exclamou Carlos.

- Calma, calma - intrometeu-se Fábio. - Isto não é a da Joana, sabias? Não quero ciganos furiosos àminha porta!

Entre conversas mais ou menos sérias e algumas brincadeiras pelo meio, caiu a noite sobre o Covil dos Lobos.

Logo a seguir ao jantar, bateram à porta de Rosa. Quando a abriram, deram de caras com o senhor Fernando, perdido de bêbado, mal se aguentando sobre as pernas.

- Carlos! Carlos, filho, vem com o pai para casa - gritou.

Antes que caísse, Fábio,ajudado por sua mãe, trouxeram-no para dentro.

Alguns minutos mais tarde, depois de beber uma caneca de café sem açúcare depois de ter vomitado algumas vezes,Fernando ficou em condições de, pelo menos, saber o que dizia.

- Não saio daqui! Não saio, não saio nem ninguém me tira - barafustou Carlos.

- Sais, sim - disse-lhe Fábio. - Embora agente goste muito de ti, é junto da tua família que deves estar - declarou seu amigo.

Ora, Lurdes

apareceu e,depois de alguma confusão, a família lá se entendeu.

Tinha sido um dia de grandes emoções para Fábio.

Quanto à sua mãe, o dia havia sido normal.Pela milésima vez, o seu chefe de sector tinha-a convidado para sair. Contudo,desta vez,ela quase aceitou. Ele, na realidade, mexia consigo.Gostava do jeito dele, das suas brincadeiras, enfim, do seu corpo, facto que a vinha atormentando. Nos últimos tempos vinha sonhando com ele, nomeadamente, com partes do seu corpo. Mais duma vez, acordou muito acirrada. Sandro deixava-a húmida de desejo, para sua vergonha.

Gustavo ainda não havia desaparecido da sua mente, embora surgisse com muito menos frequência.Estava receosa. As dúvidas assaltavam-na. Tinha medo que tudo se repetisse.No entanto, dia após dia e cada vez mais, vinha pensando em Sandro. Duma coisa tinha elaa certeza:o seu corpo estava novamente desejando!

SE fosse atrás da conversa de Marta, já se tinha entregado, logo no primeiro dia.

- Amiga, há oportunidades que não se devem desperdiçar - dizia-lhe a maluca da sua amiga.

Ela levaria tudo com calma. Não gostava de grandes precipitações. Marta e a sua concepção de vida teriam de arranjar outros seguidores.Rosa não estava para aí virada.

No âmbito meramente sexual, Rosa, segundo Marta, era muito conservadora.Contudo e apesar das novas teorias, das desmistificações, Rosa não alinhava nas modernices.Como dizia ela a Marta, O sexo é bom e desejável, mas com quem se ama realmente.

No mais íntimo do seu Ser, Rosa achava que o comportamento sexual da sua amiga era nada mais nada menos do que uma fuga para a frente. Tinha a certeza que, mais dia menos dia, Marta, a galdéria, a liberal, a despreocupadamulher dos tempos modernos, encontraria o verdadeiro amor e tudo se evaporaria. Era convicção de Rosa que a prática de bom sexo não é compatível com a falta de afectuosidade. Rosa tinha quase a certeza que Marta, quando encontrasse o homem certo, abdicaria nessa mesma hora da ideia que só se é livre quando se faz o que se quer.

Sim, a questão era mesmo essa.Uma questão de liberdade!

Rosa era suficientemente vivida para não entrar em grandes discussões a respeito de um assunto sobre o qual cada um vêe sente de forma distinta. é um erro pensar-se que não se é livre tendo um companheiro como confidente, como amigo, como parceiro sexual.

A liberdade é intrínseca ao Ser Humano, nasce com ele, não há qualquer paixão ou amor,sejam estes quais forem,que possam arrancá-la, escravizando alguém. Como se poderia amar coarctando a liberdade do outro?O Homem nasceu para ser livre!

O que acontecia,segundo o pensamento de Rosa, passava por uma cínica forma de se ter sexo sempre à mão.Quanto ao sentimento propriamente dito, bem,logo se veria.Não havia muitas diferenças em relação aos tempos em que as raparigas eram prometidas a rapazes, quase sem os conhecerem. O amor,o amor, esse viria depois. Ese por acaso não surgisse, bem, sempre se poderia arranjar um parceiro a quem recorrer quando a carne palpitasse de desejo.

Não obstante as divergentes opiniões e conceitos, Rosa e Marta eram muito amigas. Já no que se referia ao seu filho querido, Rosa receava que ele não aceitasse uma presumível relação.Mas Fábio tinha mais com que se preocupar.

O Castelo de São Jorge,qual sentinela medieval que dominava Lisboaalfacinha do alto da colina,tinha um nome que derivava da devoção a São Jorge, santo padroeiro dos cavaleiros e das cruzadas e foi construído por ordem de D. João I, no século XIV.

Ao longo do tempo, o castelo, assim como as diversas estruturas militares de Lisboa, foi sendo remodelado a ponto de, na primeira metade do século XX, estar já em avançado estado de degradação. Na década de 1940, foram empreendidas monumentais obras de reconstrução, levantando-se grande parte dos muros e alteando-se muitas das torres. Por esse motivo, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, o "carácter medieval" deste conjunto militar deve-se a esta campanha de reconstrução e não à preservação do espaço do castelo desde a Idade Média até aos nossos dias. Ergue-se em posição dominante sobre a mais alta colina do centro histórico, proporcionando aos visitantes uma das mais belas vistas sobre a cidade e o estuário do rio Tejo.

Apesar da magnificência do quadro, à hora certa, com uma pontualidade britânica, Fábio apresentou-se ao serviço. Não estava muito nervoso. Antes dos portões se abrirem, constatou que tinha sido um dos primeiros. Não muito longe de si, dois supostos funcionários olhavam-no de soslaio.Um deles era negro e muito alto.O outro, pareceu-lhe de etnia cigana, facto que o deixou espantado,não por ser cigano mas por trabalhar nas obras.Normalmente, os ciganos dedicam-seà venda pelas ruas, pelos mercados e pelas feiras.

Pouco-a-pouco, o passeio que ladeava a obra foi-se enchendo de trabalhadores. Eram mais de 100, que chegavam quase em cima da hora.Exactamente as 8, chegou Mário.

Uma hora depois,já Fábio experimentava na pele o quão duro é ser-se ajudante de pedreiro.Mas o jovem estava decidido e verdadeiramente motivado.Logo no primeiro dia, surpreendeu tudo e todos, tal era a sua vontade de laborar.Mário ficou satisfeitocom o seu desempenho. O rapaz pareceu-lhe muitobuliçoso. No entanto, só os dias seguintes, esses sim, mostrariam se era mesmo bom empregado ou tudo não passava de fogo-de-palha. Mas não,não foi fogo-de-palha. Fábio, nos dias que se seguiram, mostrou-se ainda mais ágil,interessado e competente.Não foram precisas muitas semanas para o verem já com uma colher e talocha na mão.Ele aprendia rápido. Os mestres pedreiros debatiam-se para o terem como servente.Mário recebia algumas queixas mas Fábio era só um, dizia-lhes. No que se referia aos colegas, ele dava-se com todos, contudo, haviam sempre algumas tricas, mexericos e ciúmes.Quando a empresa precisava de alguém disponível para fazer serões, Fábio era dos primeiros a apresentar-se.

Passados dois meses após se ter empregado,soube pela boca de sua mãe que ela estava a sair com um homem.

- Mas é sério?

- Filho, eu gosto dele - respondeu-lhe.

Nos últimos tempos Sandro vinha frequentando a sua casa.Fábio nunca o tinha cumprimentado.

- Porque não mo apresentaste?

Rosa ficou constrangida.

- Filho, nunca se proporcionou!

O jovem andava verdadeiramente fatigado. Havia passado dois meses sem uma única folga. No entanto, não se sentia triste, antes pelo contrário.Porém, o corpo já pedia descanso.Nada para o que sua mãe já não o tivesse alertado.

- Vais matar-te a trabalhar! Há limites, filho!

Mas Fábio não lhe deu ouvidos. Todas as vezes que via a sua folha salarial, como que uma gananciosa vontade tomava conta do seu entendimento. Certo dia mostrou o recibo de vencimento à sua mãe. Rosa assustou-se com o seu ordenado.

- Filho, ganhaste mais num mês do que eu em três!

- É a nossa independência financeira - exclamou Fábio.

Nesse mesmo dia, Rosa ficou incumbida de pagar o empréstimo pessoal, daqueles que levam o coiro e o cabelo.

Mês após mês, o apartamento foi remodelado por completo.Fábio fazia questão de comprar dobom e do melhor, apesar das reticências da sua mãe.

- Para quê tanto luxo, querido?

Sandro foi bem aceite no seio da família Marques, embora Fábio não fosse muito à bola com ele.Havia algo no gajode que o jovem não gostava.

Não tardou muito até ser aumentado e promovido a pedreiro de segunda, uma promoção completamenteapadrinhada por Mário, que acabou por se tornar seu amigo.

Muitas vezes, depois do trabalho, Fábio jantava com ele. Nessas jantaradas, ficou a conhecer muito dos bastidores das grandes construtoras.O próprio Mário já tinha sido um dos grandes, nos seus tempos áureos.Contou ao seu jovem protegido que chegou a ter ações da empresa e lugar na mesa de reuniões, na Sede que estava situada na Avenida da Liberdade.

- Um dia vamos lá - disse-lhe.

Mas havia o reverso da medalha. Mário embebedava-se sempre nos jantares e era Fábio quem o levava a casa.

Mário era um homem solitário.O seu pequeno apartamento, lá para os lados de Benfica, estava repleto de fotos da sua antiga família.

Pouco-a-pouco, seu mestre de obras foi-lhe contando sua vida. Entre um copo e outro, bebedeira a bebedeira, Fábio acabou por ficar a saber das suas mágoas e da razão porque se entregou ao álcool.

- Eu em tempos fui um homem muito feliz, rapaz - disse-lhe numa noite, já com a carraspana.- Sofia, essa velhaca, foi a minha perdição - acrescentou. Fábio não entendia como uma mulher poderia fazer com que um homem se entregasse unilateralmente ao vício.

No entanto,como era leigo na matéria, não se pronunciava sobre o que não conhecia.Teria o tempo todo do mundo para passar por tão aflitivo momento, se isso se viesse a proporcionar[3), facto que ele achava quase impossível de ocorrer!

Limitava-se a ouvir.

- Um bom ouvinte aprende mais rapidamente - disse-lhe uma vez um professor.

Fábio seguia à risca o conselho.

Mário dava-lhe dó.O homem era inteligente, se é que se pode chamar inteligente a uma pessoa que se mata aos poucos.Tirando o vício, que lhe consumia o ordenado quase por completo, pois só bebia whiskey do mais caro, Mário era na verdade uma boa pessoa.Foi com alguma naturalidade que Fábio se apegou a ele, talvez buscando a parte paternal que nunca lhe coube em sorte.

Fosse como fosse, depois de constatarem que Mário e o pedreiro de segunda eram amiguinhos, o jovem começou a ser criticado pelos colegas de trabalho.No entanto, isso pouco o afligiu, pois estava decidido a ser um homem afortunado. E se para atingir esse objectivo tivesse de passar por humilhações, por vexames e de abdicar de alguns valores e princípios, ele suportaria tudo isso em nome duma vida melhor.Tinha sido uma decisão sua e só sua.

Foi com naturalidade mas sobretudo com muito esforço e dedicação que o jovem prodígio da argamassa começou ele próprio a ser o mandante e não o mandado. A empresa para a qual trabalhava era uma das maiores construtoras portuguesas.

Não tardou querecebesse a tão aguardada proposta. Mário tinha sido requisitado para servir a empresa no México,país onde esta última havia ganho várias empreitadas, algumas de grande dimensão.

- Camarada - disse-lhe Mário,num certo dia depois do trabalho -,eu adoraria que viesses comigo. Promover-te-ia a pedreiro de primeira – anunciou, sorrindo-lhe.

Fábio ficou muito   reconhecido, contudo, custava-lhe deixar a sua mãe ao Deus dará,.Vinha reparando que as coisas entre ela e o namorado, que se havia mudado de armas e bagagens para sua casa,não estavam lá muito católicas. Por esse facto, telefonou certo dia à dona Lurdes, perguntando se havia notado algo diferente em sua mãe.Tudo podia não passar de uma alucinação mas o que é facto é que do que ouviu, não gostou.

Dona Lurdes tinha-lhe dito que também notou que ela andava mais triste.

- Não sei porquê, meu filho mas, desde que aquele calinas deixou de trabalhar e abancou na vossa casa, que…

- Muito obrigado, dona Lurdes - agradeceu-lhe Fábio, desligando o telefone.

Ele sabia!O focinho daquele gajo escondia algo.

Antes de aceitar a proposta de Mário, teria de resolver o assunto com o namoradinhode sua linda mãe. Se depressa pensou, mais depressa executou.Foi preciso pedir um dia de folga a empresa para que pudesse chegar a horas decentes e apanhá-los acordados.Ora, foi o que aconteceu e, para espanto do jovemFábio, foi bem pior do que algum dia imaginaria.A sua querida mãe era violentada pelo crápula!Quando abriu a porta do apartamento, por volta da hora do almoço, ainda assistiu à discussão que desencadeou pouco depois uma cena de violência.

- Não te dou mais dinheiro.O único que tenho é do meu filho e ele mata-se a trabalhar - dizia sua mãe.

Por seu lado, Sandro ria-se dela.

- O teu filho mata-se a trabalhar? Sabes lá donde vem a massa que ele trás, sua estúpida. Provavelmente anda no tráfico de droga!

Aquilo foi a gota de água. Fábio irrompeu cozinha adentro e, pegando-o pelos colarinhos,atirou-o ao chão, pontapeando-o de seguida.

- Pára filho, pára!Ainda o matas!

Mas o jovem estava surdo de ódio e continuou até   que, alertados pelos gritos, os vizinhos chamaram a polícia,a qual, rapidamente entrou em acção.O espectáculo terminou logo de seguida e, como resultado, ficou Sandro com algumas costelas partidas, Fábio detido,Rosa num mar de lágrimas e o registo de mais um caso no Covil dos Lobos.

No dia seguinte, o jovem foi levado à presença do Juiz, que decretou como medida de coacção apresentações semanais no posto da PSP mais próximo.

Contudo, a relação de Fábio com a sua mãe, em vez de melhorar, só piorou. O causador,foi novamente Sandro!

Fábio ficou incrédulo quando a sua mãe, com aquela carinha de anjo, lhe disse que o tinha perdoado.

- Filho, sabes..ele está arrependido e eu… eu, gosto muito dele.

Fábio não estava a acreditar no que ouvia da boca de sua mãe.

- Como podes gostar dum homem que te bate? Já não bastou o drogado do meu pai? Gostas de apanhar, é isso?

- Não percebes, querido - disse-lhe ela.

- Eu exijo que aquele bandido   faça as suas malinhas e se ponha a andar!

- Não, filho. Ele não sai porque é o homem que eu amo!

- Se amas e gostas de ser violentada, saio eu!

Rosa esteve presente enquanto Fábio arrumavaos seus pertences. Ainda tentou fazer com que ele retrocedesse mas o jovem estava furioso.

- Filho, por favor, não faças isso - disse-lhe Rosa, chorando, agarrada às pernas de seu querido filho. - Meu amor, vem para dentro. Vamos conversar!

O prantode Rosa foi ouvido em todo o prédio. Lurdes e Fernando vieram em auxílio de sua vizinha.

- Mãe, larga-me as pernas!

- Não, não largo - gritava Rosa, apertando-o cada vez mais.

Apesar de todos os esforços, Fábio saiu mesmo de casa. Ele não viveria debaixo do mesmo teto que um porcaria que batia em mulheres .

No dia seguinte, logo pela manhã, já estava a bater a porta de Mário que, assustado, surgiu de arma na mão.

- Mas quem é o filho da puta que me acordou a esta hora? Fábio! -surpreendeu-seo seu chefe.

- Usas disso?- perguntou-lhe o jovem. - Que maneira de receber os amigos!

- Cala-te e entra - disse-lhe Mário, ainda atarantado.

Minutos volvidos, depois de Mário ter bebido em jejum duas cervejas, já tinham tratado de tudo no que dizia respeito ao México.Seriam pelo menos dois anos pelas américas.

- Quando regressares de lá, vens cheio de dinheiro - comentou Mário, feliz por o levar consigo. - Não gostas mesmo de pagar um copo - comentou em jeito de brincadeira.

Fábio não lhe contou porque havia decidido tão rapidamente.Não incomodaria o seu amigo com as suas atribulações. Ele já tinha quanto bastasse.Partiriam na semana seguinte. Entretanto, dormiria numa pensão sem que alguém soubesse.Quanto à sua mãe, nem se despediria, facto que só por si já o deixava amargurado. Ele amava-a demais!Contudo, também entendia que ela deveria passar por essa provação.Comportava-se como uma miúda inexperiente.

 

 

 

 

VII.

 

Júlio regressou da sua terra natal reavivado, um homem novo, conformeconfessou ao dono da pastelaria, enquanto bebia a bica matinal.

- Como vão as coisas por aqui?- perguntou.

- Na mesma, como a lesma - respondeu-lhe o proprietário. - Droga, polícia, polícia,droga, droga, polícia, polícia, droga…

- Pronto, já sei!Está tudo na mesma, não é?

O homem abanou a cabeça em aprovação. No entanto, Júlio foi sabendo das novidades,à parte da droga e da prostituição. Ficou ainda a par da discussão do jovem do bloco 2 com a sua mãe.

- Rosa?

- Conhece-a?

- Vagamente - respondeu Júlio.

- Sim, sim, ouvi dizer que o gajo que está com ela dá-lhe cabo do canastro - declarou o dono da pastelaria.

Júlio enraiveceu-se.

- Bandidola!Como se pode bater numa criatura que só lhe falta as asas para ser anjo - murmurou.

- Pois, talvez lhe fizesse mesmo falta, para aterrar sem se ferir!Ah,ah,ah,ah,ah.

- Não acho graça nenhuma!

- Olha, até parece que és o marido - afirmou o proprietário.

- Não, não sou, mas, mas…

- Mas o quê, Júlio?

- Nada, nada. Vou-me embora.Já ouvi quanto baste - despediu-se, visivelmente agastado.

O homem coçou a cabeça, vendo Júlio a afastar-se. - Querem ver - resmungou.

Daquele dia em diante vigiaria a porta do seu secreto amor,decidiu Júlio enquanto caminhava.Mais um passo em falso daquele endemoniado e partir-lhe-ia a cremalheira.

Sandro, quando saiu do hospital onde permaneceu uma semana, pediu perdão.Rosa perdoou-o e, desde esse dia em diante, a relação estabilizou, nunca mais tendo havido discussões.Sandro teve de procurar trabalho novamente. A desculpa de que tinha um problema de coluna teve de ser esquecida, pois o dinheiro de Fábio deixou de entrar!

Carlos foi obrigado pelo seu pai a casar-se com a rapariga que havia engravidado, com a concordância da comunidade cigana que, na verdade,de genuína já tinha pouco.

Carlos ainda havia fugido para casa duns tios do norte mas o seu pai trouxe-o de volta, quase puxado pelo nariz.

- Soubeste fazer o filho, não foi? Pois agora vais assumir as tuas responsabilidades!

Levou algum tempo até que o jovem interiorizasse que seria pai e que teria de sustentar sozinho duas pessoas.

“Não! Não estou psicologicamente preparado!”, gritou ainda ele, no dia anteriorao casório.

Mas de nada lhe serviu.Casou e foi morar para casa dela, por imposição dos pais da ciganita.

Lurdes era um mar de lágrimas. Chorava pelos cantos da casa, pelas esquinas do bairro, em todo o lugar. As pessoas precisavam de saber quão imensa era a sua dor!Mesmo com o filho a 100 metros de distância, ela não se conformava com a ideia. Então quando o viu na feira semanal vendendo roupa interior de senhora, quase desmaiou.Isso só não aconteceu porque chovia e podia sujar o vestido que seu Fernando lhe havia ofertado parausar aos domingos.

Mas o tempo foi passando e Lurdes foi acostumando-se com a ideia de vir a ser avó de um ciganinho.Já Fernando, homem aparentemente mais duro de roer,surpreendeu tudo e todos com o à vontade com que lidava com a comunidade.

- Os homens são assim, querida. Depois de terem o que querem, aos poucos, vão-se afastando. Não negam a condição de machos!

Rosa queixou-se a Marta do súbito afastamento de seu antigo chefe e actual companheiro.

- Vem ficando cada vez mais frio, sarcástico, até rude - confessou.

- Manda-o pastar! Ele tem outra!

Rosa não queria acreditar.

- Não,não me parece. Sandro sai do trabalho e vem de imediato para casa - declarou.

Marta sorrio.

- Ouve lá rapariga - disse-lhe. - Abre os olhos e faz como eu. Eles só servem para nos satisfazer!

Rosa quase já não ligava à lengalenga da sua amiga.

- Ao princípio é tudo muito giro, bonitinho, fofinho.São presentes paraaqui, poemas para ali mas, depois… bem… depois, abres-lhe as pernas e catrapimba, vão torcendo o nariz.Os homens são como qualquer macho irracional no que concerne ao sexo.Não se contentam com uma só!

- Então, quer-se dizer que eras para ser macho - gracejou Rosa.

- Ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah.Essa é boa - retrucou Marta.

Contudo, a sensualmorena havia acertado em cheio. Sandro, uma semana após a conversa entre as duas, desapareceu e nunca mais deu de caras pelo bairro.

Rosa ficou de rastos. Procurou-o por todo o lado. Deslocou-se a casa de familiares dele, porém, sem quaisquer resultados satisfatórios.Sandro Não se dava lá muito bem com os seus pais e irmãos.

- Parte para outra - dissera-lhe Marta, com as letras todas. - Ele não vale nada!

Mas Rosa olhava mais para o interior das pessoas e não para o invólucro. No entanto, não obstante todos os seus esforços, Sandro nunca mais voltou a fazer parte da sua vida.Rosa viu-se como nunca. Sem o seu filho querido, sem o seu companheiro de que gostava muito e sem vontade de levantar novamente a cabeça.Optou então pelo mais fácil: meteu-a debaixo da areia.Mas como Lurdes e Fernando eram muito mais que vizinhos, mais uma vez, foram o seu suporte.

Ora, para alegria de Rosa e agrado de alguns arreigados machos latinos, a luxuriosa Marta mudou-se de armas e bagagens para o Covil dos Lobos. Foi um dia muito importante. Rosa gostava da maluca como duma irmã se tratasse. Marta, a seu jeito, também, adorava a branquela, como gostava de lhe chamar.Então, juntando-se a fome com a vontade de comer,com as suas diferenças, modos de olhar a vida,díspares pontos de vista,as duas davam-se às milmaravilhas.Todavia, e como não há bela sem senão,passado um mês, teve de se clarificar algumas coisas.

Rosa não admitia cruzar-se com homens desconhecidos na sua própria casa.Ora, Marta foi chamada à pedra.

- Desculpa amiga, mas acho isso uma falta de respeito. Sabes que respeito astuas opiniões e maneira de viver a vida, mas existem coisas com as quais não consigo concordar. Namora quantos quiseres e onde quiseres, mas não os tragas para a minha casa, por favor. Entendo isso como uma falta de respeito da tua parte.

Marta, pela primeira vez viu o lado menos dócil de Rosa. Embora pudesse parecer amalucada, destravada, não o era assim tanto.Foi com alguma naturalidade que pediu desculpas à sua amiga, concordando na hora com o seu ponto de vista. Assim, desse dia em diante, Rosa nunca mais viu homens em cuecas dentro da sua casa.

Após esse incidente, a vida começou de novo a compor-se, não obstante um pequeno grande problema: as saudades do seu filho.

Duas ruas mais acima, vivia Júlio, que um dia havia juradojamais voltar à política.Nada mais falso!Não só regressou, como se entregou ao seu novo projecto de corpo e alma.Era um partido recémconstituído. Júlio foi convidado por um dissidente do Partido Comunista Português, que ambicionava introduzir no âmbito partidário uma nova visão, uma lufada de ar fresco e com isso transformar homens e mulheres não em profissionais da política mas em pessoas com espírito de missão e ao serviço do País.Júlio gostou do programaque lhe apresentaram. Restava-lhes difundir as suas ideias, projectos,sonhos e ambições futuras. Quem melhor do que Júlio, pensou o seu amigo, na hora em que decidiu por em prática a sua pretensão.E estava certo! Júlio respirava política por todos os poros. Foi numa das suas campanhas que, pela segunda vez, se cruzou com Rosa. Ele tremia dos pés a cabeça. A garganta secou,a palavra reteve-se na cavidade bocal.Marta, que estava por perto, rapidamente lançou o anzol ao solteirão.

- Que faz um gajo todo bom na política?

Júlio envermelheceu.

- Bonito e envergonhado! Como quer ganhar votos junto das mulheres?

- Deixa o moço - meteu-se Rosa, vendo o constrangimento de Júlio.

- Que partido é?É novo?

- Sim, menina.

- Olha, menina!

- Marta, cala-te um pouco!

- Eu dava-lhe a menina - resmungou a sua amiga.

Não eram os enormes seios de Marta, as suas cochas carnudas oua sua boca provocante que mexiam com ele.O que o fazia ficar em transe era a magnificência, a singela beleza, o brilhantismo que emanavamde Rosa.Aquele, teria de ser o momento certo.

Depois de ir buscar forças e descaramento ao fundinho do seu âmago, Júlio, então e por fim, debitou:

- Menina, os meus olhos jamais viram tamanha minúcia e sumptuosidade da mãe Natureza. Menina, você é linda, delicada, a personificação da flor feita mulher.

Quando acabou, transpirava por completo.

- Vai dar-lhe um ataque cardíaco!

Rosa franziu o nariz para Marta.Já estava a achar demais.

- Olha, amiga, porque não vais adiantando o jantar?

- Quem, eu?

- Sim, não és tu quem come na mesma mesa que eu?

Marta percebeu que tinha passado os limites.

- Desculpe, amigo, estava só na brincadeira.

- Tudo bem - respondeu-lhe Júlio.

A propaganda acabara por ali. Rosa e Júlio conversaram durante horas, pela noite dentro. Ele convidou-a para jantar mas ela recusou.Era um pouco prematuro.Mas já nessa noite, mesmo que ao deleve, recordou-se do diálogo.Ele tinha sido totalmente sincero,pareceu-lhe. Confessou-lhe que era muito tímido e que desejou falar com ela milhões de vezes, mas foi sempre travado pela vergonha.

- Mas o Júlio é um homem tão bonito…Era para ter tido muitas namoradas - declarou Rosa.

- Para que quero eu muitas se aquela que o meu coração elegeu, aquela com cuja grandeza sonho dias e noites a fio obscurece as demais?

Aquele café que tomaram juntos foi o princípio duma boa amizade. Júlio, sempre que a via, sempre que se cruzava com ela, quase sempre em situações por ele provocadas, dava-lhe um dedo de conversa.Foi com alguma naturalidade que ambos começaram a sair, mas tudo conforme as regras do bom cavalheirismo. Rosa abriu o seu coração a Júlio. Não estava preparada para mais uma relação.

- Não, por favor, não forces. Se tiver que acontecer algo entre nós, acontecerá naturalmente - disse-lhe Rosa, enganando-sejá a si própria.

- Eu já me sinto bem só assim - respondeu-lhe Júlio, pegando na mão dela e levando-a à boca.

No âmbito partidário,, mais do que nunca e reavivado pelo seu coração apaixonado,Júlio político ganhava todos os dias novos eleitores. Todos no bairro o conheciam!

Mas nem tudo era um mar de rosas. Rosa ficou sem Marta. A sua grande e amalucada amiga, tal como já havia previsto, encontrou um verdadeiro amor, um homem que a fez modificar por completo a sua visão da vida.

- Nunca pensei que isso viesse a acontecer-me - declarou Marta, junto da porta do prédio.

- Não podes fugir, amiga.É intrínseco, está nos genes, faz parte do Serhumano. O amor pode tardar mas sempre chega - disse-lhe Rosa, lavada em lágrimas.

Ambas ficaram abraçadas durante largos minutos, junto do táxi que levaria a sua amiga Marta para bem longe, mais concretamente, para o Dubai. Mas Rosa, por essa altura, já não se sentia sozinha, mesmo quando pensava na possibilidade de Marta abalar, facto que ela sabia que, mais cedo ou mais tarde,viria a acontecer.Sim, ela estava rendida à delicadeza, ao cavalheirismo, à bondade eà obstinação de Júlio.

 

 

 

 

VIII.

 

Enquanto Rosa se entregava de corpo e alma a mais uma história de amor, o seu rebento vivia grandes aventuras no México, onde A paixão e a história dos mexicanos estavam bem estampadas em cada muro, ruína e rosto da Cidade do México. Era difícil ficar impassível perante às grandiosas Pirâmides de Teotihuacán, o sítio arqueológico da antiga Tenochtitlan e as belas construções coloniais erguidas após a conquista pelos espanhóis. Isto, já Sem falar das grandiosas produções artísticasde nomes como o de Frida Kahlo e Diego Rivera; na rica gastronomia que aleava tão bem os pratos típicos locais aos sabores mais contemporâneos; e nas tradições mexicanas, que se mostravam apaixonantes, desde as torcidas enlouquecidas nas lutas livres até aos animados mariachis nos barcos de Xochimilco, tudo no méxico agradava Fábio.

Ele estava rendido ao país e, sobretudo,às lindas mexicanas, mas A ligação que tinha com a sua mãe não se perdeu com a distância.Pelo contrário,depois de ficar a par do desaparecimento de Sandro, fizeram as pazes e os seus corações morriam de saudades um do outro.

No que concernia ao trabalho, cada vez mais ele se tornou num menino bonito da empresa, tudo bem engendrado por Mário, seu amigo do peito, que era muito mais influente do que ele algum dia imaginaria.

Ganhava muito bem. A sua conta bancária estava bem de saúde e recomendava-se.Tão boa que ele fez questão de oferecer à sua querida mãe a casa onde viveu até aos 19 anos. A distância separava-os mas o amor de ambos ligava-os por toda a eternidade.

Mário surpreendia Fábio, semana após semana. O melancólico homem não mentira quando afirmou que havia sido uma pessoa influente no ceio da grande construtora. Para provar a Fábio, que todas as vezes que falava do assunto torcia o nariz, Mário fez questão de o apresentar ao director executivo, o mais alto cargo da empresa, aquando de uma visita deste último às obras.

Tratava-se de um homem ainda relativamente novo, que havia feito há pouco sessenta anos.Impecavelmente vestido, como não poderia deixar de ser, o director foi convidado por Mário para jantar num restaurante junto a obra que dirigia.Para pasmo do jovem Fábio,Mário vestiu-se como se fosse àópera. Nem parecia o mesmo! De barba bem feita, cabelo cortado, perfume do bom, um verdadeiro administrador.Ora, aquele jantar que a princípio não passava de uma forma de Mário confirmaraquilo de que o seu jovem amigo duvidava, embora não o tivesse dito,foi o começo de uma relação muito próxima entre o executivo e o jovem, a ponto de em meia dúzia de meses Fábio deixar de ser um vulgar trolha para passar a ser o braço direito de Mário, uma espécie de adjunto.

Contudo, a ambição do jovem, aleada à sua beleza, cativaram o mais poderoso membro da empresa.

Nessa altura, Fábio já havia perdido toda a vergonha perante as mulheres, milagre que só foi possível com a ajuda de Helena, uma bela mexicana de lindos cabelos negros e de corpo luxuriante, da qual acabou por, a pouco e pouco, se ir afastando, pois passou a frequentar o hotel e os melhores restaurantes do país,ao lado do Dr. Carlos Catatua.

Mário nunca havia suspeitado, no tempo em que esteve na direcção, da orientação sexual de Carlos.Nem poderia,pois ele era casado e bem casado, com uma das mulheres mais bonitas de Portugal.

Todavia, Carlos Catatua, o poderoso executivo, uma das mentes mais brilhantes da nação lusa, vivia entre dois mundos. Durante o dia, era um pai e esposo dedicado mas, pela noite dentro e em certos dias, amava outros homens.

O dia mais difícil para Fábio haveria de chegar em breve. Teria de escolher entre a fortuna e a mediocridade para sempre.Os valores nele enraizados desde o berço,os seus princípios basilares, a lealdade àquilo que gostava e em que acreditava, tudo foi posto em causa quando Carlos confessou pela primeira vez ao jovem Fábio o quão apaixonado estava por ele.

Nada que ele já não estivesse a espera. Muitas vezes deu consigo próprio a pensar no porquê de tanto salamaleque e simpatia.Afinal, ele não passava dum mero trolha! A sua meteórica ascensão, a frequência dos mesmos lugares que o chefe maior, o comer com ele a mesa, só poderia ter uma razão de ser. Algo teria de ser dado em troca. Mas o quê? Fábio descobriu rapidamente.Não era complicado. Já a muito que vinha notando os olhares estranhos do director. Algumas conversas meio transviadas e fora do contexto,foram analisadas pelo jovem. A razão de tanto interesse na sua companhia veio finalmente em forma de convite-proposta, uma espécie de escada da fama.Tratava-se da saída de uma dimensão para entrar no mundo restrito daqueles que tudo podem sem perguntar nada!

- Eu estou apaixonado por ti, ouviu Fábio, da boca de Carlos Catatua.

Aquilo, saído da boca de um homem, soou-lhe muito mal.No entanto, sentiu-se tentado pela vida que Carlos lhe podia proporcionar, pela oportunidade de vir a ser rico, pela possibilidade de poder dizer a sua querida mãe:“mãe,a partir de hoje, dedica-te ao que mais gostas de fazer”. Faz aquilo que quiseres mas, trabalhar,jamais!”

A balança acabou por se inclinar para o lado contrário ao dos princípios que lhe foram incutidos desde o berço, Não por dormir com um homem, mas por o fazer somente por dinheiro, fama, lucro, sendo ele um heterossexual assumido.

No entanto, Carlos Catatua não ouviu naquela hora o que mais desejava. Ele estava perdido de amores pelo jovem mancebo,mas este disse-lhe que precisava pensarbem, que nunca se tinha relacionado antes com um homem, que sempre gostou de mulheres.Embora Carlos lhe tivesse dito que seria verdadeiramente carinhoso e que iria gostar da primeira experiência, mesmo assim,Fábio pediu um tempo.

Nessa noite o jovem não dormiu. Estava assustado com a perspectiva de vir a ser amante deum ricaço, de ir contra tudo aquilo em que seguramente mais acreditava.Reflectiu nos prós e nos contras,pensou em sua mãe e nos valores incutidos desde menino, nas suas próprias convicções e no gosto intrínseco por mulheres.Tudo veio à baila.Poderia manter a relação em segredo,não seria difícil e era certamente do interesse do poderoso director que tal acontecesse. Mas e ele próprio? Onde ficavam os seus desejos mais íntimos? Como e o que diria a Helena quando se afastasse dela para ir com um homem para a cama? Um macho que provavelmente desfrutaria do seu corpo   em troca de uns milhares, em troca da sua dignidade?

Contudo e não obstante todas as reflecções,o jovem Fábio, cego pelo dinheiro fácil, pela vida de luxo e pelo que ela lhe poderia proporcionar, entregou-se de corpo e alma aos devaneios amorosos de Carlos Catatua.Manteria tudo em segredo. Ninguém precisava de saber!

Mário veio-lhe entretanto à mente. Como reagiria na hora em que tivesse de lhe dizer:

- Bem, foi bom trabalhar contigo mas adeus e um croquete!

Será que ele e Helena mereceriam que lhes pregasse tamanha rasteira? Fábio gostava de ambos, especialmente de Helena. Havia sido ela que no início lhe tinha dado   e até ensinado como são e se comportam as verdadeiras mulheres, independentemente das múltiplas diferenças e maneiras de ver a vida.

Helena era natural do estado mais pobre do México, designadamente, Chiapas, tendo saído de casa muito novinha,rumo à grande metrópole,em busca de uma vida melhor.Depois de ter dormido nas ruas, de chegar a prostituir-se por comida; coma ajuda de uma alma boa, acabou por conseguir emprego e casa para morar.

Tanto ela como Mário ouviram a mesma coisa da boca de Fábio, que lhes pareceu frio, até mesmo gélido.

Depois de aceitar ser uma espécie de amante de Carlos, teria de se afastar.Era inevitável!Ninguém, mesmo ninguém poderia saber da inclinação do todo poderoso Carlos Catatua.

Mas para que se concretizasse de uma vez por todas o enlace, a noite tão temida por Fábio teria de acontecer.Foi a noite mais horrenda da sua vida. O seu corpo foi utilizado como moeda de troca, sentiu-se um mero resto de homem, um Serhumano desprezível, um lixo.

Foi penetrado, beijado na boca por um homem, seu corpo servido numa travessa de prata para que outro se regalasse à vontade.E para quê? Porquê? Era esta a pergunta que fazia muitas vezes a si próprio, até se habituar à rotina. Nas alturas em que o seu amante tinha de se afastar, facto que acontecia muitas vezes e por largos meses, a verdadeira fortuna que o outro lhe deixava dava-lhe para guardar e em grandes quantidades, para se relacionar com mulheres, para voltar aser macho por inteiro!

Mas Carlos Catatua não se limitou a dar-lheuma boa vida. Fez questão que o seu jovem namorado estudasse e tirasse um curso. Amava-o tanto, tanto que pensou várias vezes em abandonar a sua mulher e filhos, assumindo de uma vez por todas a sua condição de bissexual. Mas não, não o poderia fazer! Seria o maior escândalo alguma vez visto e um gigantesco revés face às suas pretensões políticas.Manteria tudo como estava.

Fábio, cada vez mais se vinha tornando num namorado competente e carinhoso. Carlos dar-lhe-ia tudo, até a vida, se pudesse e se necessário fosse!

Fábio tinha sido para Mário uma das maiores decepções da vida. De um momento para o outro, o rapaz lançou janela afora toda a suposta amizade que nutria por si. Ainda pensou que havia contraído alguma doença do foro psicológico, mas quando Fábio lhe disse que, na verdade, nunca havia gostado assim tanto dele, bem, caíram-lhe os parentes na lama.Tinha aceitado como amigo um maníaco, um interesseiro, um grandessíssimo filho da puta!

Como é que não se tinha apercebido que o jovem era tão desprezível?Ficou a pergunta por responder.

Quanto a Helena, foi mais complicado comunicar-lhe que o romance entre os dois chegara ao fim.

- Como ao fim?

Tal como Mário, a linda mexicana de longos cabelos negros e de ar angelical, foi surpreendida pela fria comunicação saída da boca de Fábio.

- Acabou!

- É só isso que tens a dizer-me? Não queres pelo menos explicar-me o motivo?

A pergunta não foi respondida.

- Acabou e pronto - repetiu-lhe o seu, até então, namorado.

Numa das visitas a Portugal para matar saudades da sua linda mãe, Fábio não se quis deslocar ao bairro. Preferiu que ela o fosse ver ao hotel de luxo onde se havia instalado, atitude esta que Rosa achou estranha, pois Fábio era daqueles que nunca se havia mostrado incomodado por lá viver.

A desculpa foi que tinha negócios a tratar com empresários e não gostaria que soubessem que ele fora criado no Covil dos Lobos.

- Percebes, mãe?- disse-lhe.

Mas Rosa morria de saudades do seu rebento e não deu muita importância a sua súbita aversão pelo sítio onde havia nascido. Fábio, quando se abraçou à sua querida progenitora, chorou. Rosa achou-o mais uma vez bizarro, pois ele jamais choraria na frentedela!,Desde menino que ele segurava as lágrimas, acontecesse o que acontecesse. Seu coração de mãe e o seu sexto sentido, uma exclusividade feminina,diziam-lhe que Fábio não estava feliz. Tinha-lhe dito que estava a tirar um curso de gestor, que ganhava muito, muito mesmo e que tinha uma linda namorada, mas as palavras eram vazias de sentimento e Os seus olhos revelavam -lhe uma profunda tristeza.

- Filho, estás mesmo feliz, querido?

- Claro, mãe!Porque perguntas - disse-lhe, desviando o olhar.

Foram poucos os dias em que Fábio esteve em Portugal, mas os suficientes para deixar uma boa maquia à sua mãe, com o pedido versos ordem:“trabalhar, jamais!Ouviste?

Rosa ficou de coração a transbordar de saudade, mesmo antes de ele regressar. Por mais estranho que lhe parecesse, a simples comunicação de que estava a tirar um curso de gestor numa das mais prestigiadas universidades do méxico, não a deixou assim tão entusiasmada.

Quando lhe relatou que erao braço direito de um alto cargo da empresa, soou-lhe mal.No entanto e apesar de lhe dizer que estava a viver os dias mais felizes da vida, isso fora desmentido pelos seus lindos olhos verdes.Fosse como fosse, passasse o que se passasse,ela estava pronta para o apoiar.

 

 

 

 

IX.

 

Não obstante a preocupação com o seu filhote, Rosa vivia os dias mais felizes de que se lembrava. Júlio abrira-lhe a porta da felicidade.Depois de ter sido casada com um toxicodependente, de viver por uns tempos com um falso, Júlio mostrava-se completamente diferente, mas para melhor!Com o seu apoio e sem precisar de trabalhar, dedicou-se de corpo e alma àquilo que melhor sabia fazer e que lhe enchia a alma por inteiro: ajudar os mais desfavorecidos,os Desfavorecidos de amor. Desfavorecidos pelos preconceitos de uma sociedade discriminatória, arrogante e egoísta.

Então, com a ajuda do homem que a surpreendia todos os dias pela positiva, constituiu-se a associação Uma Rosa pela manhã.Com o patrocínio financeiro e sentimental do seu querido filho, Uma Rosa pela Manhã transformou-se em pouco tempo na associação mais interventiva ao nível do apoio social àqueles que, de uma forma ou de outra,haviam sido marginalizados, deixados à sua própria mercê, colocados de parte, nomeadamente os drogados, os deficientes, os velhotes, ou seja, aquelas pessoas às quais a vida se encarregou de colocar o rótulo de indigentes.

Mudar, mudar, era a palavra de ordem. Mudar consciências, pensamentos, maneiras de ver os que caíram nas ruas da amargura.

“Não! Recuso-me a sequer considerar a opinião de todos aqueles que dizem que um toxicodependente, um velhote solitário, um deficiente é uma pessoa menor, um incapaz, um lixo da sociedade! Meus amigos, isto que vos disse, todos estes pensamentos estão nas mentes de muita gente, mesmo de muita gente. Um emprego,um livro,uma pintura,todas estas vitórias individuais que tacitamenteexprimem um grito de revolta, um grito de libertação, são olhadas pela maioria, sim meus amigos, pela maioria, com desdém, inveja, até raiva.Não! Não, não estou a exagerar!

–‘Estão a roubar empregos, Deviam estar em casa e defronte ao televisor’.São estes os pensamentos mais frequentes.

Perguntar-me-ão, então: ‘como sabes isso?’

Meus caros,há coisas na vida que não estão escritas, plasmadas num ecrã de computador, numa revista qualquer. Há coisas na vida que só são possíveis e concretizáveis porque se tem a sensibilidade, a intrínseca convicção de que um sorriso, uma palavra bonita, a aparente simpatia, não passam de meras manifestações irrisórias, fugazes, hipócritas!Quero do meu lado muita gente: rapazes, raparigas, homens, mulheres, autarcas, empresários, ministros, sejam eles quem forem, negros, brancos, de todas as etnias, todos, mesmo todos, de coração e alma na causa que quero que seja comum, ou seja,dar amor a quem não o tem!Quem vive com amor,quem o sente diariamente, é certamente uma pessoa mais capaz, mais feliz.”

Este discurso de Rosa, escrito pelo hábil punho de Júlio,masdotado da grandiosa sensibilidade da sua amada, foi aplaudido de pé, por centenas de pessoas que encheram o pavilhão da Escola Secundária que se localizava nos arredores do Covil dos Lobos.

Estava formalmente inaugurada a associação Uma Rosa pela Manhã.

O tempo foi decorrendo ao sabor dos momentos bons, das tristezas,das vitórias pessoais daqueles que lutavam por um mundo melhor, por uma sociedade mais justa, enfim, por uma vida onde todos pudessem ter a liberdade de, pelo menos, tentar ser felizes.

Rosa recebia a visita do seu filho, mais ou menos de dois em dois meses.Depois de alguns anos a estudar, aqueleque fora um jovem sem experiência, transformou-se num jovem adulto deveras inteligente, culto, porém, muito mais frio.

O relacionamento com Carlos Catatua esfriou, para contentamento de Fábio. Foram cinco anos de puro sacrifício,em nome de uma vida desafogada,de uma causa que um dia ele quis defender, porque quis que fosse a dele.Tornou-se um homem amargurado. Sentia-se um traidor, um ingrato para com aqueles que, nas horas em que mais precisou,lhe estenderam a mão.Era o Caso de Mário e de Helena, os quais voltou a procurar depois de constatarque Carlos Catatua já tinha em menteoutro jovem empregado.desta vez,era um moço que trabalhava nos escritórios de Lisboa.

Contudo, a linda mexicana ainda não havia cicatrizado a ferida que ele lhe causou quando friamente lhe disse que tudo tinha acabado.Na verdade, apesar de ter conquistado algum estatuto, graças à sua sagacidade e visão de futuro,no que se referia a dinheiro,no âmbito amoroso, Fábio tornou-se num homem incompleto.Não havia dia em que não pensasse nas duas personagens que abandonou por desejar fervorosamente ser um homem bem-sucedido na vida.

Mas depois de conseguir o que queria,depois de ter enviado tudo aquilo em que mais acreditava   para as calendas gregas e de se subjugar a um homem que lhe comprou o corpo, a alma, a alegria, concluiu que o dinheiro só por si não traz felicidade.

Era tão bom que aqueles que magoou de maneira tão perversa o perdoassem… Mas Fábio sabia muito bem que a dor que custa mais a esquecer é a da ingratidão. Afinal, portou-se como um verdadeiro canalha!Durante os cinco anos em que a relação durou, Fábio foi conhecendo os bastidores do tão particular mundo dos negócios. Foi incentivado a entrar nele.Uma vez lá dentro, Carlos Catatua fez questão de lhe ensinar como os interesses financeiros funcionavam, como melhor se movimentar nos bastidores do poder e das suas especificidades.

Nos primeiros tempos e com as astuciosas orientações de Carlos, pouco-a-pouco, Fábio foi-se entrosando no mundo obscuro dos negócios. Designado de toupeira, ele,tal como muitos outros, era uma espécie de pombo correio. Tudo ou quase tudo passava pelas suas reuniões secretas com os órgãos governamentais, no intuito de se arranjar formas de prejudicar ou beneficiar algumas empresas. Como moeda de troca, conseguia-se uns dinheiritos pela porta do cavalo, um lugarzito na empresa-mãe quando o cargo público fosse ao ar…

Os jornalistas, cada vez mais conhecedores das ilícitas actividades empresariais, andavam de olhos bem abertos.Era preciso arranjar alguém que fizesse o trabalho sujo.As toupeiras faziam-no e faziam-no muito bem.Por isso, eram pagas a peso de ouro.

Fábio, como em quase tudo em que se metia, fazia-o com brilhantismo.Era a toupeira mais requisitada! Com um curso de gestor, com a sabedoria adquirida em consequência de muitas horas à conversa com o seu antigo amante, dotado de uma perseverança e de uma frieza constrangedora, quase sempre conseguia levar a bom porto a sua missão.

Mas a doce Helena estava verdadeiramente magoada. Vivia outro relacionamento, todavia não se esquecera de Fábio. Foram momentos muito agradáveis aquelesque havia passado ao seu lado.

Mas o agora bem-sucedido jovem, não desistiu de tentar reconquistá-la.Helena respeitava o seu companheiro. Era um homem bom e que lhe dava estabilidade, factor que uma mulher preza muito. No entanto e depois de muita insistência do seu antigo namorado, acabou por ceder à perseverança de Fábio.Afinal, ela ainda o amava!

No entanto, tudo teria sido muito simples se o assunto não se chamasse amor. De facto, aquele que parecia ser um homem pacato, benevolente, compreensivo, transformou-se numa pessoa verdadeiramente hostil. Quando Helena lhe disse que queria terminar a relação, ele não só não aceitou como ainda lhe deu um arraial de porrada.Foi de tal forma violentada que teve de ser hospitalizada.

Fábio, quando soube do sucedido, tentou retribuir na mesma moeda,o que se revelou ter sido uma das suas piores decisões,pois O pacato, o benevolente, o pacífico homem, não era nem mais nem menos do que um antigo bandido em processo de regeneração. Como resultado, depois de Fábio encomendar a resposta, virou-se o feitiço contra o feiticeiro efoi ele quem levou a tareia!Os mesmos que haviam sido pagos para partir o canastro ao homem, eles próprios encheram o corpo de Fábio com nódoas negras.

Depois de algum tempo de molho, depois de Helena e ele se restabelecerem, depois de fugirem para um outro Estado do México, ambos, por fim recomeçaram uma nova relação.

Mas os problemas do casal ainda mal haviam começado.Paco Hernandes, depois do duro golpe infligido por Helena,   não estava pelos ajustes. A sua vingança ainda mal havia principiado.O casalito não iria livrar-se dele assim tão facilmente.

Ora, longe de imaginarem que o dito cujo se preparava para lhes dar caça, ambos planeavam morar em Portugal.Os projectos eram mais que muitos. Helena, era certo, não tinha estudos. No entanto, isso não seria problema. Fábio tinha lhe dito que quando vivessem nas terras lusas realizaria um dos seus sonhos:transformá-la em dona de um cabeleireiro! Contudo, a felicidade é acoisa mais imprevisível que existe. É o sentimento mais difícil de manter,a necessidade fundamental para quem precisa de olhar o futuro com alguma esperança. Depois de tudo acertado no que se referia a datas, os jovens apaixonados viviam os seus melhores momentos.Mas isso mudou abruptamente. Paco Hernandes entrou novamente em acção. O bandido, o homem que um dia pensou em reformar-se do mundo do narcotráfico, voltara ainda mais cruel do que já fora.A raiva vinha-se acumulando desde o dia em que a sua companheira o havia trocado por um português.Não! No seu mundo não havia espaço para traições.Eles teriam de pagar pela afronta.Ninguém, mesmo ninguém se ria de Paco Hernandes, “El Torero”, como era conhecido entre a bandidagem.Não lhe foi difícil encontrá-los. No espaço deum mês, já andava rondando o apartamento do casal. Desta vez nada falharia! A vida é uma frágil linha que a qualquer momento se poderá partir. Fábio sentiu isso na própria pele. O casal planeava uma ida ao cinemaquando,inesperadamente, Paco surge-lhes pela frente na garagem, quando se preparavam para entrar no veículo.

- Podem começar aformular os vossos últimos desejos - disse-lhes ele, apontando-lhes uma caçadeira de canos cerrados.

Viram-se então perante os seus derradeirossegundos de vida, talvez minutos, dependendo do nervosismo do dedo que tocava o gatilho.

Como pior não podia ficar, Fábio tentou e conseguiu fazer com que tanto a sua vida como a de sua amada fossem preservadas. Instintivamente, como caça que tenta escapar ao caçador, lança-se repentinamente e desesperadamente sobre o agressor.

Ouviu-se um estampido e, logo a seguir,um grito.Fábio estava caído sobre Paco! Felizmente, a bala só o atingira no ombro. Não havia tempo para se contorcer com dores,era uma questão de sobrevivência que estava agora em causa.

- Fábio! Fábio!

Helena gritava o seu nomeenquanto os dois rebolavam pelo chão. O sangue jorrava abundantemente do buraco que a bala havia feito. Mas se Paco era homem experimentado no universo da delinquência, Fábio era rapaz fisicamente muito mais forte.Depois de afastar a arma para longe das mãos de Hernandes, depois de Helena a ter apanhado, surpresas das surpresas!Helena encostou o cano da arma à cabeça de Paco e, mais uma vez, ouviu-se um estampido mas, desta vez, abafado. Ela havia-lhe estoirado os miolos!

- Já tinhas manejado alguma arma antes? - perguntou-lheFábio, depois de se terem livrado do corpo e de ter tratado do ferimento no ombro.

Regressados do bosque onde, literalmente,havia sido despejado o defunto, Helena fez questão de responder a Fábio:

- No meu estado, atulhadode traficantes e onde a minha família não fugiu à regra, todos, mesmo todos, mais tarde ou mais cedo teriam de pegar em armas.Era inevitável!

- A tua família dedicava-se ao tráfico?

Helena sentou-se na beira da cama, ainda seminua, Pois eles mal haviam acabado de fazer amor.

- - Era a droga ou a fome!

- Porque não me disseste isso antes?

- Adiantaria alguma coisa?

Fábio mirou-a de alto abaixo e tocou ligeiramente nos seus seios, dizendo-lhe:

- Não,não adiantaria nada.O que interessa é o que sentimos um pelo outro.

Helena sorriu-lhe e lançou-se sobre ele,fazendo-o gritar.

- Bolas! Minha ferida!

Voltaram a fazer amor e, apesar dos últimos trágicos acontecimentos, sentiam-se felizes.Afinal, amavam-se!

Como o amor não era exclusividade deste jovem casal, Rosa e Júlio também viviam uma linda história.O político, funcionário dos correios ou como o quisessem designar,passou rapidamente de mero angariadorde eleitores para um dos mais altos cargos do recém-criado partido mas que, em pouco tempo e de forma surpreendente, cativou milhares de cidadãos para a causa que queriam que fosse comum.

Júlio era vice-presidente do PPT -Partido Popular dos Trabalhadores – mas, Não obstante dedicasse quase todo o seu tempo em prol do Partido, havia sempre espaço para a razão da sua existência: Rosa.Enquanto um se dedicava à política, o outro geria a Associação.Assim, Era só no finalzinho da noite que falavam do seu dia, dos problemas, das novidades, enfim, de tudo.

Depois de Júlio ter alugado o seu apartamento a um jovem casal, mudou-se de armas e bagagens para casa da sua amada, que o recebeu com um sorriso e uma vontade louca de fazer amor com ele,após uma espera que já se vinha tornando quase insuportável.

Júlio havia cumprido aquilo que ela lhe havia pedido um dia:

- Por favor, Júlio, terás de ter paciência comigo, pois eu ainda estou muito fragilizada.

- Como quem ama compreende, segundo o pensamento de Júlio, prometeu-lhe que não a pressionariae cumpriu-o, até ao dia em que era inevitável não se amarem.

Foi uma longa espera,com uma vontade reprimida,com desejos, fantasias e tudo o mais. Todavia, valeu a pena, pois davam-se muito bem na cama! No entanto, ambos sabiam e até falavam disso, que a vida é matreira, trapaceira, imprevisível, razão pela qual resolveram que, se algum viesse a ter alguma dúvida, problema,fosse o que fosse, o outro teria de o saber, pois não podia haver segredos entre duas almas que se amam.

Júlio e Rosa não faziam mais nem menos do que qualquer casal que partilha o mesmo teto e inicia uma vida em conjunto.Contudo, conscientes que as palavras   não são meros conjuntos de letras, prometeram que iriam ser francos um com o outro.E foi assim que, depois de saciarem os desejos sustidos por um hiato temporal que se tornou mais longo do que imaginariam,deram início a uma união que se transformou num exemplo no Covil dos Lobos.

Mas havia muito trabalho pela frente. Rosa e Júlio estavam intimamente ligados,contudo alguns interesses mostravam-se incompatíveis,nomeadamente, no âmbito social. Tinham maneiras díspares de interpretar a inclusão da população mais desfavorecida na sociedade.

Quanto a Rosa, entendia que se deveria criar oportunidades para aqueles que duma maneira ou de outra ficaram afastados dos estudos, independentemente do ambiente em que foram criados. Não acreditava nos programas que os sucessivos governos haviam implementado e que tinham como objectivo transformar,num curto espaço de tempo, analfabetos em pessoas com a escolaridade obrigatória.

- Não seria mau, se houvesse oportunidades que os acolhessem - dizia Rosa. - Esses programas não tem como intuito educar mas, sim, modificar as estatísticas - afirmava.

Rosa acreditava mais em cursos de formação tirados no contexto laboral e por empresas com carência de mão-de-obra em determinadas áreas: Um curso, um emprego!

Não obstante os pontos de vista diferentes no que se referia aos grupos sociais mais vulneráveis,ambos tentavam não levar para casa aqueles assuntos que os colocavam em campos opostos.Respeitavam-se e isso era suficiente.No entanto,Rosa e a sua maneira de ver a vida e a sociedade, despertaram a atenção dos partidos tradicionais.Ela era muito popular!Foi muitas vezes abordada parase juntar a eles. Chegaram a oferecer-lhe cargos de relevância e notoriedade, inclusivamente, a possibilidade de um dia vir a ser presidente de uma autarquia, mas Rosa tudo recusou. Não estava nos seus horizontes tornar-se numa mulher da política. A sua política passava por transformar consciências e não por estar atrás de uma secretária a colaborar em leis, sem a mínima possibilidade de vir a tornar-se verdadeiramente útil. Gostava de estar no terreno, a ver com os seus próprios olhos, a sentir o pulsar da sociedade e daqueles que a formavam.

Depois de cinco anos em conjunto, eis que surgiu entre o casal o seu primeiro contratempo. Marta surgiu-lhes literalmente porta adentro!A volumosa africana havia sido completamente escorraçada pelo antigo namorado, amante, ou coisa idêntica.

Rosa, tal como Marta esperava, não a deixou desamparada.Embora depois da sua amiga ter emigrado não se tivessem falado muito, a amizade nunca desaparecera.

- Só quem não me conhece poderia pensar o contrário! – dizia Rosa.

Júlio, depois de Marta ter pedido abrigo,confrontou Rosa com a possibilidade de mandar a negra embora.

- Não gosto dela. Não gosto da sua maneira de ser e de falar. Não a quero a viver debaixo do mesmo teto que eu!

- Que desilusão, meu Deus - respondeu-lhe Rosa, com os olhos cheios de lágrimas. - Jamais pensei ouvir isso da tua boca - acrescentou.

O clima tornou-se um pouco pesado. A relação foi posta à prova e manteve-se porque Rosa, mais uma vez, preferiu ceder a manter sua decisão.Então, resolveu contar à sua amiga porque o fazia e porque cedeu.

- Não quero ser um entraveà vossa relação - disse-lhe a sua amiga.

Mas Marta não lhe contou tudo.Não lhe disse que tinha apanhado várias vezes Júlio a vigiá-la no banheiro, enquanto tomava duche. Não lhe falou também das vezes em que ele se fazia de distraído e entrava sem bater, todas as vezes em que ela estava na casadebanho, nem dos dias em que o apanhou com os olhos nas suas mamas. Não lhe contou que o que achava é que ele só queria afastá-la, provavelmente, para não cair na asneira de lhe tocar.

Marta sentiu que embora Rosa lhe tivesse dito que eram muito felizes, essa suposta felicidade, amor, já teria tido melhores dias. Júlio não estava a ser sincero!

A mulata tinha razão.Júlio estava perdidamente deslumbrado como seu corpo.

Não tinham ainda passado dois dias completos desde que acedera ao pedido emocionado da sua amiga Rosa quando lhe batem a porta do pequeno estúdio que ela generosamente lhe pagava, enquanto não arranjasse emprego.

- Júlio?A que devo tanta honra?

Marta sabia-o! As atitudes dele davam-lhe a entender que estava doido por lhe saltar em cima.

- Posso entrar?

Marta ainda titubeou mas acabou por aceder.

Depois de o colocar à vontade e de lhe oferecer um café, sentou-se ``a sua frente e esperou que ele desembuchasse.

Então Júlio,um homem muito mais descarado do que no primeiro dia em que se encontraram, começou por lhe dizer:

- Sei que estás a passar um mal bocado. Eu vim aqui com o propósito de te ajudar, se aceitares a minha ajuda, claro - declarou.

Marta sorriu-lhe mas manteve-se calada e de olhos nele. “Vai lá, filho da puta”, pensou, esboçando um sorriso. “Vai direito ao assunto, grandessíssimo cabrão!”

- Não quero que me interpretes mal – acrescentou, colocando as mãos nos joelhos. - Como deves saber eu amo Rosa mas existem coisas que um homem não consegue controlar.

- E quais são?- perguntou-lhe Marta, adivinhando a resposta.

- A vontade de te ter nos braços, de fazer amor contigo, de desfrutar desse maravilhoso e luxuriante corpo. Eu dou-te o que quiseres, coloco-te num lugar onde possas ganhar bem, dou-te uma vida boa - concluiu.

Marta levantou-se e virou-lhe o enorme traseiro.Esforçando-se por não desatar àpancada, perguntou-lhe, de costas voltadas:

- Queres dizer, uma espécie de amante…É isso?

- Sim, se quiseres chamar-lhe isso, pode ser - retrocou Júlio.

- Preciso pensar um pouco - disse-lhe Marta,voltando a mirá-lo.

Júlio levantou-se e foi em sua direcção. A um metro dela, retira do bolso um maço de notas e estende-lho.

- Tens aqui 150 euros…E isso é só o começo!

- Não! Desculpa mas… só quando eu tomar uma decisão - afirmou a mulata.

Posso dar-te um beijo?

Marta negou-lhe esse pedido.

- Se calhar vais dar muitos, querido…, mas no futuro - respondeu.

A morena estava verdadeiramente desiludida com os homens, mas sobretudo com Júlio, companheiro da sua querida amiga.

Depois de ele ir embora sem levar nada, chorou amarguradamente. Olhou-se ao espelho perante o qual se colocou nua. Um metro e oitenta, umas pernas grossas, ancas largas, mamas gigantescas, cabelo negro que lhe chegava ao traseiro e uma boca carnuda, estavam a causar-lhe muitos problemas. Recordou-se do seu companheiro. Havia pensado que tinha encontrado um homem que não a olhava só como objecto sexual mas como uma mulher que tinha sonhos, objectivos e desejos além dos libidinosos.

Marta chorou. Não sabia como nem o que dizer à sua grande amiga. Se ficasse calada, podia ser acusada de conluio. Se lhe contasse, dar-lhe-ia um enorme desgosto.

- Merda para a vida – murmurou, limpando as lágrimas.

Enquanto Marta rebentava a cabeça de preocupação, Rosa, por seu lado, já estava de sobreaviso.Afinal, a sua vida e os problemas inerentes apetrecharam-na de uma espécie de anticorpos contra asdesilusões. Desejava que tudo fosse diferente,Gostaria mais se tudo pudesse ser um pouco menos cáustico,seria bem melhor se não se passasse pelas provações, porém, não se podia fugir!

Júlio, vinha ela reparando, comportava-se de maneira distinta daquele homem meigo, afável, carinhoso e compreensivo dos primeiros tempos.Era bem claro para ela que tudo estava prestes a terminar ou já tinha terminado!Vinha fugindo de lhe comunicar que ela, Rosa Marques, sim, essa Rosa que em tempos sofria e se dava ao sofrimento em benefício dos outros, morrera , estava morta e sepultada!

Marta desconheciaessa transformação, sofria à toa.

Mesmo quando aparentemente cedeu perante a exigência de Júlio, isso não passou de uma forma astuta de criar espaço para mandar Júlio às urtigas. Mas aquilo que os olhos não vêem, o coração não sente, já dizia opovo…E com alguma razão...

Entretanto, Rosa era quase todos os dias bombardeada por notícias sobre o comportamento do seu companheiro. Adiou, até aonde foi possível,sofreu muito mas prometeu a si mesma que jamais passaria e sofreria como dantes, fosse por quem fosse, excepto por seu querido filho.

Amava ainda muito Júlio, todavia, quem não se comportava com seriedade deixavade ser merecedor ou merecedora do seu carinho.Doía muito, sim, porém,não tanto como no passado. A vida tinha-lhe ensinado que o bem mais precioso que se podia ter era o amor próprio! E isso, isso ela havia perdido muitas vezes. Podia-semuito bem ser uma alma generosa, uma pessoa benevolente, sem se perder a dignidade!

Jamais voltaria a adoptar o lema implícito na questão “será que sou merecedora do seu amor?” em vez de“será que ele, ela, são merecedores da minha amizade, amor?” Rosa modificou-se,em vez de ser modificada. Transformou-se, em vez de a transformarem. Só assim poderia encarar os anos que lhe faltavam, com a crença, sempre presente,de que todos e todas podem encontrar o caminho certo, mesmo que os outros pensem o contrário.

Ouvir, nãosignifica mudar. Ver, não significa distinguir!No labiríntico percurso da vida, o encontrar da saída não quer forçosamente dizer que tudo ficará bem mas, sim, que fomos capazes!

Rosa sentia-se melhor assim, consigo própria e com a sua consciência. Ela sabia que não seria fácil, pois talvez quem mais viesse a sofrer fosseela mesma.Aprendeu com os pontapés, com as quedas e com os desgostos que, mais valia ser-se directo do que sofrer e perder-se tempo com algo que já morrera ou que estava em vias de morrer.

Chegou então o dia do confronto, para surpresa de Júlio. Tendo sido chamado de urgência aos escritórios da Associação,foi aí que Rosa fez questão de lhe comunicar a sua decisão.

Júlio surgiu, ainda alarmado, perante Rosa,que estava deslumbrantemente vestida. Usava o seu longo cabelo loiro rebeldemente caído sobre os ombros, um longo vestido branco de decote pronunciado, um ligeiro tom de rosa nos lábios e uns brincos da mesma cor,que pendiam das suas minúsculas orelhas. O seu perfume reinava no amplo espaço.

- Ó cisne, como estás lindo hoje!- como gostava de a chamar.

- Senta-te, por favor, pediu-lhe ela.

- Não me dás um beijo?

Levantando-se, Rosa foi colocar-se junto da janela que tinha vista sobre o tejo.

- Que tens hoje?

Júlio, de repente, achou-a muito estranha. Ela nunca se havia comportado daquela maneira.

- Que tens? -repetiu. - Porque me chamaste com urgência? Ouviste ou não?

- Podes pôr-te de pé - pediu-lhe.

- Claro - respondeu-lhe Júlio.

Rosa afastou-se da janela e foi em sua direcção, ficando a escaços centímetros dele.

- Olha para mim,bem no fundinho dos meus olhos - pediu-lhe.

- Sim, para quê?

- Olha!

- Estou a olhar - respondeu-lhe Júlio.

- Que vês?

- Um lindo mar azul - declarou.

- Só?

- Ah, espera. Vejo também um barco que navega nesse oceano cheio de beleza.

- Não está ninguém nesse barco, - perguntou-lhe Rosa, de olhos fixos nos dele.

- Vejo, vejo,espera..Vejo um casal abraçado! É isso!

- Errado.

- Como?errado?

- Nesse barco só está uma pessoa.

- Queres parar de ser enigmática e dizeres-me o que queres?Bolas!

Júlio sentiu um arrepioa percorrer-lhe o corpo. Na verdade, já esperava que o que vinha fazendo lhe chegasse aos ouvidos.

- A outra pessoa que vislumbraste no barco, há muito que a lançaste ao mar - disse-lhe Rosa, voltando para junto da janela.

- Eu lancei ao mar? Mas de quem falas?

- Lançaste-me a mim.

- Que se passa contigo?Responde,caralho!

Júlio enfureceu-se. Rosa não mudou o tom de voz mas pediu-lhe que tivesse tento na língua.

- Eu ajudei-te. Eu permiti que estudasses e realizasses um dos teus maiores sonhos.Que queres mais de mim?

Rosa sorriu-lhe.

- Queres que te diga o que pretendo?Ou melhor, o que pretendia de ti?

- Se souberes - respondeu-lhe sarcasticamente Júlio.

- Seriedade!Verdade! Honradez! Sinceridade!

Júlio nunca tinha visto Rosa tão transtornada.Mas Rosa continuou:

- Não me deste nada que eu, pelos meus próprios meios, não o pudesse conseguir.Graças à generosidade do meu querido filho, sim, graças à ele, aquela pessoa que, tenho a certeza,me ama de verdade, posso dizer hoje em dia que vivo e cumpro um sonho.Não porque tu o permitiste, não,mas porque eu e o meu filho assim o quisemos! Só estás a revelar o que na verdade és, um homem interesseiro e sem um pingo de vergonha na cara. Quem precisou de quem? Isso jamais poderia estar em equação!

Júlio manteve-se calado, sem palavras.Rosa, era evidente, estava verdadeiramente desiludida.

- Quem ama não lança à cara o que fez, aquilo que deu ou o apoio que deu! Mesmo depois de uma qualquer separação, uma pessoa íntegra, séria, intelectualmente honesta, jamais fala de assuntos semelhantes, porque o que na realidade interessa é a pessoa e não o que ela poderá dar.

Enquanto, literalmente, despejava o que lhe ia na alma, não havia tempo para interpelações da outra parte.

- Hoje posso dizer que estou contigo porque te amo. Hoje e aqui, posso dizer-te que o meu sentimento por ti não desapareceu. Aqui e agora, também te digo que não és merecedor do meu amor! E por isso, ordeno-te, digo-teque, quando chegar a casa, não te quero ver lá, nem a ti nem às tuas coisas. Aquela casa é minha.Foi o meu querido filho quem ma ofereceu.

Dito isto, virou-lhe as costas e voltou para junto da janela mas, desta vez, dizendo, ao espreitar lá para fora:

- O rio hoje está mais lindo do que nunca!

Quando se apercebeu que Júlio havia saído, as lágrimas desatarama brotar dos seus lindos olhos azuis.

Quando Rosa chegou a casa, já passava da meia-noite.Queria ter a certeza de que já lá não encontraria Júlio.

Alguns minutos depois, ouviu baterem a porta. O seu coração deu um pulo no peito equando abriu, deparou-se com Marta.

- Posso?

- Claro, amiga!Entra, entra - disse-lhe, virando-lhe as costas.

Marta constatou que ela tinha estado a chorar.

A casa estava quase as escuras, só havendo luz na pequena sala. Marta foi encontrá-la sentada no sofá, de cabeça entre os joelhos.

- Oh amiga. Que se passou, querida?

Não obstante a sua pergunta, Marta suspeitou de imediato que Rosa já estaria a par de tudo. Foi então que a sua visita mudou de sentido. Vinha dizer-lhe com quem ela estava, todavia, Deusnão o permitiu. Sentou-se ao seu lado e puxou-a para si, murmurando:

- Vai ficar tudo bem, meu amorzinho. A tua morena está aqui, não te abandono.

- Não tenho sorte nenhuma com o amor!Primeiro foi Gustavo, que se deixou dominar pelo vício. Depois, foi Sandro, um verdadeiro trocatintas.Quando pensei que a vida me tinha dado o homem com quem tanto sonhei, ou seja, justo, carinhoso, apanhei o maior   desgosto de todos!

Marta limitou-se a ouvi-la. Sabia muito bem como Rosa se sentia.Afinal, ela havia percorrido o mesmo caminho, ainda não totalmente ultrapassado.

Nessa noite, depois das lágrimas vieram os porquês, as falhas, os descuidos durante o tempo em que durou a relação.

Ambas conversaram pela noite dentro, só adormecendo quando já o sol entrava pelas frestas da janela.Nos dias subsequentes,verdadeiramente dolorosos, Rosa já estavaminimamente recomposta.A vida já lhe haviadado calo suficiente para não se deixar ir abaixo como noutras ocasiões.

Marta manteve-se sempre por perto.Tratava-se, afinal, de uma dor comum às duas. Ficaram ainda mais amigas, se é que isso fosse possível.Então, Marta foi convidada a integrar a equipa que dava apoio aos sem-abrigo da grande cidade, função esta que abraçou de corpo e alma.Mas as surpresas ainda não haviam terminado. A sua amiga quase que lhe ordenou que fosse viver novamente com ela.Foi assim, juntinhas, amigas que, lambendo as feridas uma da outra,conseguiram cicatrizá-las e retomaram o normal curso da vida.

Quanto a Júlio, depois da declaração de Rosa, o mundo, de repente, pareceu desabar sobre a sua cabeça. Então, vieram os remorsos, as angústias, as desilusões,tudo veio à tona, inclusive o porquê de se ter comportado da maneira que se vinha comportando. Porque o teria feito, se tinha a seu lado uma mulher maravilhosa, em todos os sentidos?Que motivos teria tido para a trair?

Enquanto Júlio se penitenciava, Rosa e Marta uniram forças, pelo menos as que ainda restavam e decidiram que o amor teria de esperar um pouco.Era tempo de outros projectos.

 

 

 

 

X.

 

A milhares e milhares de quilómetros de distância, longe de imaginar o que havia ocorrido, Fábio e a sua linda Helena planeavam vir morar para Lisboa. Afinal, ele não tinha mais nada que o prendesse ao México.

Carlos era passado e, depois do sucedido com Paco, o regresso tornou-se uma inevitabilidade. Ambos tinham a consciência de que haviam mexido numninho de vespas. Paco poderia muito bem estar a agir com a ajuda de outros, tendo em conta a rapidez com que haviam sido encontrados.

E não se enganaram. O velho bandido estava retirado da alta roda do crime mas, para muitos jovens criminosos, ele era ainda uma referência. El Torero” era um símbolo paraos novatosno mundo do narcotráfico. Retirado, sim, mas respeitado!Cansado, sim, mas de vez enquanto procurado por antigos companheiros para lhe pediremorientações.

Vestido com a capa de homem pacato, Paco não deixou de ser um dos mais bem-sucedidos traficantes e senhor de uma fortuna enorme. Era dinheiro que mantinha fora do país, designadamente,em paraísos fiscais.

Helena tinha conseguido, pouco-a-pouco, dar-lhe a volta ao miolo a ponto de ele querer mesmo transformar-se definitivamente num homem do povo e nada mais.Mas quando tomou a decisão de abandonar, de uma vez por todas, o mundo que o enriqueceu, ouviu da boca dela que tudo tinha terminado. Nessa hora, Paco, qual vulcão adormecido hámuito, viu surgir em si uma erupção de sentimentos maléficos, transtornando-o a ponto de só desejar ver a linda cabeça de Helena rolar pelo chão.Reavivado por uma raiva sem igual, Paco constatou que ser-se normal é mais complicado do que à partida poderia julgar.

Quando era membro destacado da organização criminosa, além de ter as mulheres todas que desejassee o acesso aos maiores luxos, tanto quanto se lembrasse, nunca tinha sofrido tamanho desaire.

Quis ser uma pessoa diferente, pois tinha a consciência de que,se não o fizesse, mais tarde ou mais cedo,o seu futuropassaria pelas grades de uma sela ou,no pior dos cenários, por uma bala na testa. Assim, opapel de homem bonacheirão, dono de um pequeno quiosque,tinha como intuito começar aquilo que pensava ser uma vida tranquila.A idade ia avançando e ele só pretendia desfrutar calmamente do dinheiro   que havia amealhado. O mundo do crime era um sobressalto permanente e ele já havia economizado o suficiente para viver desafogadamente os anos que lhe restavam, longe de correrias. Enquanto andou embrenhado na organização, não haviam noites bem-dormidas, jantares tranquilos ou dias calmos.Eles eram os fora da lei e a polícia procurava-os!

No entanto, Paco acabou por morrer da maneira mais estúpida que um criminoso algum dia poderia imaginar:às mãos de um casalinho fugidio!

Uma vez encontrado o corpo e alertada a organização, logo uma dúzia de seguidores se prontificou para vingar o seu ídolo.Portanto, as perturbações do casal só agora tinham iniciado!

Entre os dozehomens que se voluntariaram, havia um que se destacava.De meia-idade,de seu nome Daniel, era conhecido como “O Cão Esganado”e ficou responsável pelo assassinato do jovem casal e por fazê-lo sofrer muito antes de o mandar para os anjinhos.

Daniel era fruto de um dos estados mais pobres do México, pejado de criminosos que abraçavam tal função desde novinhos eonde governossucessivos tentavam combater os cartéis.

Contudo, a guerra parecia nunca ter fim a vista, pois a corrupção e os informadores proliferavam no seio   do próprio executivo.

No México, haviam estados praticamente governados pelos narcotraficantes, sendo as suas palavras escutadas e as suas atitudes seguidas pela população, uns por medo, outros por necessidade.

Helena sabia disso como ninguém, pois havia sido criada por uma família que se dedicava ao narcotráfico e a obedecer aos cabecilhas da zona.

Cada cidade era governada por um ilustre bandido, tendo abaixo de si, na hierarquia,uma espécie de capatazes quese limitavam a controlar os críticos e os duvidosos.Oterror pairava, qual nuvem carregada de chuva, podendo a qualquer momento haver mortos.Os rituais de inicialização na profissão de assassino, iam desde o desmembramento de corpos de desgraçados, capturados como bichos nas suas próprias casas para que seus órgãos servissem de repasto aos novos candidatos a bandidos, até a sujeição a torturas sub-humanas , testando até ao limite a sua resistência.Os cabecilhas achavam que esta era a melhor maneira de treinar verdadeiros sanguinários,homens que seriam capazes de matar até as próprias famílias, se tal fosse necessário, em benefício da irmandade.O certo era que surgiam cada vez mais jovens mancebos, querendo seguir a profissão de narcotraficante. Portanto, os líderes estavam tranquilos quanto a sucessão, pois os novos correligionários eram tão ou mais cruéis que os que se reformavam ou morriam.O povo vivia assombrado pelo medo a ponto de, em alguns estados do grande México, andar na via pública ser considerado um acto heróico.

O maior cliente dos traficantes eram os seus vizinhos Estados Unidos da América.A luta entre os que queriam acabar com a droga e os que pretendiam mantê-la era desigual. Meia-dúzia de famílias de narcotraficantes administrava todo o território Mexicano. Quando alguns eram presos, outros tomavam o seu lugar, dando assim continuidade ao negócio. A economia, alimentada pelo consumo de estupefacientes, gerava mais valor que o PIB de muitos países. Ninguém se admirava quando se ouvia dizer que era impossível terminar com essa indústria que alguns estados diziam pretender exterminar, mas que na verdade pouco faziam nesse sentido. Assim sendo e cada vez mais, pregoavam acordos com os grandes fornecedores mundiais e com os cartéis que se localizavam na América Latina, mas a realidade era bem diferente.Terminavam com os exércitosdos barões, mas a produção de cocaína não diminuía.Poderia dizer-se que eram acordos de cavalheiros:“deixas de matar pessoas e eu fecho os olhos quanto à plantação de coca”.Ora, As secretas negociatas e o ténueequilíbrio entre a permanência ou a queda de muitos governos,por vezes ou até mesmo muitas vezes, eram desrespeitados.Umas vezes pelos governantes, outras, pelos narcotraficantes.

Ora Fábio, segundo Helena, estava a demorar demasiadono seu regresso a Portugal. Conhecedora das mentes perversas dos bandidos, admirou-se do facto de ainda não terem sido por eles descobertos. Com uma rede de informantes espalhada por todo o território,achou estranho ainda estarem tranquilos.

Repetidamente, tentava apressar Fábio mas o jovem, desconhecedor, mantinha-se impávido e sereno.

- Carinho, esta gente não brinca em serviço!

- Coração, como podem descobrir-nos?- respondia-lhe, sorrindo.

No entendimento de helena, foi com alguma sorte que escaparam, sem grandes sobressaltos, ao olho que tudo vê, tudo controla. Fábio,na sua ignorância quanto à organização criminosa,desde que pagou para aplicarem uma lição a Paco, a partir desse mesmo instante, ficou debaixo da mira da irmandade.Havia batido à porta errada!

- Bons dias. Ouvi falar que tem homens por sua conta e que, se pagarmos bem, eles prestam uns servicinhos.Verdade?

Fábio, aconselhado por um dos empregados da empresa, um mexicano que em tempos teve de recorrer aos ditos cujos,foi esbarrar com um dos responsáveis pela zona.

- Como se chama o cabrão- perguntou-lhe.

- Paco Hernandes!

- Como?

- Paco Hernandes - repetiu Fábio, inocentemente, sem sequer imaginar que estava naquele preciso momento a encomendar a sua própria tareia.

Pagou antecipadamente e ficou à espera que o assunto se resolvesse.Depois, depois, bem…,foi ele quem levou uma coça de criar bicho!

Helena, ciente dos riscos inerentes à entrada na malha apertada da rede criminosa, desdobrou-se em alvitres mas todos caíram em saco roto.Contudo,saíram do México sem um único arranhão no corpo.

Nessa altura, já a mãe de Fábio e a associação viviam um dos seus melhores dias,tendo sido agraciados pelo Presidente da República!

Quanto a Júlio,, procurou Rosa e, de joelhos,suplicou.Pediu-lhe perdão masnão obteve o resultado pretendido. Rosa havia decidido que nas questões sentimentais, nas questões afetivas, só entraria o seu filho e, agora,a sua nora Helena,pelo que ele lhe havia contado. Estava desejosa por abraçá-los e recebeu a notícia do regresso com muita emoção. O seu filhote estaria novamenteà mão de semear!

No entanto, Júlio ainda mexia consigo, era preciso mantê-lo a distância, não fosse a carne ceder, pensou Rosa ­quando pediu a Júlio que se mantivesse bem longe dela e dos seus amigos, especialmente da Marta que, quando constatou que já estava recuperada do choque, lhe contou o que havia sucedido naquela noite:

- O gajo olhava-me… parecia que me comia com os olhos!

- Quem manda ser boa como o milho?

- Boa és tu.Eu só sou vistosa - respondeu-lhe Marta.

- Cuidadinho - rematou Rosa,em murmúrio.

- Que disseste?

- Nada, amiga, nada - respondeu-lhe Rosa, inalando uma grande porção de ar.

 

 

 

 

X.

 

No dia da chegada de Fábio,as duas amigas, enquanto aguardavam que o avião aterrasse, divertiam-se com os olharesdos homens presentes no aeroporto.

Mas, mais uma vez, o fator imprevisível, a vida, pregou-lhes outra partida, particularmente a Rosa que, um dia depois de ter matado as saudades do seu filho, recebeu a notícia mais triste de todas: Marta fora atropelada a caminho da associação e entrara em coma profundo, no preciso dia em que Rosa decidiu ficar por casa, a preparar ela mesma o almoço de boas-vindas ao casalinho lusomexicano.

O dia que se previa ser repleto de coisas boas, transformou-se num ápice num dos dias mais negros para Rosa.

Marta não resistiu! Faleceu dois dias depois do acidente. Morreu no dia em que ambas tinham planeado tirar férias juntas e fazer um cruzeiro pela Escandinávia.

Mas no que respeitava a problemas, tudo estava ainda no início. Depois de um enterro em que nem sequer um familiar da sua amiga esteve presente, depois de semanas a fio chorando a morte de Marta, Rosa, ainda um pouco debilitada, foi confrontada com desvios de dinheiros da associação.

O responsável pela área financeira de Uma Rosa pela manhã fugiu com todo o dinheiro que havia na conta da associação e esta ficou a zeros. Todos os projectos,quer os futuros quer aqueles que se encontravam em andamento, tiveram de parar de imediato. Parte do problema foi resolvida com a ajuda de Fábio mas isso não era suficiente e Rosa não aceitaria mais auxílio dele.Não queria hipotecar o futuro do casal no domínio financeiroe um empréstimo bancário foi a solução.

Enquanto a polícia não capturasse o ladrão e, com sorte,recuperasse algum do dinheiro roubado, teria de se governar com o que pedira à instituição bancária.

Era dor demais para um só coração. Eramcontratemposuns atrás dos outros. Demasiados desaires para uma só pessoa. Então, inevitavelmente, Rosa caiu em depressão. Durante o tempo em que durou a sua profunda angústia, a associação foi gerida por Fábio, que se instalara nos arredores do bairro, num empreendimento de luxo. Helena ficou encarregada de cuidar da sua sogra. Fábio queria que ela fosse como que sua sombra.

Rosa definhava dia após dia. O seu corpo, outrora esbelto, secava como planta submetida a salmoura.

Júlio, depois de ouvir o que queria e o que não queria da parte de Fábio, foi autorizado a visitá-la.Quando saiu do apartamento, ia com as lágrimas nos olhos e cheio de remorsos. Afinal ele tinha contribuído para o estado em que a tinha encontrado.Prometeu a si mesmo que não a abandonaria.

Foram dias   e dias de pura angústia,aqueles por que Fábio passou. A sua querida mãe estava   a abdicar de viver!Helena esmerava-se em cuidados mas Rosa não ajudava em nada.Pelo contrário, só dificultava.O casal decidiu então que o melhor seria interná-la num hospital.Rosa deixou de falar e já nem sequer chorava.O seu saco lacrimal secara.

Seu filho, feito da mesma fibra, enquanto Rosa se recuperava, geriu a associação e colocou-a novamente nos carris. Contudo, conhecedor como ninguém dos corredores secretos do poder, locais que percorreu vezes sem conta, viu-se na obrigação de voltar à fala com Carlos Catatua, que na altura estava a viver outro romance secreto.Precisava que a associação fosse contemplada com um apoio estadual, e com alguma urgência. Depois de falarem sobre o passado em conjunto, depois de Fábio sentir algum sarcasmo da parte de Catatua, teve de lhe confessar que o tempo em que foi seu amante, foi o mais difícil da sua vida. Carlos limitou-se a sorrir, dizendo-lhe:

- Para mim, foi dos melhores!

- Metes-me nojo!- enfureceu-se Fábio.- Posso arruinar-te!

O que parecia uma conversa cordial, descambou para a injúria.

- Eu posso fazer a parte que nunca gostei de ti e fazer da tua vida um inferno!

- Maricas!

- Chulo! - retrocou Carlos.

- Tenho-te na mão, sabes?

Carlos limitou-se a sorrir de novo.

- Não, não tens nada.Fizemos uma troca justa. Enriqueci-te e tu deste-me um bocadinho de consolo, nada de mais.

Fábio calou-se. Afinal, ele tinha razão.

Depois da altercação e de os ânimos serenarem, Carlos prometeu-lhe que iria pensar no seu assunto.

Uma semana depois, Fábio foi chamado aoMinistério da Solidariedade para acertarem uma forma mais ou menos disfarçada de se contemplar a associação nos apoios prestados pelo ministério.Para Uma RosaPela Manhã ser beneficiada, outra teve de esperar por uma nova oportunidade. Nada que já não tivesse sucedido. Normal, normalíssimo, em Portugal, claro!Foi esse o comentário do prejudicado.

Entretanto, o meliante que havia roubado a associação foi capturado e parte do dinheiro recuperado.

O Partido de Júlio Estava a subir nas sondagense, em pouco tempo, passou de um mero recém-criado para a terceira força a nível nacional.O prestígio do antigo Presidente daJunta era uma realidade. Homem justo, honesto, íntegro, amigo dos pobres, cidadão exemplar, era uma das figuras públicas mais requisitadas pela comunicaçãosocial.

Mas o poder só traz inimigos. Dentro do próprio partido, começaram a surgir as primeiras fraturas e a ouvir-se as primeiras vozes dissonantes.Nada que Júlio já não estivesse à espera. Afinal, ele tinha saído de um Partido ainda maior! Assime ciente da terapêutica a administrar, rodeou-se de gente da sua confiança e deixou que os seus críticos fizessemo seu trabalho.

Parecia-lhe tudo muito mais descolorido. O mundo não sabia o quão corrosivoé viver-se repleto de remorsos. Júlio, desde que visitou Rosa pela primeira vez, passava os seus dias, as suas noites remordendo-se por ter sido parte activa do estado deprimente da sua amada.

Ah se ela me perdoasse, meu Deus…- repetia vezes sem conta.

- A carne é tão fraca, meu irmão…- disse-lhe o Padre, quando se foi confessar.

Meia dúzia de Avé-Mariase uma centena de padres nossos, foi a penitência.

- Agora, ergue-te e não peques mais, meu irmão - disse-lhe em remate o Padre.

Depois do tratamento espiritual, Júlio e os seus remorsos continuaram mais unidos do que nunca. À hora da visita, lá estava ele ao lado de Rosa. Fosse como fosse, desse por onde desse, jurou para si mesmo que não a largaria enquanto ela não regressasse do abismo em que entrara.Sentava-se a sua frente e pegava-lhe nas mãos dizendo-lhe repetidamente:

- Perdão, meu cisne!Perdão, meu amor!Fui tão mau para ti, tão canalha, tão sujo!Perdoa-me, por favor!

A sua lamúria chegava a comover os enfermeiros da unidade de saúde. O homem mostrava muito sofrimento.Estava espelhada no seu rosto uma tal angústia, uma tal dor, que se tornava perceptível mesmo a distância.

Mas Rosa tardava em querer regressar. O mundo em que se inebriara, apesar de escuro, de amargo, era bem melhor do que aquele que lhe roubara a vontade de viver. Ouvia somente uma voz que a chamava:

- Mãe, mãe, volta!Eu preciso de ti!

Mas olhava e nada via. Aquela voz, aquela voz era-lhe tão familiar e mexia tanto consigo.

- Mas onde estás?- chegou a perguntar entre a escuridão.

Contudo, a voz parecia não a ouvir.

- Mãe, mãe, volta, volta!Nós amamos-te!

- Estou tão fraca... Pesam-me os pés…O meu coração desfaz-se em amargura.murmurava.

Rosa permaneceu quase vegetando durante 38 dias.Andava mas não sabia para onde.O pouco que comia, não lhe sabia anada.Não falava porque não havia nada para falar!Mas aquela voz continuava ainsistir em chamá-la!

- Mãe, mãe, eu amo-te!

Depois, certo dia, de repente, começou a ouvir outra voz que dizia:

- Rosa, meu cisne branco, meu amor, perdoa-me! Oh meu amor,vem para perto de nós novamente!

Aquela voz fez o seu coração bater mais forte. De quem seria?

- Júlio?Júlio, que queres de mim?

O político deu um pulo na cadeira, quase estatelando-se no chão.

- Rosa, respondeste-me?

Os lindos olhos azuis de Rosa brilharam como já há muito não brilhavam.Ela sorriu-lhe.

- O meu filho? Júlio, onde está o meu filho? Não pára de me chamar.Sabes o que ele quer?

Júlio deixou fluir livremente as lágrimas, ao mesmo tempo que sorria.

- Oh meu amor, perdoa-me. Perdoa-me - disse-lhe, abraçando-se ao seu corpo esquelético.

Rosa estava ainda um pouco confusa.Não percebia porque o seu marido estava a abraçá-la daquela maneira.

- Cuidado! Ainda me partes o pescoço –exclamou, um pouco aflita.

Fábio foi de imediato chamado por Júlio, que lhe deu a boa nova.Ambos tinham vindo a revezar-se nas visitas. Ambos tinham vindo a relacionar-se bem.Era assim que elacertamente o desejaria. E não se enganaram,quando um dia numa conversa decidiram que iriam fazer de tudo para que ela voltasse da dimensão mais absurda em que cai um Ser Humano: o abismo de si mesmo, o enigmático lugar no qualmuitos permanecem deambulando pelos labirínticos corredores do desespero.

Rosa encontrou a saída e, duas semanas depois, ainda debaixo de alguns tratamentos, já conseguiu sair pelos próprios meios e deslocar-se até ao carro do seu filho, que a levaria de volta ao bairro de que tanto gostava.

Júlionão saía do seu lado. Por fim, mesmo depois de recuperar completamente a memória e de se recordar do que ele lhe havia feito,depois de lhe dizer que não insistisse, Rosa cedeu e Júlio acabou por ter a sua segunda e última oportunidade para se redimir.

 

 

 

 

XI.

 

Por essa altura, Lisboa já era percorrida por um estrangeiro muito especial. Daniel preparava ao pormenor a morte do casalinho.Com bastante dinheiro para gastar, com tempo para preparar tudo, o mexicano limitou-se a apreciar a cosmopolita cidade enquanto planeava ao detalhe o local e o momento em que os iria executar.

Daniel era um lindo moreno de metro e oitenta quenão passava indiferente aos olhares furtivos das moças portuguesas.Salta-pocinhas, sem pressas, rapidamente arranjou quem partilhassea cama consigo.Os primeiros dias seriam para satisfação da carne e para gastar à tripa forra.Depois, bem devagarinho,trataria de mandar para junto do diabo aquele casalinho que teve a audácia de matar Paco.Se fossem bonzinhos, mandá-los-ia para os anjinhos.Não teria contemplações na hora de lhes cortar o pescoço.Ordens superiores!

“Quero que vertas o sangue deles e o espalhes pela área envolvente”,ordenou-lhe o seu chefe, cabecilha duma pequena cidade do interior do País e antigo companheiro de“El Torero”.

Daniel era o pião mais solicitadoquando se tratava de limpar o sebo a alguém.Era frio, competente e, acima de tudo, liberto de remorsos.Desde pequenino que estava no seio da irmandade. Quando a sua família se desmembrou, quando metade morreu e a outra metade fugiu e se espalhoupelo Grande México, ele próprio, Daniel Castro, já aprendiz de assassino, trabalhava às ordens do grande Manuel Capavila, em tempos, um dos mais temidos membros da organização criminosa.

Atualmente já com setenta anos, Capavilalimitava-se a viver na sua mansão de luxo, repleta de lindas raparigas.Dizia-se que havia feito um pacto com o Governo. No passado, aquando das grandes batalhas entre o Estado e os traficantes,alguns acabaram por dar com a língua nos dentesmas em troca foi-lhes concedido viver em liberdade. Um preço justo,considerou o Executivo naquela data.Fosse qual fosse o motivo, o certo é queCapavila vive actualmente em paz.Embora já não tão activo como dantes, ainda vai fazendo uns favorzitos à irmandade, revelando-se indispensável quando se trata de fugir as autoridades. Porque será? É a pergunta que Daniel, tal como muitos outros já fizeram a si próprios.Não obstante essa neblina que recaía sobre a vida de Capavila, ainda não se havia encontrado nada de concreto que os levasse a pensar que ele estava comendo dos dois lados. Assim sendo, o velho criminoso, antigo sanguinário, limitava-se a esbanjar rios de dinheiro com as suas muchachas.Pai de duas dezenas de crianças, passava a maioria do tempo entre a fornicação e os inúmeros contactos telefónicos. Seja como for, Daniel respeitava-o, morria por ele se preciso fosse.

Helena vinha tendo premonições.Algo lhe dizia que outros problemas estavam prestes a surgir.

- Não sei bem explicar-te o que sinto. É uma espécie de angústia,um sobressalto permanente, uma coisa indefinida!

Fábio, muito mais despreocupado, escutava-a.Contudo, tentava fazer com que ela desvalorizasse essa estranha sensação.

- Deve ser trauma, carinho. Deve estar ainda no teu subconsciente o que vivemos com aquele bandido - comentava.

- Não,Amor. Não!Estas coisas só as mulheres sentem. Vocês homens nunca vão perceber - declarava a linda Helena.

- Então, se vocês sabemque nósnão nos importamos com isso, porque nos contam?

- é uma necessidade de desabafar com alguém - disse-lhe Helena. - A quem mais podemos contar   asnossas preocupações senão à pessoa que amamos?

- Claro, tens razão - respondeu-lhe Fábio,penitenciando-se por ser tão insensível.

Passada a conversa, passado o desabafo de Helena, tudo regressou a normalidade, pelo menos no respeitante a Fábio.

Por seu lado, Helena, prometeu a si mesma que ficaria mais vigilante do que nunca. Ela conhecia-os! Nada ficava esquecido quando se trata de um irmão. Aquela gente dá a volta ao mundo,à procura de quem praticou algo contra a irmandade!Afinal, ela havia feito parte de uma família de traficantes, embora comandada por senhores muito mais poderosos.Ela tinha bem presente aquele dia em que tiveram de fugir,a hora em que seu pai entrou porta adentro gritando “vamos, eles vão caçar-nos como bichos!” Não era nem mais nem menos do que o dia em que o Governo da altura resolveu pôr em acção o que tinhaplaneado durante vários anos:uma caça sem tréguas aos traficantes!Haviam sido anos a fazer o levantamento de tudo e todos quantos se relacionavam de uma ou de outra forma com o mundo do tráfico de estupefacientes.

- Vamos morrer todos!

Helena tinha ainda bem vincada na sua memória a cena em que as balas faziam ricochete nas paredes da habitação. Só naquele momento, três dos membros da sua família pereceram crivados de projécteis, designadamente dois irmãos mais novos e duas mulheres: uma mana e a sua querida mãe. Os restantes fugiram como animais apavorados, perseguidos por matilhas de cães.

Dois dias depois, Helena ficou a saber que o seu pai havia sido capturado e executado na hora. Restaram somente três familiares edos seus irmãosnadamais soube. Provavelmente também haviam sido mortos. TODOS SÃO por ela RECORDADOS, PORÉM, a SUA QUERIDA MÃE foi QUEM LHE ficou a fazer MAIS FALTA, POR TODAS AS RAZÕES E MAIS alguma. Ambas   eram totalmente contra aquelamaneira de seganhar dinheiro com ovício alheio. Mas no México ainda reinava o machismo. Eram os homens quem punha e dispunha sobre o que quisessem e lhes apetecesse. Eram eles que governavam a casa, eram eles que decretavam como e onde, se sim ou não.Enfim, os machos eram verdadeiros reis dentro dos seus privativos castelos. Quanto as mulheres, limitavam-se a cozinhar, a tratar dos filhos e quanto menos falassem, tanto melhor.

O que valeu a Helena foi a esposa de uma das pessoas mais importantes na zona, para quem ela fazia alguns servicinhos, nomeadamente compras e cuidar dos seus dois filhos gémeos, enquanto a finória ia aos salões de beleza.

Lembrava-se várias vezes do momento em que correu em direcção à sua casa, aos gritos, enquanto as metralhadoras matraqueavam nas suas costas.

- Dona Amélia! Dona Amélia! Por favor, ajude-me!

Quando pensava que aqueles seriam os seus últimos instantes, sentiu uma mão a puxá-la energicamente em direcção ao interior da mansão.

- Chiu, não digas nem mais uma palavra - ouviu da boca de Amélia, esposa de um reconhecido e insuspeito empresário da área.

Apressadamente, levaram-na para o piso superior e pediram-lhe que nem sequer movesse os lábios.Não haviam passado nem dois minutos quando os militares bateram bruscamente à porta.Foram momentos de pânico. Três soldados armados até aos dentes interrogaram Amélia durante largos minutos. Um deles até chegou a entrar, tal era a desconfiança que sentiram.Não fora Dom Romero surgir e Helena talvez não tivesse sobrevivido para contar o que se passou a seguir.

- Meus senhores, eu sou Dom Romero Santo, informou-lhes o empresário. Depois de comunicarem via rádio alguns minutos e de se inteirarem do bom nome que o homem de negócios granjeava junto do poder político, bateram a pala e saíram à caça do traficante.

Foi desta maneira que Helena escapou à morte anunciada.Permaneceu em casa de dona Amélia o tempo suficiente para o Governo decretar o fim da missão.Depois, com a ajuda da ricaça, rumou em direcção à capital. Contudo, o dinheiro terminou rapidamente e ela caiu nas ruas da amargura.

Por ter passado o que passou, por ter aprendido por sua conta o quão duro é sobreviver numa grande cidade, por ter vivido lado-a-lado combandidos, por todas as coisas que a vida lhe ofereceue lhe retirou, por tudo isso saber, Helena jurava a pés juntos que eles não descansariam enquanto não lhes limpasse o sarampo.Mas algo inervava-a muitíssimo: Fábio não levava a sério os seus alvitres!No entanto, não desistiria até que ele, de uma vez por todas,lhe desse a devida atenção.

 

 

 

 

XII.

 

Bem distante dos temores de Helena estava o jovem Carlos,que na altura vivia mais um sobressalto. Desta vez,talcomo das outras, foi flagrado aos beijos eamassos com mais uma jovem cigana.Tratava-se de um comportamento recorrente.Pai de cinco filhos, mais ou menos um por ano, já bem integrado na comunidade, da qual aprendeu a gostar e a respeitar, mas não perdia uma oportunidade. Conhecido no grupo como “o fodilhão”, andava frequentemente à navalhada com os alegados traídos. Teve de aprender rapidamente a manejar a arma mais usada na comunidade,caso contrário já estaria debaixo da terra.

Quem diria que aquele miúdo assustadiço, aquele rapaz mimado, o jovem filhinho da mamã, iria adaptar-se,como poucos o conseguiam, à vida no seio da raça cigana, transformando-seinclusivamente num exímio vendedor das inúmeras feiras espalhadas pelo País.

Não tinha sangue cigano, contudo, comportava-se como se o tivesse. Quanto aquele defeito de querer as mulheres dos outros, bem…, ia safando-se como podia. Se não era uma da sua comunidade, bem…, lá teria de ser uma de outra parte! Não obstante a sua propensão para desejar a mulher alheia, dir-se-ia estarmos perante um cigano dos quatro costados. Tornou-se um homem verdadeiramente duro e ainda mais bonito do que dantes. Resumindo, um perigo público para os outros!

- Mentira, mãe!

- Oh filho, porque não te contentas só com uma?- dizia-lhe Lurdes, quando pela milésima vez foi chamada ao bairro dos ciganos.

Houve vezes em que Carlos foi parar ao hospital, depois de ter andado à luta com outros, quase sempre pelo mesmo motivo.

- Oh filho, qualquer dia eles matam-te - alertava a sua mãe, de ar pesaroso e aviver um enorme desgosto.

- Seu Fernando havia fugido de casa sem dizer água vai!Desde esse dia vestiu-se de negro,não por luto mas pela escuridão que se abatera sobre a sua cabeça.

- Tu és a única pessoa que me resta, querido!

- Mãe, não dramatizes, por favor. Sabes muito bem que o pai vive com uma estrangeira na rua de cima!

- Aquele bandido! Aquela puta! Não me fales dele nem dela!

Carlos ria-se com a reacção da sua mãe a qual,não obstante a sua maneira peculiar de ser, ele sabia que sofria.

O transformado em cigano foi entretanto surpreendido por uma visita, no mínimo, inesperada. Fábio deslocou-se no seu carro de luxo até ao bairro, milagre este que tinha uma razão de ser. Pretendia acalmar os remorsos que o vinham devastando. Eram recorrentes os pesadelos ea angústia por ter abdicado de tudo, em função duma ambição desmedida e sem motivo aparente. Não era pelo facto de ter vendido o seu corpo que se martirizava. Sofria, sim, por tê-lo conseguido à custa do afastamento das pessoas que mais amava. Carlos foi dos primeiros da lista a ser visitado. Todos mereciam um pedido de desculpas, uma explicação.

- Já me tinham dito que parecias mesmo um cigano mas, bolas, nunca pensei que ficasses tão idêntico!

Foi assim que Fábio se dirigiu a Carlos. A mão que estendeu para o seu velho amigo não foi apertada. Os olhos de Carlos perscrutavam friamente o semblante de Fábio.

- Bolas, estás a deixar-me sem jeito!

- Calças azuis da melhor qualidade, casaco Prada, perfume dos mais caros do mercado…Não, este não é o Fábio da Dona Rosa.

- Que raio de conversa é essa?Vim cá para tepedir desculpa e tu vens com charadas?

- Olha para mim - pediu-lhe Carlos.Achas que estou a sofrer por aquilo que fiz?

- Claro - respondeu-lhe Fábio. - Pareces um vagabundo - acrescentou.

Os olhos de Carlos arregalaram-se, quase querendo saltar das órbitas.

- Repete o que disseste – murmurou, de lábios apertados.

Fábio verificou que ele ficara transtornado.

- Bolas, já não aceitas brincadeiras - disse-lhe, tentando desanuviar o clima.

O rosto de Carlos, subitamente, voltou ao normal.

- Sai daqui.

- O quê?- retrucou Fábio.

- É como ouviste! Quero que vás embora. Tu não vieste pedir desculpa mas sim criticar-me!

- Não, não! Eu vim aqui pedir-te perdão!

- Perdão? Perdão porquê?Não fizeste da tua vida o que querias? Não abandonaste a tua mãe para te juntares aos finórios? Então, perdão porquê?

- Olha para mim, Carlos,por favor!Eu ainda te considero o meu melhor amigo, apesar de tantos anos de ausência.Vamos dar uma volta. Preciso muito de desabafar contigo, juro!É verdade.

Carlos acedeu. Era evidente que o seu amigo estava em sofrimento. Por momentos, julgou que ele o estava a discriminar, a pontode lhe ter apetecido Esbofeteá-lo.

Depois de terem percorrido alguns quilómetros, pararam defronte a um bar, para os lados de Sintra.

- Isto é para grã Finos- exclamou Carlos, ao sair do automóvel.

- Então, e tu não és?

Carlos olhou para Fábio que lhe sorria.

- Claro que sou – respondeu, dando uma palmada das antigas nas costas de Fábio e empurrando-o para entrada.

Mal colocaram os pés no interior, logo todas as cabeças giraram nadirecção dos dois amigos.

- Podem continuar.Só damos autógrafos à saída - declarou Carlos.

Subitamente e tão rápido como os olharam, voltaram a fazer o que estavam a fazer antes da aparição de Carlos e de Fábio.

- Acho que eles pensam que eu te vou assaltar - resmungou Carlos, sentando-se defronto ao seu amigo, numa das luxuosas mesas.

- Vão desejar algo - perguntou-lhes um empregado, vestido de camisa branca e laço negro.

- Sim - antecipou-se Carlos. Onde fica o cofre?

O rapaz arregalou os olhos.

- Desculpe-me senhor, o que pediu?

- Traz-nos dois whiskeys, por favor - intrometeu-se Fábio, antes que aquilo desse para o torto. – Bolas!Olha que chamam a polícia! Não foi para isso que viemos cá - afirmou Fábio.

- Tens razão - respondeu-lhe Carlos. - É o hábito.

Depois de alguns whiskeys, depois de Fábio, sem tabus, ter desabafado tudo e contado o que fez, com quem o fez, porque o fez, depois de ter pedido perdão de forma emocionada,recebeu um valente abraço de compreensão e a promessa de um ombro, sempre que ele precisasse.

Carlos estava verdadeiramente mais maduro. Contou ao seu amigo como se sentia feliz entre a comunidade e como foi o seu percurso até se fazer respeitar.

- Nada fácil, amigo,nada fácil! Mas aquela raça é verdadeiramente espectacular! Tive de aprender à minha custa eà custa da minha pele,a forma como se pode ser respeitado no seio da comunidade cigana.

- E como é - perguntou-lhe Fábio, curioso.

- Sendo mais ágil, mais esperto, mais audaz,enfim, melhor!Como vês, estou vivo. Com algumasmazelas mas vivo e a vender saúde!

- Não pensas na vida antiga?

Fábio estava atónitocom tanta mudança. Nem nos seus mais remotos pensamentos imaginou ver Carlos transformado em cigano.E que cigano!

- Não, não penso. Adoro a comunidade,adoro a sua cultura, os seus modos… e adoro as ciganinhas!

- Principalmente as ciganinhas - exclamou Fábio, tendo de se desviar do jacto de whiskey que o seu amigo cuspiu.

No final do dia, por volta da meia-noite, Fábio foi levar Carlos a casa. Ambos estavam perdidos de bêbados!(#) Quando chegou ao seu apartamento, procurou Helena mas sua amada já dormia. Tomou um duche e, um pouco mais tarde, já menos zonzo, fez uma retrospectiva   do dia passado com Carlos.Sentia-se muito mais aliviado. Prometeu que visitaria o seu amigo uma vez por semana, já que o contrário era mais difícil, devido aos afazeres na comunidade, conforme lhe havia dito Carlos.

O próximo seria Mário, certamente um osso muito mais duro de roer, reflectiu Fábio, no escuro da sala.

 

 

 

 

XIII.

 

Daniel estava encantado com Lisboa. Se Não fossea lealdade à organização, viria viver para a capital de Portugal. Adorava as moçoilas, a comida era espectacular, o clima fantástico...

Sempre impecavelmente vestido, hospedou-se num dos melhores hotéis da cidade. Tratavam-no como homem de negócios, facto que o divertia bastante.No entanto, não havia dia em que não falasse com Capavila.

- Patrão, estou a delinear a emboscada.

- Nunca me falhaste, meu filho - ouvia Daniel, do outro lado. - Terás a tua recompensa.Amo-te como a um filho - acrescentava quase sempre o bandido.

Aquelas palavrasenchiam-no de orgulho. O seu patrão repetia-se mas, sempre que o fazia,revigorava as forças de Daniel.

- Nunca te trairei, patrão - retrucava sempre o jovem assassino.

- Eu sei meu filho, eu sei.

Fanático por futebol, Daniel tinha planeado ir à bola. Assim, convidou uma amiga especial e lá foram eles assistir a um jogo entre o Sporting e o Belenenses.Entretanto, À saída do estádio, algo de inesperado aconteceu.

Apaixonada por futebol, Helena, depois de muito implorar a Fábio, conseguiu que ele a levasse a ver aquela partida. Contudo, quando estavam prestes a entrar no carro, estacionado a uma centena de metros do estádio, Helena cruzou-se com Daniel, fazendo-lhe tocartodas as campainhas.

- O que se passou, querida - perguntou-lhe Fábio quando constatou que ela se virara para trás.

- Aquele rapaz, aqueles olhos, aquele sorriso, são…, são…, tão…, tão…

- Tão o quê - interrogou Fábio, com preocupação.

- Parece que já o conheço!

- Achas possível?Não poderá ser uma pessoa idêntica?

Helena aceitoua observação de Fábio.

- Sim, se calhar, sim.Pode ser…- murmurou, sem convicção.

- Vamos.Estás assim porque o Sporting perdeu - brincou Fábio.

Helena, nessa noite não conseguiu dormir. Aquele rapaz não lhe saía da mente.

- Será, meu Deus?pensou.

Algo lhe dizia que era ele o bandido enviado pela irmandade. Coincidência ou aviso dos Céus?Fosse ele quem fosse, mexeu de sobremaneira com o seu subconsciente.O seu sexto sentido dizia-lhe que teria de estar cada vez mais alerta.

Quanto a Daniel, nada aconteceu.Aquela rapariga que o havia encaradodemoradamente era só mais uma que o fazia,factoeste que nada interferiu em mais uma das suas noites de luxúria.Jantou num dos melhores restaurantes de Lisboa e terminou a noite numa discoteca, sempre acompanhado pela sua amiga colorida, uma esbelta loira de lindos olhos azuis e de corpo deveras atraente.

O que o jovem não sabia é que a sua entrada no País havia sido monitorizada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.Apesar de entrarem muitos mexicanos em Portugal, aquele requeria uma atenção especial, uma vez queaPolícia tinha sido avisada pelo FBI que recaíam suspeitas sobre o jovem mexicano. Assim sendo, a partir desses alertas, todos os seus passos começaram a servigiados.Mas Daniel estava com as costas quentes.A Organização não se limitava a fazer tráfico. Tinha ainda uma vasta equipa de colaboradores, homens e mulheres de todos os ramos e ofícios, que eram pagos, e bem pagos, como informadores.Sabiam a tempo e horas se os membros da Irmandade eram monitorizados, por quem e há quanto tempo.Por vezes, tinha de se deixar cair um para se salvar dois ou três.Por vezes, tinha de sedistrair a Polícia,mandandoà frente alguns menos experientes e sem grande importância para a organização.Depois,aí sim, ficava o campo limpo para então se fazer as coisas muito mais à vontade.

Daniel era demasiado importante para Capavila. Assim, depois de ter sido avisado por um canal alternativo, o jovem esperou por novas ordens.

“Nada de ligações para o México. Quando for para falarmos, nós saberemos como o fazer!”

O bilhete entregue em mãos foi bem explícito. Daniel, depois de receber as armas por via de um dos colaboradores que veio de Espanha expressamente para isso, teve de esperar até o seu chefe dizer quando deveria mandar o casalinho para debaixo da terra.Não foi nada que o chateasse muito. Até ficou contente.Teria mais tempo para ficar ao lado da portuguesa que o vinha arrebatando.

Inês era uma bela loira de lindos olhos azuis, o tipo de mulher que mais o encantava. Além de linda, mesmo deslumbrante,com as medidas certas segundo o seu gosto,era extremamente doce.Iria ser muito triste ter que a deixar.Filha de empregados públicos, o sonho dela era ser modelo ou estilista, segundo lhe confessou.Conheceu-a numa discoteca lá para os lados do Cais-do-Sodré. Estava integrada num grupinho com mais duas raparigas, também muito bonitas, mas foi nela que as atenções de Daniel recaíram.Aquele corpo movimentando-se ao som da música, aquela boca provocante, aqueles seios vistosos,deixaram-no louco de desejo. Tinha de falar com ela. Tinha de ser sua, nem que para isso tivesse de a raptar. Mas não foi preciso chegar a tanto. Mal se cruzaram no bar, a atracção foi mútua.

- Posso pagar-te uma bebida - perguntou-lhe Daniel, em castelhano.

Os seus olhos não se largavam. A moça ficou vidrada no jeito e no físico do jovem mexicano.

Claro – retrucou, sorrindo-lhe.

Desde aí, nunca mais se largaram. Daniel passou a noite na mesa das jovens e, no finalzinho, fez questão de as levar a casa, à excepção de Inês, que permaneceu junto dele até os primeiros raios de sol espreitarem sobre o Castelo de S. Jorge.No segundo encontro já fizeram amor no quarto do hotel e por lá ficaram durante um dia inteiro.Ela era perfeita. Daniel já tinha conhecido muitas mulheres, mas tão delicada, deslumbrante, meiga, deliciosa como Inês, não! Era a mulher com quem sempre sonhou. Embora soubesse de antemão que um bandido como ele não poderia viver em paz um minuto sequer, nem dar a atenção que uma mulher merece,sabendo que mais dia menos dia teria de deixá-la, acabou por se entristecer.Como haveria de dizer-lhe que era um dos mais requisitados matadores do México?Como iria dizer-lhe que o muito dinheiro que possui é à conta de tirar o fôlego a desgraçados que pisaram o terreno armadilhado do tráfico?

Tinha vindo a reflectir muito numa saída desta vida. O dinheiro que tinha dava-lhe e sobrava para viver tranquilo numa terriola que ficasse longe, bem longe da teia apertada e perigosa dos que fazem do tráfico um modo de vida.Inês tinha vindo a fazer com que meditasse bastante sobre esta questão.   Ela erauma pessoa de coração benevolente, jamais poderia saber que dormia com um verdadeiro sanguinário.Daniel viu-se de repente num beco sem saída. Censurou-se por se ter deixado enfeitiçar pela portuguesa e por ter deixado que os alvitres de Capavila caíssem em saco roto.

- Meu filho, só deves pensar em viver tranquilo quando a idade já for um entrave ao teu trabalho. Nada de amores exacerbados, nada de paixões arrebatadoras, nada de te deixares enfeitiçar perdidamente pelos encantos de uma mulher!

Todos os conselhos do grande Capavila como que se esfumavam na mente do jovem.Estava a viver um dos maiores dilemas da sua vida.Não se via nem queria ver-se sem Inês ao seu lado.Contudo, sabia muito bem que, se abandonasse a organização com o intuito de se dedicar de corpo e alma ao sentimento que nutria pela bela portuguesa, o mais provável era ir para o jardim das tabuletas.No entanto e não obstante a sua preocupação, tentaria esquecer-se de tudo isso e desfrutar dos dias que lhe restavam, ao lado da moça que lhe havia dado volta a cabeça. Ainda havia algum tempo para passear, para conhecer melhor a cosmopolita Lisboa, cidade que Daniel reconhecia como uma das mais lindas que já tinha visitado.

Nos dias que se seguiram, logo após as últimas ordens de Capavila, aceitou o convite de Inês para jantar na casa dos seus pais, um repasto que serviu sobretudo para ser apresentado a família.Sentiu-se bem junto deles. O casal era de uma sinceridade pouco usual. A mãe de Inês era tão linda como a filha, com as devidas distâncias.Tinha os mesmos fascinantes olhos azuis, o corpo igualmente esbelto e era igualmente muito dócil.O jovem mexicano ficou a saber que a cor dos olhos, as medidas incomuns, a pele branca, tinham a sua razão de ser. A mãe de Inês era natural da Finlândia,estando a viver em Portugal desde os dois anos de idade. Quanto ao seu pai, era um verdadeiro bonacheirão, muito divertido…

Daniel gostou de facto deles. Foi um jantar emque,para além de servir para Inês o apresentar como seu namorado, serviu ainda para que a linda rapariga informasse os seus pais que estava a pensar em entrar numa escola de modelos. Daniel pagaria!

Ambos torceram o nariz, mas, quando o jovem lhes disse que não havia problema pois, se desse para o torto, ela regressaria à universidade e terminaria o curso de Sociologia que havia escolhido, o casal, por fim e após a insistência de Daniel,acabou por concordar com a ideia.

Nos dias seguintes seguiram um verdadeiro roteiro turístico. Inês fez questão de levarDaniel aos pontos mais visitados e emblemáticos de Lisboa.Começaram por aquele que talvez fosse o mais famoso, o maravilhoso Mosteiro dos Jerónimos ou Mosteiro de Santa Maria de Belém, que fora mandado construir por D. Manuel I, em 1501. Nele viveram os monges da Ordem deS. Jerónimo, até ao ano de 1833, altura em quefoi decretada uma lei que os obrigou a sair.

Com mais de 300 metros de fachada, o imponente monumento é visitado por milhares e milhares de turistas durante todo o ano. Não muito longe, Inês deu-lhe a conhecer a linda Torre de Belém, que foi construída entre 1514 e 1520, para defesa da barra de Lisboa.Considerada uma das jóias da arquitectura do reinado de D. Manuel I,fascinou o jovem mexicano, que se rendeu à deslumbrante e rica história de Portugal.

Comeram os famosos pasteis de Belém, passearam junto ao Rio Tejo e terminaram o dia abraçados,na proa de um cacilheiro,a ver o sol mergulhar mansamente no horizonte.

As muralhas outrora indestrutíveis do Castelo de Daniel, a intransponível cerca que havia edificado e na qual ninguém tinha ainda ousado entrar, foram derrubadas pela doçura dos lábios de Inês, pela meiguice dos seus gestos, pela magia dos seus olhos.Não poderia viver sem ela!

Já o ponteiro do relógio ultrapassara as duas da manhã quando se despediram junto da soleira da porta de Inês. Depois, depois chorou de felicidade, chorou de angústia, chorou de frustração!Passou a noite a chorar, passou a noite a magicar, tentando encontrar uma saída para o dilema em que se metera, mas nada lhe ocorria.Fugir, não era solução,falar-lhe a verdade, seria como que um suicídio!Se ao menos Capavila o compreendesse…se o deixassem ir em paz…se ao menos pudesse explicar-lhes como tudo aconteceu... Mas não. Eles não compreenderiam!O próprio Daniel tinha sido incumbido de aniquilar alguns pelo mesmo motivo.Assim sendo, uma pergunta martelava-lhe o cérebro: e agora?

Ao longo da sua ainda curta vida,nunca lhe tinha acontecido nada de semelhante! Mas bastou-lhe um mês, 30 simples dias, para se apaixonar loucamente. Como a ideia de se afastar delatinha vindo cada vez mais a esfumar-se, manter-se-ia tal e qual estava, ao seu lado! Já Nãose via longe de Inês. O que sentia era muito Mais forte que qualquer organização criminosa,mais forte e poderoso do que qualquer cabecilha.

Terminaria o serviço do qual fora incumbido mas estas seriam as últimas mortes. Depois, depois tentaria amolecer o coração empedernido de Capavila com a sua história de amor. Sabia ser quase impossível, contudo tentaria fazê-lo.

O seu amor por Inês tinha tanto de repentino como de devorador,tinha tanto de inesperado como de maravilhoso, tanto de surpreendente como de aprazível! Era perfeito como também ela era perfeita, era lindo como ela,era transcendental como o fascínio que lhe transmitiamos seus olhos!Não sujaria mais as suas mãos com o sangue de incautos. Não mataria mais, pois isso era incompatível com a grandiosidade de Inês.

Entretanto, para sua sorte,as coisas complicaram-se para os lados da Organização. A Polícia portuguesa estava a investigar a vida de Daniel e, por esse motivo, tudo foi adiado mais uma vez,oportunidade esta que o jovem matador aproveitou para tentar delinear uma saída para o seu caso. Entretanto,enquanto nada lhe ocorresse, iria viver os dias de folga com muita intensidade.

Decidiram ambos dar um pulinho ao Porto, a segunda maior cidade do País.Inês conhecia a bem. Nos tempos da sua meninice, ela e os seus pais visitavam-na por diversas vezes, poiso seu pai era natural de lá.Daniel não poderia ter arranjado melhor guia. Além de ser a mulher que tomou conta do seu coração,Inês sabia do que falava!

Começaram peloParque de São Roque e deambularam por largos minutos dentro do labirinto que se encontrava bem ao centro deste último.(#) Um pouco mais afastado da cidade, o Parque de Nova Sintra tinha um encanto especial,com as suas inúmeras alamedas, muitas árvores e plantas, algumas delas exóticas,uma colecção de fontes da cidade que haviam sido desactivadas e um sem-número de brasões,retirados de várias fachadas.Mas o que Daniel mais gostou foi da vista sobre o Rio Douro.Terminaram o primeiro dia na Fundação José Rodrigues e foram visitar a escondida galeria de grafites. Inês quis começar pelos lugares menos visitados,embora não menos belos.

Quanto à noite, essa, tiraram-na para se amarem. Depois do jantar e de um breve passeio nos arredores do hotel, resolveram subir e entregar-se em recíprocas e sincronizadas carícias, em ardentes e vorazes formas de explorar os seus corpos e de darem prazer um ao outro.Daniel estava verdadeiramente magnetizado por Inês.O quarto tinha vista sobre uma pequena praça que ambos, fatigados,porém felizes, contemplaram depois de muitos minutos de sensualidade.

O jovem mexicano estava a viver uma verdadeira história de amor, tão extasiante como a de Camilo Castelo Branco, famoso escritor luso que foi eternizado ao escrever“Amor de Perdição”,enquanto encarcerado na antiga cadeia da relação, coincidentemente,na mesma sela ondetambém esteve detida a sua amada e que fora mais tarde convertida no Centro Português de Fotografia,onde se podem apreciar belas fotos de fotógrafos nacionais e internacionais.

O Porto era diferente , muito diferente de Lisboa mas era uma cidade dotada de algo que a capital não possuía.No Porto havia uma invisível neblina, uma energia diferente, uma estranha e íntima sensação de estar a pisar-se a própria História!Foram alguns dias de pura diversão e bem-estar.Ambos regressaram com a convicção de que tinham sido feitos um para o outro.Não havia volta a dar.Daniel e Inês davam-se bem em todos os aspectos.Tanto o jovem como a sua alma gémea,estavam a percorrer os sinuosos trilhos da paixãoe a ser bafejados pelos míticos Deuses   do amor. Foi abraçados e entre beijosque juraram jamais se separarem. Era uma promessa que Daniel intimamente desejava cumprir.Contudo, algo lhe dizia que lhe traria problemas, muitos problemas.Mas o que sentia por Inês, aquela vontade de estar perto que o banhava por completo, a furiosa vontade de lhe dizer constantemente que a amava, levava-o a pensar que tudoo resto não passava dum simples e insignificante detalhe.Omodo como conseguiria dar a volta ao texto, não o sabia.Todavia, urgente era magicar uma maneira de fazer as coisas de forma que ninguém se saísse mal.

Como explicaria a Capavila que se havia apaixonado por uma portuguesa enquanto preparava mais uma missão?Daniel sabia a forma como ele pensava e o que pensava. O jovem assistiu variadas vezes, vezes demais, àmaneira como se tratavam todos aqueles que roíam a corda, aqueles que por causa de assuntos semelhantes foram mandados para o inferno. Daniel, pela primeira vez, temeu. Não por ele,não por saber que poderia morrer,mas sim por Inês.

 

 

 

 

XIV.

 

- Fernando! Fernando!

As pessoas acotovelavam-se junto ao número 35, bloco 6 do covil dos lobos. Aqueles que a conheciam contorciam o rosto comoque a lamentar-se por Lurdes ter enlouquecido de vez.

- Fernando! Fernando!- continuava a amargurada mulher, de joelhos, junto da entrada do prédio.

Ouviam-se gargalhadas, logo reprimidas por um generalizado e bem-audível “chiu!”.

Carlos deitava os bofes pela boca. Alguém havia corrido a avisá-lo.

- Carlos, Carlos, tua mãe está a gritar e de joelhos!

O convertido a cigano ficou sem perceber o que se passava.

- Minha mãe, o quê?– perguntou.

- Tua mãe está a chamar pelo teu pai.Já está a rua cheia! Ai Jesus - murmurou o rapaz.

Deixando tudo para trás, Carlos desatou a correr em direcção ao local que lhe indicaram.

- Mãe, mãe,o que aconteceu?

- Filho! Não aguento mais - disse-lhe sua mãe, abraçando-se a ele. - Aquele bandido faz-me tanta falta, meu filho - choramingou.

Carlos ficou sem saber o que fazer, além detentar acalmá-la.Um pouco depois,tinha o teatro já sido desmontado, Carlos levou-a para casa e ficou junto dela até se assegurar que ficara mais calma.Lurdes lamentou-se pelos anos que dedicou ao casamento.

- Foi tudo em vão, querido. Eu sempre o respeitei, sempre fui uma esposa fiel, séria!

A cena que muitos acharam patética, chegou ao conhecimento de Rosa, que se apressou em visitar Lurdes. Foi já na presença da sua grande amiga que Lurdes desabafou o que ainda faltava.

Quanto a Carlos, já tinha quanto bastasse de lamúriase deixou a sua mãe aocuidado de Rosa.Quem melhor o poderia fazer?

- Rosa, minha querida. Existem coisas na vida que não tem explicação. Podia muito bem ficar a viver os meus últimos anos de vida descansada mas algo muito forte me impele para aquele bandido, traidor. Não é pelo sexo, não querida, isso já há muito que deixou de ser uma ambição.Mas quando entro nesta casa, quando me vejo sozinha, sem a sua companhia, uma enorme tristeza toma conta de mim e só me apetece morrer!

Rosa constatou que a sua velha vizinha, a mulher que, bem ou mal, a ajudara em muitas situações problemáticas, estava verdadeiramente destroçada. Era urgente ajudá-la, tal como ela sempre a havia ajudado. Era urgente fazer qualquer coisa pelo casal que sempre esteve presente quando ela mais precisou!Era a sua vez!

Ora, Fernando tudohavia escutado, por detrás das cortinas.Ele, bem lá no fundo, sabia que mais tarde ou mais cedo, a relação que mantinha, como fogo de palha, não podia ter pernas para andar. A moça era quase trinta anos mais nova.Contudo, a efervescente atracção carnal e a maneira como se sentiu seduzido pelo corpo da brasileira e pelo seu jeito meigo e sensual, levaram-no a abandonar sua esposa para se juntar a rapariga.No entanto, depois dos primeiros tempos, depois de matar a maldita fome de sexo, percebeu que haviam muitas coisas que os levavam para camposantagónicos, nomeadamente aimportância docompanheirismo.Cheila era formosa, uma fera na cama, uma doçura, todavia,havia algo nela que o fazia reflectir e pensar em Lurdes. Enquanto uma era linda e boa amante, a outra era companheira, compreensiva e, como bom arreigado machista, dava ainda muito valor à sua obediência.Cheila era senhora do seu nariz, não aceitava imposiçõesnem era tão extremosa com ele.Colocou ambas nos pratos da balança, concluindo, pouco antes de Lurdes ter feito aquele espectáculo,que era ela a escolhida. Restava-lhe agora ter bolas para se chegar a frente. Um pedido de desculpas teria de ser apresentado mas, que se lembrasse, nunca o tinha feito na vida, razão porque ainda não tinha cedido aos prantos de Lurdes. Quanto a Cheila, tudo seria muito mais simples, bastava dizer-lhe“bem, foi bom mas termino por aqui!” Se Fernando sofria por falta de coragem, machismo, arrogância, chame-se o que se quiser,Rosa,   como não padecia desses males, resolveu fazer-lhe uma visitinha de cortesia.

- Senhor Fernando - disse-lhe,depois de ser convidada por ele a sentar-se -,como sabe, eu nutro pelo senhor um grande carinho e um enorme respeito, mas existem situações, acontecimentos em que uma amiga tem de intervir. Neste vosso caso, vejo-me na obrigação de me meter no assunto. Sendo assim, desejando que me escute até ao fim, começo por lhe perguntar: Diga-me, que futuro terá o senhor junto dessa moça?Como se sentirá quando, daqui a uns anos, já não a puder satisfazer, digo-o, em todos os sentidos. A grande amizade que nutro por si e por Lurdes dá-mecomo que autorização para lhe perguntar: Será melhor ter um ano de prazer ou passar o resto da vida do lado de quem lhe quer bem?sem interesses, sem manhas , só por amor, companheirismo?

Ora, para grande surpresa de Rosa, Fernando não só concordou como lhe pediu ajuda.

- Minha ajuda? Que tipo de ajuda?- intrigou-se Rosa.

Fernando não sabia como lhe explicar que estava muito arrependido e que a sua vontade era de regressar. Contudo, o seu incrustado machismo como que o inibia de dar um só passo.No entanto, Rosa apercebeu-se rapidamente disso.

- Se quiser, eu falo com dona Lurdes e digo-lhe que você quer voltar.É isso que está a tentar dizer-me, não é?

O homem baixou a cabeça.

- Bem, quem cala consente - concluiu Rosa, levantando-se com ligeireza e visivelmente satisfeita.

Afinal não fora preciso muita ladainha. O velho Fernando, arreigado macho, estava arrependido.

Horas mais tarde,o casal ficou novamente cara-a-cara. Mas as palavras não queriam sair. Fernando ficou no centro da sala, como quem visita um estranho pela primeira vez.

- Queres uma cervejinha?perguntou-lhe Lurdes, meio a medo.

- Uma cervejinha vinha mesmo a calhar…- respondeu-lhe o seu marido, de voz sumida e de mãos nos bolsos.

Quando ela regressou com a bebida, Fernando despiu-sedemachismos e,de vozembargada, disse-lhe:

- Lurdes, peço-te, por favor, que me perdoes. Fui um tonto e um canalha quando me deixei seduzir pela moça. Depois de algum tempo é que me apercebi que a vida não se resume a uma boa queca com uma rapariga com pouco mais de metade da minha idade. Nunca poderia dar certo, por duas razões. Primeiro,porque só lhe desejava o corpo; segundo,porque nunca deixei de estar ligado a ti e aquela coisa que muita falta faz neste mundo actual: o conforto da família;o abrigo,nos maus e nos bons momentos; o ninho onde sempre regressamos, porque é lá que sabemos ter quem nos acolhe de braços abertos, façamos o que fizermos.

Lurdes baixou a cabeça e as lágrimas brotaram em cascata por seus envelhecidos olhos.

- Não fiques assim…- murmurou Fernando, abraçando-se a ela. - Perdoa-me, velhota - disse-lhe, beijando-a na testa.

Depois das pazes feitas, vieram as pontas soltas que ficaram por ajustar. A brasileira, quando soube da debandada de Fernando, abancou defronte ao apartamento do casal e fez um escândalo que ficou para a história do covil dos lobos. Mas como o tempo tudo amaina, foi com alguma naturalidade que a vida de Fernando e Lurdes retomou o seu curso normal. Quanto à jovem brasileira, passado um mês, já tinha outro chamego.Para variar,um homem vinte anos mais velho.

 

 

 

 

XV.

 

- Senhor,nem sei como começar.

(#) - Começa pelo início, filho - disse-lhe Capavila,depois de lhe terem dito que Daniel queria falar-lhe com urgência, apesar de saber que estava a pisar o risco.

Depois das reprimendas, Capavila escutou a história que o jovem medrosamente lhe contou ao telefone.

Apaixonado? Quépasóhombre, perdiste el seso? Quieres quetena una cosa malígna?

Daniel conhecia bem o tom. Foi-lhe evidente que o velho mafioso ficou perturbado.

- Senhor, perdoa-me! Eu juro que não queria estar nesta situação. Mas ela enfeitiçou-me de tal forma que não consigo pensar em outra coisa!

- Que farei contigo - barafustou Capavila. - Não sei o que fazer.Esperava isso de quase todos menos que acontecesse com o meu filhinho amado.

Capavila falava de coração. Sentia-se muito desalentado com a notícia.Quanto a Daniel, dava para imaginar o rosto do seu patrão,a passar a mão na sua longa barba russa,aqueles olhos negros inexpressivos, como duas azeitonas a olhá-lo profundamente, um ligeiro sorriso nos lábios, algumas das particularidades que faziam parte dum corpo de metro e cinquenta mas que metade do México outrora temeu.

- Patrão,desculpe-me, por favor. Estou perdido por ela!

Daniel emudeceu.

- Meu filho, estás chorando?Danielito, meu filho, que se passa, homem?

Capavila comoveu-se com ele. Daniel era dos poucos que ele amava como se fosse um filho de sangue, Muito mais do que Daniel um dia sequer imaginaria.

- Vou ver o que posso fazer junto dos outros - disse-lhe, para finalizar a conversa.

Embora Capavila fosse muito considerado no seio da organização criminosa, a sua preponderância estava a anos luz de ter a mesma força que antes. Aliás, ele tinha a consciência de que o toleravam só porque ainda ia tendo alguma estima em alguns sectores governamentais.Contudo, apesar de saber que pisava o risco, o velho criminoso, mesmo assim, tentou libertar o seu protegido. Mas estava escrito nos astros que a vida de Daniel mudariaradicalmente.Capavila, de forma surpreendente,prometeu, sob jura de sangue, que se libertassem Daniel da alçada da organização,ele próprio o mataria,caso desse com a língua nos dentes.No entanto, Daniel ainda teria de terminar o que ficara a meio. O casal teria de morrer! Essa seria a sua última missão, por ordens do chefe supremo, pouco acostumado a assuntos tão insignificantes. Contudo, como Capavila, seu antigo parceiro do crime, já o havia salvado duma morte certa,ouviu-o e concordou com a proposta.

Foi um dos dias mais felizes para o velho criminoso. Daniel teria a melhor notícia da sua vida. Ele sabia-o.Em tempos havia passado pelo mesmo dilema.

A leste do problema de Daniel, muito pelo contrário, Fábiovivia os seus melhores dias.Cada vez mais apaixonado pela sua bela mexicana, recebeu com euforia a notícia de que iria ser pai.Não podia ser diferente! Já a muito que tentavam mas nunca o tinham conseguido. O que o jovem não sabia era que Helena ocultou que tomava contraceptivos e que não queria ser mãe, pelo menos enquanto o seu sexto sentido não a deixasse em paz. Mas não obstante todas a suas cautelas, arriscou fazer amor   mesmosabendo de antemão que havia acabado as pílulas.Ora, no preciso dia em que deixou de as tomar, por muito raro que fosse, ficou grávida!

- Isto não poderia ter acontecido comigo - lamentou-se diversas vezes.

Mas abortar não podia, pois Fábio ficou logo a par pela boca do médico, quando ela se sentiu mal e tiveram de se deslocar às urgências.

- Essa má-disposição é consequência de uma gravidez. Parabéns, senhor –disse-lhe o profissional, cumprimentando-o.

Enquanto Fábio dava pulos de alegria, Helena tentava mostrar ânimo.Porém, não lhe era fácil.Algo a fazia temer por todos.

Desse dia em diante, redobrou a vigilância.Como sentinela dum castelo, Helena tentava nunca ficar distraída. Aquele jovem, aqueles olhos, aquele rapaz nunca lhe saiu da memória.

- É ele, é ele, tenho a certeza!

Os pesadelos eram recorrentes.

- Que foi, querida?

Fábioera sempre acordado com os mesmos gritos.

- É ele! É ele, tenho a certeza!

Aquilo estava a tornar-se insuportável. Fábio quase que a obrigou a ir a um psicólogo.Os dias iam avançando e,embora o temor de Helena não se concretizasse, o mal presságio continuava, para seu desespero.Havia entre ambos uma grande cumplicidade, uma total franqueza,à excepção de alguns pequenos segredos, que não tinham directamente a ver com a relação.   Por esse facto, Helena não conseguiu ocultar de Fábio os seus medos. Ele teria de ser parte da solução e não do problema.

Desta vez e com alguma preocupação, Fábio escutou os receios da sua linda mulher. Helena contou-lhe que o moço que se cruzara com eles provocara-lhe algo de muito estranho, amplificando o sentimento que já vinha sentindo.

- Não sei explicar-te por palavras. É como uma onda angustiante que me abrange o corpo todo.Algo maléfico mas ao mesmo tempo duvidoso - relatou Helena.

Fábio esforçava-se por compreendê-la.Todavia, quando olhava à sua volta, só via coisas boas a acontecer: a sua mãe, estava cada vez mais famosa, cada vez mais apaixonada pelo marido e pela sua associação,a ponto de, para melhor a servir, tirar um curso de Sociologia;o Senhor Fernando e a Dona Lurdes, viviam por fim na paz dos anjos e Carlos enchia-se de filhos, continuando, no entanto, umsalta-pocinhas.Então, o que veria a sua mulher que ele não conseguia ver?

Apesar da sua patente preocupação e tendo em conta o estado nevrótico deHelena,Fábio seguia com a sua vida por diante.Havia sido surpreendentemente convidado por Catatua para uns servicinhos secretos. Este, cada vez mais influente no seio do partido do qual sempre fizera parte, recorreu aos préstimos de Fábio, uma das melhores toupeiras do mundo obscuro da política e das finanças. Desta vez, teria de persuadir um feroz oponente de Catatua a retirara sua candidatura ao órgão máximo do partido, caso contrário, algo de muito sujo sobre a sua vida íntima estaria em pouco tempo nas primeiras páginas dos jornais.Fábio aceitou na hora. Na verdade,gostava daquele trabalho. Dava-lhe um certo gozo ver o rosto assustado daqueles que tinham segredos que, se publicados, se tornariam verdadeiros escândalos nacionais.Era como se ele os tivesse na palma da mão.Neste caso para que fora contratado, teria de convencer o desgraçado, que traía a mulher com uma moça vinte anos mais nova e que, por sinal, era sua secretária, a desistir de concorrer contra Catatua.

Depois de receber as fotos da moça, as cópias do registo predialdo apartamento que,ainda por cima, estava no seu nome e o estrato bancário que comprovava que o pagamento fora feito através de uma conta secreta,tinha tudo para o demover dos seus intentos.Era mais um que “morria afogado” nas suas próprias trapalhadas.Mais um que Fábio reduzia a um simples envermelhecer de cara.

Como sempre, deu-se bem também neste caso. Num ápice, o oponente de Catatua retirou-se, para que as informações não chegassem aos ouvidos da sua esposa e filhos. Não era conhecido de quase ninguém.Porém,aqueles que o conheciam, diziam valer ouro.

Não tardou muito até procurarem aliciar Fábio a ameaçar o próprio Catatua. Contudo e apesar de não querer mais conviver com o homem que se aproveitou das suas fragilidades, ele jamais o trairia!

- Aculpa não morre solteira - pensou Fábio, quando recebeu a proposta para derrubaro seu antigo amante.

Apesar de tudo, apesar de levar anos a tirar da mente e da pele o cheiro enjoativo do seu perfume, jamais faria tamanha traição. Afinal, recebeu pelo sacrifício inúmeras riquezas, bens que, mesmo que trabalhasse 500 anos,jamais os conseguiria adquirir.

Essa recusa chegou entretanto aos ouvidos de Catatua.

- Obrigado Fábio - fez questão de lhe dizer ao vivo e verdadeiramente emocionado. - Sei que não o farias - acrescentou.

- Porque não –perguntou Fábio.

- Porque apesar de eu ter sido um verdadeiro pulha, um homem que só pensou na sua satisfação, esquecendo-se que do outro lado estava uma pessoa e que fazia sacrifícios, continuei querendo e querendo mais.

- Eu já era adulto, sabia para o que ia - retrocou Fábio.

- Eu, na verdade, valho-me do meu dinheiro para atrair jovens, minha perdição - confessou Catatua. - Não sei, mas qualquer dia terei de assumir esta vida secreta - acrescentou.

- No nosso país?Num instante passas dum prodígio a um repudiado! Nunca te atrevas a fazer tal coisa!- comentou Fábio. - Se amas a tua mulher, os teus filhos, enfim, a tua família, não o faças! Pode ser terrível o que estou a dizer-te mas, todavia, não vejo outra maneira de viveres a tua bissexualidade.

Quando ambos saíram do bar, já passava das 11 da noite.Fábio regressou a casa com a felicidade estampada nos lábios. Tinha finalmente morto e enterrado todos os seus fantasmas!Aquela conversa, já há muito que deveria ter acontecido, pois haviam pontas soltas, muitas pontas soltas, muito ressentimento.

 

 

 

 

XVI.

 

Do outro lado da cidade, vivendo um verdadeiro romance, Daniel foi por fim autorizado a concluir a sua missão.Iria ser o princípio da sua desvinculação, o começo de uma vida longe do crime, um adeus a um quotidiano de sobressaltos.Contudo, antes de receber o bilhete que lhe deu carta branca para encerrar o assunto “casalinho maldito”, tinha conversado pela noite dentro com Inês, sobre a palavra de Deus e o seu significado para cada um. Não obstante toda a sua paixão, todo o seu amor, Daniel não a escutou só porque se tratava de Inês, porque se sentia bem ao seu lado, não. O jovem ficou mesmo interessado, prometendo-lhe que a acompanharia quando fosse a um culto.Mas para que ficasse livre, definitivamente liberto, teria de concretizar o seu último assassinato.Por mais insólito que lhe parecesse, sentiu pela primeira vez pena do casal.No entanto, teria de ser.Seria o cheque mate na vida de assassino ao serviço da organização.

Nessa mesma noite, Helena sonhou com a sua família. Os irmãos que ainda lhe restavam, surgiram no sonho. Quando acordou, sentiu-se como há muito não se sentia. Aqueles presságios , aquele medo, aquelas sensações pareciam ter desaparecido!A bonita mexicana irradiava o brilho dos velhos tempos, constatou Fábio quando acordou.

Então, o jovem resolveu convidá-la para almoçar fora. Tinha sido inaugurado um novo restaurante de luxo, lá para os lados do lumiar. Helena aceitou com agradooconvite do seu amor.

 

- Hoje só volto pela noitinha. Tenho de ir à embaixada do México e provavelmente demorarei muito.

Daniel precaveu-se deste modo contra alguma eventual surpresa. Não fosse o diabo tecê-las, telefonou a Inês logo pela matina, com a desculpa que lhe veio à cabeça em primeiro lugar.

Depois de se assegurar que Inês ficarialonge, chegara a hora! Apetrechou-se com uma pistola com silenciador, um punhal que colocou a cinta e a roupa de assassino, uma vestimenta completamente cinza. Ainda não haviam batido as 10 horas da manhã e já Daniel estava defronte à moradia do casal.Quando olhou para a foto dos jovens que iria apagar do mapa, a moça pareceu-lhe familiar.

- Será que já me cruzei com alguém parecido - pensou.

De repente, veio-lhe à memória a moça que o encarou do lado de fora do estádio.

- Que engraçado…, como a vida é bizarra… - sorriu, a olhar a moça na fotografia. - Tão bonita, uma cara tão linda e tem de ir para debaixo da terra – murmurou, enquanto esperava que o casal saísse de casa.

Encoberto pelas árvores do jardim que ficava em frente do condomínio de luxo, com uma calma sepulcral, esperou.

Ora, Fábio estava verdadeiramente nervoso. Naquele dia todos resolveram telefonar. Primeiro foi a sua mãe, com um mau-pressentimento,depois, dona Lurdes a perguntar se estava tudo bem.Até Carlos, que não era nada de telefonemas, resolveu ligar-lhe naquele preciso dia!

- Mas o que se passa com esta gente hoje?

- Eles gostam de ti, meu amor - disse-lhe Helena, com um vestido branco que lhe dava pelos pés.

A linda mexicana vestira-se com o vestido que Fábio lhe tinha ofertado por ocasião do seu aniversário mas que ela, por um motivo ou por outro, nunca o havia usado.

- Fica-me bem?- perguntou-lhe, sorrindo.

Seus cabelos caíam-lhe rebeldes sobre os ombros e o decote, onde os olhos de Fábio bateram , fizeram-no desejá-la.

- Como tu és linda, meu amor - exclamou Fábio, abraçando-a.

- Obrigada - disse-lhe em resposta.

- Posso dar-te um beijo?

Helena conhecia aquele olhar.

- É melhor não! Acho que esses olhos lindos querem mais do que um simples beijo - exclamou.

- Tens razão, não sei se resistiria - concordou Fábio.

Por fim, o casal saiu de casa e desceu até ao rés-do-chão.Ao chegar, Helena voltou a sentir um calafrio mas, desta vez, não disse nada.Não iria estragar o dia ao seu homem.No trajecto até ao restaurante, foram vários os maus-pressentimentos. Contudo, no decorrer do almoço, que foi servido principescamente, a bonita mexicana não sentiu maus presságios.

- Estou tão feliz - disse-lhe, consertando o decote do vestido.

- Como vamos chamar o menino - perguntou-lhe Fábio, enchendo um copo de vinho e entregando-o a Helena.

- Nem sabemos se é menino, como vamos escolher o nome?

- Mas podemos escolher dois. Se for menina, colocamos-lhe o nome de Rosa Helena. que me dizes?

- Por mim, tudo bem - respondeu-lhe Helena, bebendo um pouco de vinho. - Se for menino, gostaria de Daniel.Gostas?

- Fábio sorriu-lhe.

- Claro, meu amor.Acho lindo o nome.

Ora, Daniel não imaginava que o casal que ele teria de assassinar acabava de eleger o seu nome para a criança que vinha a caminho, caso fossemacho. Sentia-se perturbado, sem explicação aparente. O casalinho demorava-se no almoço e os nervos vinham tomando conta dele, facto que estranhou, pois nunca tal sucedera.

Depois do almoço, Helena e Fábio resolveram passear num jardim ali perto.

- Local perfeito - pensou Daniel, seguindo-os de longe.

Os Deuses dos assassinos estavam com Daniel. O dito jardim estava despido de gente!

- Fácil, muito fácil - murmurou o jovem mexicano.

No rasto do casal, pelos sinuosos caminhos de terra, eis que foi dar com os enamorados beijando-se fervorosamente junto duma fonte, mesmo ao centro do jardim.

- Que belo cenário – exclamou, apontando-lhes a arma.

Helena gritou:

- Por favor, não! Daniel, sou eu, Helena,a tua irmã!

O dedo nervoso de Daniel parou no instante em que ouviu o nome da sua desaparecida irmã.

- Era muita coincidência!Mas como… Como ´´e que a moça sabia? – pensou. - Nem mais um grito - disse-lhes.

Fábio colocou-se à frente de Helena. Daniel manteve-se a dois metros de ambos, De arma em punho.

- Porque não disparo?Mas, como a moça…

Helena empurrou Fábio e lançou-se quase aos pés do assassino.

- Eu sabia que eras tu, meu irmão! Por isso esta angústia quetanto me castigava – acrescentou, chorando. – Pinóquio, lembras-te?

Não havia dúvidas! A moça era sua irmã, a linda Lenita!Só os seus irmãos o chamavam de Pinóquio.

 

 

 

 

XVII.

 

- Júlio! Júlio, tu estás bem?

- Que foi, meu cisne - alarmou-se o político.

- Não sei. Hoje tenho tido maus pressentimentos.

- Fábio está bem?

- Sim, está.

- Helena e o bebé?

- Também - respondeu-lhe.

- Então, como constatas, eu também estou bem, só com muitas saudades - disse-lhe.

Vinha aí uma batalha política fundamental para as ambições dele e do seu partido.

- Desculpa, meu amor.Eu sei que não tenho sido um esposo presente mas, quando isto tudo terminar, eu juro que vamos de férias.

- Não te preocupes, querido - disse-lhe Rosa. - Quero que sejas eleito deputado, para eu me sentir a mulher mais feliz do mundo - confessou.

- Obrigado, meu cisne. Se não fosses tu, eu não teria tanta força. Amo-te muito - declarou Júlio.

Mas, mais uma vez, Júlio vinha traindo Rosa. Desta feita, envolvera-se com uma linda Secretária do Partido, uma vistosa morena de metro e oitenta e de corpo  irresistível.A queda que tinha pelas morenas, embora fosse apaixonado por uma loira que gostava de chamar de cisne, seria mais tarde o seu enterro.Aquele homem envergonhado, aquele rapaz que quase se urinava quando falava com uma mulher bonita,com o tempo,acabou por transformar-se num traidor sem escrúpulos.No entanto,enquanto Rosa não descobrisse, gozava àtripa-forra no pomposo corpo da morena.Mas seria por pouco tempo. Rosa estava prestes a ser alertada para o que o seu marido vinha fazendo nas suas costas.

No que se referia ao seu filho, longe de imaginar, Rosa esteveperto de o perder. Os seus pressentimentos estavam certos!

Então o dia chegou.

- É como te digo, minha querida. Ele anda a enganar-tehá mais de dois meses. Chama-se Vera e vive para os lados de Odivelas.

Rosa recebeu a notícia sem pestanejar. Limitou-se a baixar a cabeça e a suspirar profundamente.

Fora precisamente o braço direito de Júlio quem denunciou o envolvimento.

- Acho que uma mulher especial, em todos os sentidos, não merecia tamanha crueldade - disse-lhe o político.

Rosa não chorou. Ele não era digno das suas lágrimas. Ficou triste, isso ficou. A sua dedicação, orgulho, tudo quanto gostava nele, desapareceu num ápice. Mas ficou no lugar do amor, uma enorme mágoa.Estava a viver tempos verdadeiramente aprazíveis:ia ser avó, a sua associação ia de vento em popa, o seu filho, junto de si. Não. Não seria mais um desaire amoroso que a desviaria de ser feliz.Contudo, embora a mente assim pensasse, o coração morria aos poucos pela traição infligida.

Quando Rosa estava prestes a entrar novamente em depressão, Fábio, alertado por Lurdes, chegou a tempo de evitar que ela caísse no abismo. Foi com o carinho do costume, o amor sempre presente, a união da família que Rosa suportou o embate.Quanto a Júlio, Fábio prometeu à mãe que a carreira dele teria vida curta. Apesar das súplicas de Rosa para que não o fizesse, estas valeram-lhe pouco e não surtiram o efeito pretendido.

Depois de ver a sua mãe reerguida , depois de constatar que ela estava de novo com vontade de viver, dedicou-se de corpo e alma a ajudar o seu cunhado, o mesmo que esteve prestes a mandá-lo para debaixo da terra.

Após aquele insólito acontecimento, depois de os irmãos que tinham sido separados pelas circunstâncias da vida prometerem que nunca mais se largariam, havia que resolver o assunto organização.

Daniel chorou como nunca o tinha feito. Sua irmãzita querida, aquela que nunca o largava quando eram crianças, estava viva e bem viva!Havia muito que contar um ao outro. Muita ponta solta precisaria de ser desenrolada, a meada era grande,como grande era a saudade.

Inês foi naturalmente envolvida no imbróglio. Fábio e Helena, após ouvirem a história de vida de Daniel depois da separação da família e sobre aquilo em que ele se havia tornado, resolveram ajudá-lo. Entretanto, com o passar dos dias, como já era esperado por Daniel, a organização ficou a saber de tudo e a primeira vítima foi Capavila, morto com 9 tiros enquanto tomava banhoacompanhado de duas das suas meninas,as quais tiveram a mesma sorte.

No que concernia a Daniel, só havia duas hipóteses: ou fugia ou denunciava.Fábio preferiu a segunda.Mas para que tudo tivesse o efeito desejado, precisaria de alguém influente, alguém que conhecesse os poderosos governantes mexicanos.Catatua, mais uma vez, foi a pessoa escolhida. Não havia outra. Ora, Daniel teve de contar-lhe tudo o que sabia sobre a organização:quem eram os cabecilhas, onde viviam, quais as empresas que geriam, quais os Governos envolvidos.Estavam espalhados por quase todo o Planeta.Catatua, com as informações que obtivera, fruto do desespero de Daniel que, pretendendo mudar de vida,queria ser um cidadão como outro qualquer,tinha nas mãos uma bomba capaz de provocar rebeliões nos quatro cantos do Mundo.

No entanto, a coisa teria de ser bem feita, para atingir os objectivos pretendidos.Por onde começar, com quem falar, a quem se dirigir, foi a primeira pergunta a ser formulada mas, de imediato respondida: Serviços Secretos e de Informações do Estado Português.

Capavilanunca imaginaria que as informações que forneceu durante muitos anos a Daniel,sobre a estrutura da organização, sobre os nomes dos chefes, moradas, viessem a ser utilizadas para a destruição da mesma.

Com ramificações em várias áreas de negócio, Governos, empresas que à partida ninguém julgaria serem geridas por mafiosos,tudo teria de ser executado no máximo sigiloeassim foi. Daniel teve de passar umas férias forçadas em local determinado pelos Serviços Secretos e do qual apenas quatro pessoas sabiam.

Enquanto Rosa, mais uma vez, se levantava, erguendo-se deum abalo emocional,o Mundo inteiro,após um ano e depois de vários serviços secretos se terem unido com o propósito de extinguir a poderosa organização criminosa, recebeu com grande impacto a notícia da prisão de conhecidos personagens, gente famosa que ninguém,nem nos seus mais recônditos sonhos, imaginaria fazerem parte de tal coisa. Foi uma das maiores vitórias policiais e governamentais contra os traficantesde droga, tudo graças ao amor dum ex-criminoso por uma linda portuguesa de seu nome Inês e após quase ter matado a própria irmã, que o destino habilmente lhe colocou no caminho.

Passaram-se alguns anos sobre o estrondo mundial, o tempo suficiente para que Fábio se tornasse pai de uma linda menina, o tempo que tinha interiorizado para a sua pequena vingança.

Júlio, num instante, foi derrubado dapresidência de um Partido em ascensão. Recorrendo ao que sabia fazer de melhor, Fábio divulgou em todos os jornais o que ele fez com sua ex-mulher, a senhora sua mãe. Deu-se ao luxo de comprar a morena, rapariga sem escrúpulos, que lhe forneceu fotos íntimas dos dois, as quais serviram para descredibilizá-lo na “praça pública”.Júlio esfumava-se enquanto o diabo esfregava um olho, voltando ao seu emprego nos CTT. Ouviu-se dizer que mais tarde regressou a aldeia que o viu nascer.

Quanto a Rosa, prosseguiu mais alguns anos com a sua batalha contra o preconceito, morrendo ainda nova de cancro damama.Ficou a obra em forma de associação, uma das mais activas do País e com mais fundos disponíveis. Foi com alguma naturalidade que Helena tomou o seu lugar como presidente. Dedicou-se de corpo e alma à associação que um dia Rosa sonhou e ergueu com a ajuda do seu filho, com a fervorosa vontade de auxiliar todos aqueles que, de uma maneira ou de outra,caíram no mundo da desgraça. Homens, mulheres e crianças foram reerguidos, quais Fénix renascidasdas cinzas,por “Uma ROSA PELA MANHÔ.

No leito da morte, Rosa quis falar ao seu filho, pela última vez:

- Dá-me a tua mão, querido - pediu-lhe.

Fábio fez o que ela lhe pediueRosa, apertando a sua mão, disse-lhe, de voz sumida:

- Querido. Oh meu querido filho,essas lágrimas, meu amor, a tua tristeza, vão no meu coração e lá do alto, junto de Jesus Cristo, bem lá do alto, vou pedir ao Senhor que te mande o Espírito Santo para te consolar, para te tirar essa dor. Eu vou, mas vou realizada e com o coração cheio de amor.

- Mãe! Por favor, não vais morrer! Não digas tolices, ainda vamos divertir-nos muito, tontinha - disse-lhe Fábio, encostando a mão dela ao seu peito.

- Não, querido. Sabemos que chegou a hora. Cuida da minha netinha Rosa Helena e ensina-lhe os bons preceitos, o lado bom da estrada.

Uma hora depois desta conversa, Rosa faleceu. No seu enterro, onde estiveram até representantes do Governo, o cemitério foi pequeno para tanta gente.Todos os meios de comunicação social fizeram questão de abrir os noticiários com a morte de Rosa.Houve até jornais estrangeiros que divulgaram o trágico acontecimento.

Algum tempo depois, a pedido de Catatua,Fábio fez-lhe uns trabalhinhos muito importantes que lhe permitiram ganhar as eleições. No entanto, não aceitou cargos governamentais nem quis ser figura pública. Preferiu ficar na sombra, escondido.Afinal, não era ele uma toupeira?

 

Fim.

 

28-12-2017