Por detrás da montanha
Meu caro amigo, os exames infelizmente demonstram que o que desconfiávamos deixou de ser uma mera suspeita para ser uma dura realidade. Mas senhor doutor não existe forma de cortar o mal pela raiz? Falo por exemplo duma operação, um tratamento , seja lá o que for! Não meu caro Joaquim, no local onde se situa se formos a mexer só vai complicar as coisas e os danos colaterais podem o colocar a vegetar pelo resto da vida. respondeu-lhe o médico com ar pesaroso. Os tratamentos que lhe passo são medicamentos meramente preventivos, não o curam, contudo podem evitar o crescimento do temor. Informou-o o neurologista.
O sol queimava , estava-se no pino do verão. Quim, andou horas a pé pelas ruas do porto, urgia colocar as peças no sítio, e acostumar-se a ideia que dum momento para o outro podia bater a caçoleta. O médico não lhe havia dado um prazo. Não lhe tinha dito que estava a beira de morrer, mas disse-lhe entrelinhas que era um homem diminuído fisicamente. Que fazer agora, resmungou Quim parando para acender mais um cigarro enquanto esperava pelo autocarro que o levaria de volta ao seu apartamento. A sua espera estavam dois gatos e meia dúzia de peixes num aquário, sua única família. Vivia só por opção. Vivia solteiro porque entendia que amor poder-se-ia muito bem encontrar e disfrutar na hora que mais se precisasse. Felizmente o mundo estava repleto de raparigas que pensavam como ele, e por esse facto nunca lhe fora difícil aproveitar bem a vida. Não era crente porque não acreditava na bondade humana e havia sido o suposto deus a inventá-la! A religião é para os descrentes em si mesmo, essa era a sua opinião. Quanto a sua família, nem queria ouvir falar . Seus pais não passavam duns desgraçados que lutaram a vida toda para dar o melhor aos seus filhos, deixando literalmente de viver! Não fala com eles desde que aos 17 saiu de casa. Não sabe do seu irmão, nem quer saber se está bem, se os velhos precisam de algo, família só no papel, e já gozam! Foi um dia procurado por eles, com a desculpa que estavam morrendo de saudades, facto que quase o fez se desmanchar de tanto rir. O que eles queriam era dinheiro! Nem um só dia sentiste falta de nós? Nós que te criamos com todo o amor do mundo, que te demos o que podíamos e o que não podíamos só para te ver feliz? Quim respondeu-lhes como sempre respondia a perguntas que segundo ele não passavam de vómitos. Vocês puseram-me no mundo, portanto sustentar-me não passou duma obrigação vossa! Fora daqui gentinha, disse-lhes quando seu pai irado lhe disse que ele um dia saberia o que é amor mas talvez da pior forma. Essa espécie de profecia entrou a cem e saiu a duzentos, nunca mais se lembrou de tal presságio.
Quando compras um carro, perguntou-lhe Mariana. Para que é que preciso comprar se tenho o teu? Mariana além de colega de profissão pois eram ambos advogados, era para ele a pessoa que talvez mais gostasse. Não se metia na sua vida, quando precisava de sexo telefonava antes, enfim, a mulher ideal!A ida a casa da música já estava programada a semanas, no entanto a visita ao seu médico quando começara a ter dores quase insuportáveis, deu na condição que de momento se encontrava. Mariana não o sabia. Não o sabia nem nunca o saberia. Onde andaste estas últimas semanas, garanhão? Senti tua falta, acrescentou Mariana atenta a estrada. Tirei uns dias para mim, respondeu-lhe Quim friamente. Se eu não te conhecesse acreditava! Não acreditasficamos por aqui mesmo. Calma rapaz, disse-lhe ela. Acho-te hoje diferente. Não me digas que estás apaixonado!ah,ah,ah,ah,ah,ah,aha, Riu-se a bonita colega de Quim.Ele pareceu não ouvir o que ela lhe disse. Seus olhos estavam imóveis, sua cabeça quase explodia de tanto doer, só lhe apetecia gritar e gritar de tanta dor! A voz de Mariana confundia-se com sons desconexos que vinham do exterior. Quim, Quim, Quim.Que se passa?De repente tudo ficou escuro e Quim não ouviu mais nada!
Olá<! Quem és tu? Então não te lembras de mim, respondeu-lhe a rapariga de longos cabelos loiros que a segundos sentara-se do seu lado . Olha moça, disse-lhe Quim. Se não te importas eu quero pescar em paz, pode ser? Ah, pescar é bom , rematou ela olhando o rio. Mantém-te caladinha, rematou ele atento a ponta da cana de pesca. Donde és? Bolas, que queres de mim? Donde és, repetiu ela. Eu sou, eu sou, bem, eu sou… Não sabes donde és? Eu acho que moro ali por detrás daquela montanha. Hesitou. E quem é tua família? Quim posou a cana e virou-se para a moça que lhe lembrava alguém. Bolas tu és linda, disse-lhe percorrendo amossa de alto abaixo. Ah, obrigado, replicou a jovem. Eu um dia sabia quem era, mas subitamente tive um acidente e fiquei mesmo por aqui. Agora passo o tempo a pescar mas na realidade ando a procura do caminho de regresso! Mas não moravas por detrás da montanha? Por detrás do que não conhecemos está sempre nossa casa, respondeu-lhe ele baixando os olhos. Estás triste? Queres chorar? As lágrimas são o sofrimento liquidificado! Desculpa, disse-lhe ela. Esqueci-me que os homens não choram. Sinto um aperto aqui mesmo no centro do peito. Uma angústia devastadora, uma aflição pelo corpo todo. Sabes me dizer o que estou a sentir? A moça levantou-se e alisou o longo cabelo. Ela estava vestida com uma saia rosa que lhe dava pelos joelhos e calçava umas sandálias da mesma cor. Primeiro tens de me dizer que cor se veste a alma! O quê? Alarmou-se Quim. Não tens alma? Pergunta-lhe ela. Como sei se tenho alma, replica ele. A moça chega-se perto dele e belisca-o no braço com força. Merda! Isso magoou. Ah, ah,ah,ah,ah,ah. Qual a dor que dói mais, o beliscão, ou a angústia no peito, pergunta-lhe a rapariga saltitando a sua volta. Não passas duma maluca! Pois é… Quando não compreendemos os outros normalmente os chamamos de malucos, não é? Vou-me embora gritou Quim. Para trás da montanha? Conheces o caminho de volta? Não levas peixe para teus pais? Eles podem precisar que os ajudessabias? Quem te disse que eles precisam de algo?Não precisamos todos de alguma coisa? Não dá para falar mais contigo, rematou Quim levantando-se e colocando a cana as costas. Posso caminhar contigo? Não tens família , perguntou-lhe ele. Tem mas não gosto dela! Que foi que eles te fizeram de mal? Puseram-me no mundo e não me deram uma cana de pesca! Agora como vou fazer para me sustentar? Não tens ninguém que te ajude? Tenho uma irmã que me escreve desde trás da montanha, mas não conheço o caminho até lá! És um pouco confusa não és? Olha, estacou a moça de repente. Se calhar ela mora perto da tua casa! Eu não tenho casa, família, nem irmãos! Deixa-me caminhar sozinho! Uau, estás zangado? Pergunta-lhe a moça olhando nos olhos dele. Então quem te deu a cana de pesca? O diabo! Gritou-lhe Quim acelerando o passo. Sabes que ele leva as almas para o inferno? Tudo bem, murmurou Quim. Não tens medo? Não. Estou com fome, diz-lhe ela. Que tal tu pescares um peixe para mim? Não capturo nada, confessou. Para mim és o homem mais valente do mundo! Eu acho que consegues se fizeres as coisas com amor, disse-lhe ela abraçando-se a ele. Vou tentar. Estavam deliciosos os peixes que assaste para mim exclamou a moça depois da pescaria que fizeram junto dum enorme lago. Obrigado. Agora já podemos casar?Quê! Casar porquê? Porque és um homem bom, deste-me comida e tudo. Não gostas de mim? Sim, és um pouco aluada mais sim, gosto. Amas-me? Eu disse gostar! Não é a mesma coisa? Bolas rapariga, dou-te um dedo queres a mão inteira! Pois não devemos dar só metade! Não achas golfinho? Como sabes esse nome? Golfinho? Golfinho é um mamífero. Esse era o nome que meus pais me chamavam quando era pequenino. Que lindo. Eles deviam amar-te muito. Talvez, resmungou Quim curvando a cabeça.
Acorda, acorda! Que foi perguntou Quim. Hoje vamos encontrar nossas famílias! Viva! Viva! Como sabes? Já não vejo a montanha a nossa frente, portanto quer dizer que já a ultrapassamos! Como pode ser possível? Estivemos a dormir! Olha, disse-lhe a moça apontando para o horizonte. Eu não passei por montanha nenhuma! Vês ali aquela casa? Quim constatou que era a casa da sua meninice. Subitamente um cheirinho a pão acabado de sair do forno veio ao encontro dele. Quim reparou que a porta de entrada havia um casal de velhotes sentados a uma pequena mesa e sobre ela duas fotos emolduradas. Aquilo sou eu e meu irmão mais novo! Pelos olhos dos edososescorriam grossas lágrimas de tristeza. Quim viu-se de repente sozinho perante aqueles velhos. Nosso querido filho, murmurou a velhota . Nosso golfinho que nos odeia tanto, acrescentou. Vamos morrer sem um abraço dele, afirmou o homem idoso. Pai, mãe, desculpem-me! Pai! Mãe! Ouvem-me? A medida que Quim gritava seus nomes o casal cada vez mais se distanciava. Não, não vão embora! Perdoem-me! Perdoem-me!
Está tudo bem, disse-lhe a enfermeira limpando seu rosto. Mas tu… Teus a moça que nome largava! Ah sou? Então quer se dizer que gostava de ti, é isso? Pois é, chata mas inteligente, revelou Quim esboçando um ligeiro sorriso.
Para onde foram meus pais? Perguntou Quim tentando sentar-se na cama. Deite-se por favor ainda está muito fraco, ordenou-lhe a charmosa enfermeira.
Espere aí quietinho que tenho visitas para si. Tente não se emocionar muito disse-lhe saindo e regressando um minuto depois acompanhada por seus pais, seu irmão e Mariana . Filho que bom que encontraste o caminho de volta disse-lhe sua velha mãe. Então mano disse-lhe seu irmão. Eu queria pedir perdão a todos por tudo o que vos fiz passar, disse-lhes Quim de lágrimas nos olhos. Desculpa por os anos todos de afastamento, eu fui um mau filho! Mariana chegou-se junto da cabeceira e apertando sua mão comentou; Por vezes temos de ultrapassar a montanha para encontrar nossa casa!
Bem-vindo de volta meu amor.
Fim.
Roberto Marcos.