conto. até já mano

conto de: roberto marcos

 


 

 

Até já mano…

 

Meu irmão era meu pequeno herói, o meu melhor amigo, a pessoa de que eu gostava mais neste mundo cruel.

 

Nascemos ambos numa pequena localidade que pertencia a uma aldeia quase escondida no mapa nacional. Meus progenitores trabalhavam no campo por conta das pessoas mais abastadas da zona. Aqueles eram tempos difíceis. Fomos criados praticamente na miséria. Meu pequenino irmão, dois anos mais novo nasceu com uma deficiência visual que em pouco tempo provocou-lhe cegueira. Recordo-me perfeitamente daqueles dias, dos dias que por vergonha meus pais escondiam-no dos outros habitantes, era quase um sacrilégio ter um filho com defeitos na altura. O próprio sacerdote da aldeia dizia-lhes que era castigo de Deus, algo de terrível eles teriam de ter feito. Ora, meus pais além de analfabetos eram pouco dados a grandes afectuosidades, posso dizer mesmo que eram brutos como as pedras do caminho. Nem eu nem meu irmãozinho soubemos por muito tempo, quase até a idade de adultos o que era uma letra e para que serviam. Mal completei 12 anos meu destino mudou radicalmente. Deixei de tomar conta de Fábio com 10 a época e pela madrugada entre bolachadas e pontapés tive de seguir meus pais, que de pais tinham pouco. Fábio ficou por sua conta e risco, a família precisava de mais braços o que ganhavam não dava, diziam eles. Raramente eu e meu irmão soubemos o que era roupa nova, e a que tínhamos era nos dada pelo padre que de vez enquanto nos visitava com o intuito principal de lançar água benta nos olhos de Fábio. Dizia que era para que saísse o demónio! Os dias que eu e Fábio ficávamos a sós haviam acabado. Não havia que comer mas arranjávamos sempre algo para aconchegar o estômago nas quintas envolventes. Passávamos o dia na floresta e foi já nessa altura que verifiquei que Fábio tinha um talento especial. Meu irmão parecia comunicar com os bichos do campo, fossem eles quais fossem. Recordo-me dum momento em particular quando eu dei de caras com uma cobra. Claro que minha primeira reação foi tentar protegê-lo. Mas para meu espanto ele perguntou-me; Samuel, Samuel onde ela está? Lembro-me de lhe ter respondido; Dois passos da gente! Leva-me até ela por favor. Estás maluco? Ela não nos faz mal, acredita em mim irmão. Fábio tinha uma maneira muito tranquila de falar. Tudo o que saía por sua boca parecia transformar-se em ouro tal era a brandura com que se prenunciava. Depois de muita insistência sua eu coloquei-o quase tocando na bicha que estava enrolada debaixo dum tufo de erva. Recordo-me ainda com muito orgulho do que ele fez. Baixou-se e resmungando não sei o quê, tocou-lhe com tanta delicadeza e carinho que o bicho selvagem deixou-se manipular de maneira tão surpreendente que eu pensava estar a assistir um milagre. Colocou-a ao pescoço, beijou-a dezenas de vezes e quando entendeu, só quando entendeu, deixou-a no mesmo local. Mas esse não foi o único acontecimento quando os dois éramos donos e senhores dos campos verdejantes e da floresta maravilhosa que circundava nossa humilde casa. Era recorrente encontrarmos armadilhas colocadas pelos pastores com a intenção de capturar lobos, os maiores culpados segundo eles pela morte de suas ovelhas. Num dia magnifico de sol, nós como sempre vagueávamos pelos campos e por acaso encontramos um enorme lobo com sua pata dianteira presa numa armadilha que provocava dores incalculáveis ao bicharoco. O animal estrebuchava de pânico e de dor. Quando nos viu seu primeiro instinto foi nos mostrar os dentes, uma reação normal de quem se sente acouçado. Fábio manteve-se calado e como andava sempre pela minha mão quase já não precisava dizer-lhe nada. Samuel o que foi? Estás nervoso porquê? Ele pressentia todas as minhas reações. Um lobo enorme, disse-lhe recuando. Mas o que ele está a fazer? Vamos! Ele pode se desprender, gritei virando as costas. Para! Disseste preso? Sim, numa armadilha! Fora daqui! Não, leva-me a ele, gritou-me. Não maninho, é perigoso demais. Ele não nos vai fazer mal nenhum, afirmou retirando sua mão da minha. Eu não tive coragem de o acompanhar! O que meus olhos viram depois foi verdadeiramente incrível. Fábio agachou-se a um metro do grande lobo castanho e murmurando não sei o quê fez com que o gigantesco bicho se acalmasse quase de imediato. Lindo menino, lindo menino, dizia-lhe a tocar-lhe na cabeça. O lobo transformara-se na minha frente num cão doméstico! O que temos aqui, comentou a apalpar a pata presa. O animal gania de dor mas deixava que ele tentasse o desprender facto que aconteceu minutos depois. Ainda cambaleante o bicho selvagem manteve-se junto dele e com uma lambidela na sua mão, aquela que o desprendeu virou costas e coxeando entrou floresta dentro. Não sei se era dom divino, não sei como ele conseguia tal coisa, mas eu tinha um enorme orgulho de Fábio. Mas tudo infelizmente mudou. Tive de ir trabalhar com meus pais deixando meu irmão sozinho em casa. Não que ele não se desembaraçasse só, mas era eu que morria de saudades dele. O que ganhávamos era pouco, o dinheiro mal dava para comer, mas vinho havia sempre. Tanto meu pai como minha mãe gostavam da pinga e eram recorrentes os festivais de pancadaria onde a vítima acabava sempre por ser Fábio e sua deficiência. Era horrível assistir aos meus pais batendo selvaticamente no meu mano indefeso. Anormal! Não serves para nada! Qualquer dia deixo-te na mata para morreres como os bichos! Fábio tudo ouvia calado, tudo suportava mudo, tudo aguentava em breves gemidos de dor. Todas as vezes que eu intercedi em seu favor acabei também levando. Era quando tinha a certeza que os monstros estavam a dormir que tratava dele e das feridas abertas que aqueles que se diziam pais o infligiam. Fábio nessas alturas gostava de me passar a mão no meu longo cabelo loiro e dizer-me; Gosto muito de ti mano. Aquelas palavras faziam-me chorar. Eu também gosto muito de ti maninho, respondia chorando. Fábio não tinha curiosidade de conhecer outras pessoas. A vez perguntava-lhe; Não gostarias de conhecer outras pessoas, outros lugares, o mar, etc.? Não mano. Eu faço parte da floresta, dos campos, meu mundo são os sons dos rios, a fala dos animais, e a voz das plantas silvestres. Não havia dia que Fábio não levasse uma tareia. Não havia semana que eu não pensasse em fugir. Aguentamos por vários anos aquela verdadeira tortura. Cada vez mais eu odiava meus progenitores. Por outro lado eu cada vez mais gostava de meu irmão. Então no preciso dia que fiz 18 anos, nesse mesmo dia decidi terminar com a vida de escravatura que até então levávamos! Vinha planeando por largos meses retribuir aos meus pais toda a dor, toda a angústia, todo o tormento que meu irmão amado passou em suas mãos. Eu além de homem feito, deus quis que fosse dotado de grande força física, arma poderosa e eficaz contra aqueles que trataram meu querido irmão como um pedaço de lixo. Estava disposto tudo para limpar a honra dum ser vivo e muito especial. Se tivesse de ser com o sangue de duas pessoas que se diziam pais tanto me fazia, foram muitos anos acomodando raiva, muito anos vendo um rapaz inteligentíssimo, afável, carinhoso ser torturado pelos próprios progenitores. Eu Samuel, irmão de Fábio faria a justiça necessária, colocaria perante os dois monstros uma escolha, morte ou morte! Aguentei anos e anos todo o tipo de tiranias, vi todo o tipo de crueldade, assisti a todo tipo de humilhação! Foi entre copos de vinho, entre mais humilhações ao filho deficiente, entre pontapés, e insultos a mim que minha vingança teve começo. Sei agora que foi muito bárbaro o que fiz, sei que foi verdadeiramente desumano o que se passou, mas fi-lo por mim e por meu irmão amado. Fábio parecia estar a pressentir algo de terrível para a acontecer que naquela noite não queria sair do meu lado. Mais uma vez ele pressentiu. Tens de te acalmar mano, dizia-me em surdina. Eu estou calmo, disfarçava. Mano, eu gosto muito de ti, tens de te acalmar! Fábio, sim ele pressentiu sei agora. Está tudo bem mano, disse-lhe pela última vez. Fui as traseiras da casa e quando saí do barracão onde estavam guardadas as ferramentas de trabalho, ouvi Fábio dizer-lhes; Pai, Mãe, falem com Samuel, ele está muito nervoso! Eu pressinto que algo de muito grave vai acontecer! O que eu assisti depois fez com que meu ódio por eles aumentasse ainda mais, se isso fosse possível! Fábio estava a ser bombardeado de bolachas por todo o lado. Entrei como um trovão porta dentro e o primeiro que apanhei levou com o machado na cabeça caindo de súbito. Monstros! Monstros! Esse rapaz é humano! Minha mãe quando reparou que seu marido jazia morto e de crânio aberto deu em gritar para mim; Samuel meu filho! O que foi que fizeste filho querido? Levantei o machado ao cimo da minha cabeça e quando me preparava para lhe infligir o golpe fatal, Fábio meteu-se entre nós e foi ele que apanhou. Quando verifiquei que o atingido tinha sido meu querido irmão, de imediato agarrei-me a ele tentando perceber a gravidade do ferimento. Fábio não respirava! Fábio tinha morrido as mãos do irmão que o amava mais que tudo. Nojenta! Pedes-me piedade? Eu ainda não havia derramado naquela casa todos os anos de frustração, de terror, todos os anos que havia assistido meu lindo irmão a ser massacrado por os pais mais insensíveis que certamente havia a face da terra. Aquela que se dizia minha mãe pagou com o corpo e com a vida todas as lágrimas derramadas por um ser magnífico, um moço que o único defeito que tinha era de ter nascido num lar onde nem eu nem ele vivemos verdadeiramente. Os únicos momentos felizes que tínhamos era quando jovens ambos disfrutávamos da luxuriante natureza que nos abarcava. Paguei em dobro por tamanha violência, sofro não por meus progenitores porque nunca os senti como tal, pago atualmente e sei que vou sofrer até ao fim dos meus dias pela falta do meu irmão herói. Todos os dias, aquase a todos os momentos ouve sua voz dizendo; Samuel? Mano eu gosto muito de ti! Por vezes dou comigo a falar sozinho; Eu também gosto muito de ti maninho.

 

 

 

Fim.

 

Roberto Marcos.

 

 

 

 

Cativeiro

 

 

 

 

 

Eu estava felicíssimo da vida. Mudei-me com meus pais para bem longe da grande metrópole. Aquele sonho antigo, quase irrealizável de meus pais concretizou-se muito antes do tempo graças a cinco números e uma estrela. Foram 466 mil euros a verba que arrecadaram no jogo do euro milhões. Ora, como a maquia dava e sobrava para o que eles desejavam, uma casinha no campo, um terreno onde pudessem plantar o indispensável para suprimir as necessidades da família, não perderam tempo e lá fomos nós rumo a terriola que escolheram para vivermos longe da citadina azáfama. Provavelmente uma grande parte dos jovens como eu iria contrariada. Provavelmente fariam birra por deixarem seus amigos, os grandes supermercados, os centros comerciais, a alegria da juventude. Mas eu destoava da maioria. Sempre desde novinho sonhei em viver no campo. A floresta, a montanha, os bichos selvagens, tudo que se relacionasse diretamente ou indiretamente com a natureza. Eu amava. Então foi com grande satisfação que verifiquei que meus pais tinham comprado uma casa mesmo juntinho a um bosque que cobria grande parte duma linda montanha. Naquele local além de nós só mais uma família habitava o lugar. Eram nossos vizinhos! Eu estava encantado, pasmado, ansioso por começar a explorar todos os cantos e recantos da floresta. Meu pai vendeu o carro que não se adequava as estradas e declives do monte e comprou uma carrinha todo o terreno, veículo mais condizente com o sítio onde estava inserido. Aquela forma de viver não era completamente estranha aos meus pais pois eles eram descendentes de pessoas do campo e daquela zona. Suas infâncias foram passadas entre rebanhos e agricultura de subsistência. Embora nossa casa tivesse o conforto que tínhamos na cidade, embora talvez fôssemos a família mais abastada do lugarejo vendo a casinha do nosso vizinho, o certo era que da porta para fora tudo era rústico, selvagem, verdadeiramente belo. Depois de conhecer minha escola e meus colegas, depois de conhecer a vila que nós pertencíamos, depois dum mês morando na nova casa, depois de isso tudo, restava-me aprofundar a relação com os dois filhos do meu vizinho, um casal de gémeos que frequentavam a mesma escola. Mas minhas expectativas saíram goradas, nem na escola e nem no lugar eles me falavam. Podia dizer mesmo que eram um quanto aos tanto estranhos. Nas aulas eram dos piores alunos. No recreio não brincavam com ninguém. Colocavam-se a parte e só brincavam um com outro. Seus rostos eram bonitos mas seus olhos pareciam sempre tristes. Não sorriam. Não falavam a não ser quando a professora dissesse que o fizessem, enfim, era um caso de estudo! Então chegou meu primeiro verão na montanha e as férias escolares por fim deram-me a oportunidade tão aguardada, explorar a floresta e tudo a que a envolvia. Eu estava encantado, feliz, todavia um pouco preocupado com os irmãos do caminho debaixo. Sempre fora acusado de ser curioso demais. Minha mãe dizia que era uma virtude, meu pai que era um defeito. Eu dizia que era as duas coisas. Curioso demais pode trazer problemas, não o ser, deve ser uma pasmaceira! Seja como for eu era mesmo curioso em demasia e vali-me disso para tentar saber mais a respeito da família Júnior o apelido pelo qual eram conhecidos. Os pais do casal de gémeos eram pessoas muito arredias, nunca tinha visto mesmo eles a conversa com ninguém, nem mesmo com os vizinhos onde se incluíam meus pais! Seria defeito ou feitio? Nada melhor do que observar um pouco do seu dia-a-dia, tentar perceber se entre eles havia sorrisos, beijos, abraços, as coisas normais que aconteciam em quase todas as famílias. Quase todas, mas naquela não! Nas conversas entre miúdos lá na escola falávamos porque seria que a menina nunca vestia saias como as outras raparigas, porque seria que o rosto de ambos transparecia um latente medo, uma tristeza só visível nos seus lindos olhos azuis. Parte foi explicada quando observei seus pais dando-lhes ordens nos campos. Eles criavam gado bovino, tinham uma pequena vacaria nos fundos dos terrenos. Meu coração bateu mais ligeiro quando observei ou homem que todos conheciam por seu pai tirar um sente de cabedal e com ele vardascar as pernas do Júnior mais novo até o rapazinho gritar por clemência. Vi que o homem não foi sensível aos seus pedidos, pelo contrário, continuou até se aperceber que ele tinha perdido os sentidos. Quando se aprontava para pegar no moço, vi sua irmã atirar-se a ele e arranhar-lhe o rosto, de imediato apanhada por uma mulher que supostamente devia ser sua mãe. Aquilo não podia estar a acontecer nos dias atuais, pensei. Depois de a miúda ter sido literalmente arrastada pelos cabelos até c

 

Asa, o jovem inerte foi carregada as costas pelo homem em direção a vacaria. Minutos mais tarde saiu de carro em direção a vila, oportunidade que tive para me inteirar do estado do meu colega. Enquanto sorrateiramente me deslocava em direção a vacaria, ouvia gritos da rapariga e da sua mãe, pareciam estar a discutir sobre seu irmão. O barracão era feito de lata retorcida, foi-me fácil abrir a porta e entrar. Uma vez dentro, dei de caras quase de imediato com o corpo do jovem caído a um canto. Corri para lá e agachei-me junto dele. Tentei reanimá-lo, dando-lhe pequenos toques no rosto. Só ao cabo de alguns minutos abriu os olhos e de pronto colocou-se de pé parecendo-me assustado. Que fazes aqui? A culpa é tua! Eu fiquei sem saber o que responder. A culpa é minha? Sim tua, repetiu enfurecido. Não tinhas nada que vir morar para aqui! Antes de vocês eu e minha irmã éramos mais felizes! Espera aí, disse-lhe. Eu só estou tentando te ajudar! Queres que o Igor te mate? Quando me preparava para perguntar quem era Igor, mesmo atrás de mim ouvi um rosnar que me pareceu dum animal furioso. Virei-me lentamente e dei de caras com um enorme animal, uma espécie de cão misturado com lobo. Era terrivelmente medonho! Seu pelo preto estava todo encrespado e babava-se abundantemente. O rapaz colocou-se na minha frente e disse-lhe; Igor, Igor, é amigo, é amigo cão lindo. A besta parecia não o ter ouvido. Ao fundo continuava a ouvir os gritos das duas raparigas. Minhas pernas tremiam de medo. O bicho era mesmo assustador. Igor, gritou-lhe o rapaz. Não! É amigo! O cão tinha o tamanho dum bezerro pequeno. Era todo negro e além disso parecia estar possuído pelo demónio, rosnava tão alto que se devia ouvir longe. Ele vai-me comer vivo! Pouco-a-pouco e cada vez mais o cão foi-se aproximando até ficar a três metros mais ou menos de distância. Atrás de ti tem um curral, salta o mais rápido que puderes lá para dentro, sussurrou-me o moço entre dentes enquanto tentava convencer a besta que eu era amigo. Olhei de relance e constatei que poderia fazer o que ele me disse. Mas ele vai em minha perseguição! No fundo do curral tem um buraco que te dá acesso as traseiras, murmurou. Não sei se consigo dar um passo, respondi de voz trémula. Queres morrer? Não. Então quando eu contar até três faz o que te disse! Ai mãezinha, choraminguei. Um, dois, três, agora! Com toda a energia que tinha virei-me e num pulo saltei a vedação e corri em direção ao buraco que realmente estava onde me disse. Mergulhei de cabeça rasgando parte da t-shirt e caí do lado de fora mesmo dentro duma foça de excrementos de vaca! Fiquei literalmente cagado até aos pés. Tinha merda de gado por todo o corpo mas não podia parar! Então ouvi de repente umas gargalhadas que pareciam vir do buraco que escapara. Olhei para atrás e verifiquei que tanto o rapaz como até o cão se divertiam do meu estado. O que parecia uma besta selvagem pulava qual cão doméstico do lado do moço! Senti-me um verdadeiro totó! Eles vieram em minha direção, só me apetecia socar-lhe o focinho. Cheiras mal, disse-me rindo-se na minha cara de parvo. Igor, querias fazer mal ao moço? Achas engraçado o que fizeste? Eu só te quis ajudar. Estava furioso com ele, doido para lhe encher a cara de bolachas. Ele ficou em silêncio olhando-me. Ninguém me pode ajudar, disse-me. Desculpa lá a brincadeira, acrescentou virando-me as costas. Espera aí! Porque teu pai te trata assim? Ele não é meu pai, eu e Flor já não temos pais, respondeu-me andando. Espera! Posso vir cá de vez enquanto? Ouvindo isso ele virou-se e respondeu-me olhando-me bem no fundo dos olhos; Aqui não. Meus tios não gostam de ninguém por aqui. Então quando podemos falar? Além do teu apelido qual é teu primeiro nome, perguntei-lhe. Tiago e minha irmã gémea chama-se Flor, respondeu. Tenho de ir, não tarda nada meu tio aparece e bem… Sim, vai antes que ele te dê mais porrada. Tiago sorriu-me! Nunca tinha visto o rapaz sorrir. Olha é melhor tomares um banho, as moscas devem te achar um petisco! E dizendo-me esta graçola afastou-se correndo em direção a casa. Nos dias seguintes não era eu que o procurava mas ele e Flor. Contaram-me porque estavam com os tios. Meus pais morreram ambos num desastre de automóvel e fomos entregues a estas bestas, disse-me Tiago. Não tens mais família? Infelizmente não, respondeu-me Flor. Já fugimos dezenas de vezes mas quando somos apanhados voltamos ao mesmo. Claro que eu tive de satisfazer várias curiosidades. Flor contou-me porque usava só calças em vez de saias, e Tiago disse-me porque tinha levado tanta pancada no dia que conhecemo-nos. Recusei-me a trabalhar, tinha os deveres da escola para fazer e era mais importante para mim! Quanto a Flor não me disse nada, bastou levantar um pouco da bainha das calças para eu ficar a saber a razão por que só usava calças. Suas pernas estavam totalmente cobertas de verdugões da porrada que levava quase todos os dias. Tentei-lhes explicar que havia direitos das crianças, que havia pessoas especializadas e instituições que se preocupavam com os direitos da criança, tudo assuntos que de vez enquanto passava na televisão. Já pensamos nisso tudo, confessaram-me. Disseram-me que uma das suas fugas foi com o intuito de alertar a segurança social para a maneira que eram tratados, uma tentativa frustrada. Meus tios foram chamados, visitados, monitorizados, mas tudo deu em nada, voltamos a levar porrada todos os dias! Existem maneiras de dar a conhecer vossa história! Não vale a pena, disseram-me. Temos de aguardar pela nossa maioridade para sairmos deste cativeiro, afirmou Tiago cabisbaixo. O que os gémeos ainda não sabiam era que eu além de ter uns pais fabulosos também poderia os ajudar, e foi isso que fiz mal tive oportunidade. Tens a certeza filho, perguntou-me meu pai quando lhe narrei a história dos gémeos. Meu pai prometeu-me que investigaria sobre o assunto. Ele não me falhou! Bastou-lhe uma semana para ficar a par da história dos irmãos e do carácter dos tios das duas crianças. Contaram-lhe na vila que tanto ele como ela eram pessoas muito fugidias e um quanto ao tanto rudes. Disseram-lhe também que já haviam tido problemas com a segurança social mas por uma razão ou outra nunca lhes tiraram os gémeos. Ora, meu pai interessou-se pelo caso e com isso teve graves problemas. Visitou o dito cujo com o propósito de saber por que razão tratava mal as crianças e porque os batia, dizendo-lhes que eu já tinha presenciado. Fiquei veramente transtornado quando soube que meu querido pai tinha sido violentamente agredido e ter ido parar ao hospital depois de o brutamontes lhe ter dado um enxerto de porrada. Mais uma vez e depois de meu pai ter feito queixa foram visitados pela segurança social e pelos técnicos do instituto que supostamente deveriam apoiar as crianças nesses casos, dando tudo em água novamente. Os gémeos aparentavam estarem felizes, estavam bem alimentados, etc., etc. Como a coisa não ia com palavras, como a situação dos irmãos não era de fácil resolução, meu pai verdadeiramente compassivo com as crianças não se deu por vencido e tratou da coisa de maneira diferente. Estávamos na era da tecnologia, então temos de nos servir dela, disse-nos meu pai ao jantar certo dia. Minha mãe mais terra-a-terra disse-lhe que desistisse, e que não era nada com ele, deixasse o assunto com as alteridades. Fiquei sabendo de qual herdei a teimosia! Foi preciso muitas semanas até meu pai munido duma máquina de filmar conseguir as imagens que descreviam a vida horrenda dos dois irmãos. Como pressentindo que alguém os espiava os tios dos gémeos deixaram de os bater por algum tempo. Mas para quem é mau, de veras desumano, mais tarde ou mais cedo volta ao mesmo, ou seja, o desprezo pelos sentimentos alheios! Para minha alegria, depois de ter passado a pasta a meu pai sobre o assunto gémeos, recolheu por fim algumas imagens particularmente esclarecedoras. Podia-se ver Tiago a levar com o cinto até ficar de rastos. Noutras Flor era esbofeteada e arrastada pelo cabelo enquanto era insultada. Todas as imagens foram visualizadas nas várias redes sociais. Tão depressa foram postas como de súbito gerou indignação. Não tardou que aparecessem os primeiros jornalistas. Atrás deles muitos mais, e por fim organizaram-se rumarias até a casa dos gémeos pedindo sua libertação. Meu pai foi ameaçado em frente as objetivas das máquinas fotográficas e perante uma verdadeira multidão. Encabeçando o movimento, meu querido pai falou para tudo o que era televisão, rádios, jornais. Só após uma semana de luta defronto a casa dos irmãos que entretanto não colocavam o nariz de fora, apareceram os primeiros técnicos da segurança social. O Diretor do departamento do estado que tutelava a dita instituição foi chamado ao primeiro-ministro. Num mês e depois duma generalizada onda solidária, os irmãos foram retirados aos tios! Um dia muito feliz para mim.

 

Hoje sou homem feito e já casado. Sou pai de duas crianças, duas meninas gémeas. Ambas com o sorriso lindo da minha esposa Flor e com o olhar curioso do pai!

 

 

 

Fim.

 

 

 

Pragassa.

 

 

 

Conto da esperança

 

 

Conto da esperança.

 

 

Renato era motorista a 25 anos sempre na mesma empresa de transportes. Quase a chegar aos 50 podia-se dizer que era um homem realizado embora nunca se quisesse casar e muito menos ter filhos. Corria a europa de lés-a-lés no seu enorme camião. Conhecia todas as capitais, todas as pontes, autoestradas, e falava um pouco de inglês e francês, fundamental para se fazer entender. Era filho único. Seu pai havia falecido a poucos meses, um verdadeiro abalo em sua vida pois adorava o velhote., Entretanto sua mãe que havia contraído uma demência teve de ser internada no lar para seu desgosto, não era bem isso que desejava, contudo sua vida não lhe permitia cuidar dela como era sua real vontade. Como dizia o povo quando não há remédio, remediado está! Renato apesar das contrariedades não se sentia infeliz. Estava consciente que era o normal percurso da vida. Uns morrem duma maneira, outros doutra. Mas não obstante sua grande obstinação, galhardia, havia dias que se sentia cansado, desanimado. Eram poucos é certo, mas haviam dias tristes. Nessa altura refugiava-se nas suas memórias e recordava-se do quão bom fora sua infância junto de seus pais e seus amigos da velha aldeia donde era natural. Lembrava-se dos campos verdes e os pastores conduzindo seus rebanhos ladeados por seus cães. Recordava-se do rio quase selvagem que descia a encosta e onde a vez ia-se banhar com os outros rapazes. Eram poucos esses dias, eram muito escaços, mas existiam. Tirando esse tempo retrospectivo onde mergulhava profundo no passado, os restantes dias eram como quase todos, alegres, divertidos, e muitas vezes amorosos. Sim, Renato era um verdadeiro salta-pocinhas. Namorava por vezes com mais do que uma rapariga ao mesmo tempo. Homem robusto, bem-parecido, musculado, era um chamariz para uma grande parte das moças tanto portuguesas como estrangeiras. Não era homem religioso. Não acreditava em Deus muito menos nos padres, homens que na sua maioria vivem frustrados por ocultar e reprimir as vontades mais básicas dum homem, ou seja, amar mulheres! Mas cada qual sabe de si, como gostava de falar, um dilema que só a eles competia resolver. Faltava um par de horas para Renato entrar de férias, altura do ano que fazia questão de visitar seus amigos de infância e que ainda permaneciam na aldeia. Cruzou a fronteira e entrou em solo português, seu coração batia forte e um sorriso assomou aos seus lábios. Então gritou; Férias! Férias! No preciso momento que rejubilava de satisfação, em contramão apareceu-lhe pela frente outro carro pesado completamente desgovernado. Renato não teve tempo de travar nem mesmo se desviar do desgovernado veículo que embateu violentamente no seu. A escuridão foi imediata. A rapidez com que tudo aconteceu nem deu para sentir qualquer tipo de dor, Renato entrou no abismo total.

 

Um mês e meio após o trágico acidente, seus olhos abriram-se novamente e a primeira imagem que viu gostou. Olhando-o estava uma moça tão linda, tão linda que se ele acreditasse no paraíso diria estar a ser observado por um anjo! Seu olhar percorreu o quarto e de repente lembrou-se do acidente. Como ficou o outro condutor, foram suas primeiras palavras. Sinto-me pesado, não me consigo mexer, as seguintes. Tenha calma, disse-lhe a bonita enfermeira. Eu chamo-me Catarina e sou enfermeira há algum tempo aqui no centro. No centro? Não é um hospital? Sim, uma espécie de hospital mas só que muito específico, respondeu-lhe Catarina. A quanto tempo estou nesta cama? Nesta a dois dias, mas esteve no hospital 38 dias em coma. O quê? Mais do que um mês? Mas graças a Deus regressou da escuridão, afirmou a enfermeira. Porque não sinto minhas pernas? Porque só sinto os braços? Catarina olhou-o com complacência e respondeu-lhe; O senhor doutor já vem cá explicar tudo tá-bem? Mas explicar o quê? Eu volto com ele, não se preocupe, disse-lhe saindo com ligeireza. Passados alguns minutos Renato recebeu da boca do médico que sua coluna se fraturara com o embate e por isso ele estava paraplégico. Não vou poder mais andar? Não vou mais poder conduzir? Perguntas que o médico lhe respondeu com um acenar de cabeça. As vezes acontecem milagres, declarou a bonita Catarina. Raio que parta os milagres! Milagres são só na cabeça dos maluquinhos e das beatas! Eu quero é andar de novo! A revolta de Renato não lhe dava para ouvir mais nada. Teve de ser sedado quase a força pois a raiva que sentia, a frustração, deu-lhe para barafustar com tudo e todos. Entrou como previsto numa profunda depressão, e os dias que se sucederam não foram nada fáceis como era natural nestes casos. Ora, Renato estava num centro de recuperação de deficientes motores com mais duma centena de utentes. Uns eram tetraplégicos, e havia muitos que como ele podiam movimentar o tronco. O homem de bem com avida, o namoradeiro, o profissional competente, tudo isso nos meses que se seguiram foi recordação constante e motivo de muita lágrima vertida a socapa dos restantes. Não lhe estava a ser nada fácil se resignar com sua sina, divergindo da maioria. Um dia encontrarás teu caminho, disse-lhe um dia Catarina. Deus as vezes acha que somos mais úteis duma maneira do que doutra, acrescentou. Esse vosso Deus prefere que fiquemos sem andar, contrapôs Renato. Não podemos discutir os desígnios do senhor. Eu tenho a certeza que um dia ele te tocará no coração e teus olhos verão as coisas de maneira diferente, afirmou a bonita enfermeira. Renato semana-a-semana foi-se entrosando com os restantes e pouco-a-pouco foi ouvindo as várias histórias de vida dos que como ele lá estavam. Passados dois anos e já preparado para a vida numa cadeira-de-rodas, Renato finalmente dormiu no seu apartamento. Durante sua estadia no centro tinha recebido a fatal notícia que já não tinha pais, sua mãe tinha sucumbido a maldita demência. Depois de receber a indemnização do seguro, perguntava-se muitas vezes por dia o que fazer agora com aquele dinheiro, e em que investiria! No tempo que passou no centro ele e Catarina tornaram-se muito amigos. Catarina era muito religiosa e sempre que podia falava-lhe da palavra de Deus. Renato por outro lado não perdera o jeito para seduzir e mês após mês conquistou o coração da enfermeira ao ponto de lhe roubar um beijo, atitude que ela criticou na hora, mas só da boca para fora. O que ele constatou era que não parava de pensar nos seus olhos, naquela boca sensual, naqueles seios verdadeiramente apetitosos. Estava a dar em maluco! Renato pouco saía de casa. Comprou um computador para se distrair mas logo deixou a um canto. Não havia dia que não telefonasse para Catarina, aquilo não era muito normal nele. Então houve um dia que ela surpreendentemente apareceu-lhe a porta com o convite; Quero que venhas comigo a um lugar, disse-lhe. Eu contigo vou para todo o lado, respondeu-lhe ele. Ainda bem, sorriu-lhe Catarina. Quando Renato constatou que ela o levava para sua igreja ainda tentou inventar uma desculpa só para não entrar, mas como não a queria magoar acabou por entrar. Mal seus olhos vislumbraram no púlpito um homem vestido com um fato cinzento e de bíblia na mão, o silêncio que o rodeava, aquela paz interior seu coração amargou de tal forma que as lágrimas assomaram abundantemente. Catarina olhava-o de lágrimas nos olhos mas sorrindo! Fecha os olho querido e fala com Deus, disse-lhe limpando-lhe algumas lágrimas. Então o órgão começou a tocar e numa só voz a multidão que lá estava cantou a todos os pulmões. Glória, glória aleluia, santo santo, rei dos reis. Renato baixou a cabeça e falou com Deus; Esta paz que sinto, este bem-estar interior, esta repentina alegria, tudo isto é tu senhor que me ofereces? Enquanto ele orava o pastor dizia; Entregue sua vida a cristo pois ele te dirá o que fazer. Venha cá a frente e deixe-se ser tocado pela gloriosa mão do senhor Jesus. Para Deus não existe impossíveis, ele tudo pode! Catarina observou com muita felicidade Renato deslocando-se em direção ao pastor. Uma vez lá chegado o pastor colocou-lhe a mão sobre a cabeça e perguntou-lhe; Como te chamas irmão? Sou Renato pastor, respondeu-lhe ainda emocionado. Acreditas e queres que Jesus te guie na vida, que te console nos momentos de maiores angústias? Sim quero aceitar Jesus como meu único salvador, pastor. Então Renato é no santo nome de Deus e de seu amado filho e pelo divino espírito santo e só através dele que te digo; estás abençoado meu querido filho.

 

Desde que se converteu Renato finalmente a vida começou a ter sentido apesar de ser paraplégico. Foi a vontade de Deus, e é com Deus que eu vou andar. O computador deixado a certa altura de lado, começou a ser usado com um propósito bem definido, ajudar os milhões pelo mundo fora que de repente veem-se entregues a uma cadeira de rodas sem apelo nem agrado. Foi com alguma naturalidade que pediu a mão de Catarina em casamento, mas seus receios que ela recusasse por ele estar preso a uma cadeira foram de imediato dissipados pelo lindo sim de sua boca. O motorista machão, o homem que achava que as mulheres eram só para dar umas voltas, aquele homem que só pensava em trabalho, morrera na noite que ele entregou sua vida a cristo. Formou uma associação de tendência cristã com o intuito de interceder pelos direitos dos deficientes, fossem eles qual fossem, e transformou-se em pouco tempo num homem reconhecido em todo o país por uma frase que não deixava ninguém indiferente; Se caminhares só não precisas de caixão,

 

Se fores acompanhado é porque levas Jesus no coração!

 

 

 

Fim.

 

Roberto Marcos.