As pedras que se atiram
Autor: Roberto C R Marcos.
I.
De mãos sobre o parapeito, Maria contemplava a paisagem a partirda janela. A casa situava-se no alto de uma colina.À volta havia pastos a perder de vista enas encostas, manchas de criptomérias, entre as quais uma ribeira descia rumo ao mar. Um velho moinho inactivo assomava num dos topos e, por debaixo,manchas pretas e brancas do gado holandês eram bem visíveis. Ao longe, subindo e descendo as ondas, uma pequena embarcação rumava ao porto. Os bandos de canáriosda terra esvoaçavam de campo em campo e, na fronteira, algumas gaivotas.Pequenas casas brancas salpicavam o vestido verde e, serpenteando os pastos, um caminho de terra. Ouviam-secoaxar as rãs no riacho, o mugir das vacas era o som corriqueiro. A natureza despertava magnífica.Os primeiros raios de sol evaporavam os nocturnos orvalhos, o céu enchia-se de tufos brancos.
Depois de fechar a janela,ainda de camisa-de-dormir,sentou-se na cama.Um pouco mais tarde, já vestida de negro,colocou-se junto da camilha eesperou que o telefone tocasse. Seu semblante apresentava marcas de noites maldormidas,seus lindos e enormes olhos azuis,da cor do bravio mar açoriano, lacrimejavam de melancolia. Seu cabelo era negro como as noites de lua nova, caindo em cachos sobre seus delicados ombros. Seu rosto, de linhas melódicas ,mostrava-se um pouco triste. Os seus delicados lábios estavam cerrados e uma pequena mas espessa lágrima, quase imperceptível,descia em direcção ao seu ínfimo queixo. Tudo lhe parecia melancólico.Até as tão apreciadas aguarelas que retractavam pequenos detalhes da natureza pareciam-lhe banais, como o candeeiro em forma de rosa que pendia do teto.
O telefone começou a tocar. Como por magia, seu rosto desanuviou-se.
- Sim, estou – atendeu.
Do outro lado da linha,uma voz cumprimentava-a:
- Como estás hoje amor?
Maria torceu ligeiramente o seu minúsculo nariz.
- Estou como todos os dias.Isto aqui é bonito, sim, contudo faz-me sentir ainda mais só – declarou.
- Eu sei como te sentes – disse-lhe o homem.
– Não, não sabes. Se soubesses, vinhas mais vezes.
– Eo meu trabalho? Como faço para justificar a minha ausência?
– Eu, e maiseu, e outra vez eu! Não pensas em mais ninguém a não ser em ti?
– Que injustiça! Como podes ousar pensar assim, se estou a ligar-te?
Maria deixou escapar algumas lágrimas.
– Peço desculpa amor, mas, mas…
- Não chores, por favor – suplicou o homem.O nosso calvário, se Deus quiser, vai terminar dentro de pouco tempo. Não está fácil, nem nunca o foi, mas espero que compreendas.
– Claro que sim – respondeu-lhe Maria limpando os olhos.Mas é que sinto tantas saudades do meu filho. Não imaginas como isso me faz sofrer.
– As tuas saudades, as tuas tristes palavras, são como punhais a cravar-se-me no peito. Culpo-me todos os dias pelo acontecido.
– Podia ser melhor, se naquele dia…
- Naquele dia, é verdade – concordou o homem.Mas ouve bem Maria. Nosso amor resistiu 15 anos, mais um pouco não vai fazer mal.
– Estou farta de ouvir vacas, o coaxar das rãs, os canários e tudo! Eu queria ver pessoas, falar com elas, dizer bom dia,“então como está hoje?”, simplesmente ser livre. Por incrível que pareça, a deslumbrante paisagem sufoca-me!
– Está próxima a nossa libertação! Vou dar-te uma notícia relativamente à qual não sei bem se vais concordar,mas eu achei bem. Luís saiu da Casa do Gaiato.
Maria consertou-se na cadeira.
– O que disseste?
– É verdade amor, foi viver com Manuel.
– Como foste permitir uma coisa dessas? Sabes muito bem que Manuel não é bom da cabeça.Ele é simplesmente um irresponsável!
– Eu sei, mas Luís pode parecer rapaz um quanto ao tanto fechado, introvertido mas é muito ajuizado.
– Aí meu Deus, coitado do meu filho – exclamou Maria, colocando um dos cotovelos sobre a camilha.
– Eu devia desligar esta porcaria já! Comoousaste permitir tal coisa? Onde estariaeu com a cabeça para aceitar esta situação, meu Deus.
– Não fiques assim, por favor.Acho que foi o melhor para ele.Como sabes, eu estou atado de mãos e pés.Sabes que tenho uma posição para manter,pelo menos até me reformar.
– Tudo bem – rematou Maria furiosa. Vou desligar.
– Espera, preciso…
Maria não quis ouvir mais. Inclinou-se sobre a pequena camilha e chorou.
II.
O vento era calmo, o mar encrespado. Das grutas escavadas nas rochas saíam bandos de pombos bravos e as aves migratórias piavam sobre nós. Nos côncavos das rochas, ninhos de cagarras viam-se à vista desarmada. Na base das pedras cobertas de musgo, apanhadores de lapas aproveitavam a maré baixa. Sob o espelho de água,borbulhavam pequenos cardumes de chicharros e, por cima, aves marinhaspairavam a espera do mergulho fatal. Tudo isto, debaixo de um arhúmido, de um calor sufocante. Para me deixar mais furioso do que já andava, Manuelolhou-me sobre o ombro e exclamou,de ar carrancudo:
- Não tens mais força nos braços,rapaz?
Olhei-o bem nos seus olhos mortiços e torci o nariz.
Recebide imediato a retribuição:
- Merda para a minha sina! - exclamou.
Vi-o levar a garrafa de vinho à boca pela centésima vez, concertar obarrete de lã castanha, levantar a nádega e soltar ruidosamente um gás, antes de pegar de novo nos remos da ré.
- Vamos a isso- rematou.
O sol mergulhava por detrás do Morro de Castelo Branco quando derepente se levantou uma brisa fresca, que foi como um bálsamo, pelo menos para mim. O local onde pescamos durante o dia, pouco a pouco, remada a remada, ficava mais distante.
A nossa embarcação não passava de um bote de fundo em v, divergindo das dos outros pescadores. Na sua maioria, eram detentores de embarcações commotores, fundamentais para quem se queria aventurar ao largo da ilha.Mas nem sempre assim foi. Houve tempos em que Manuel também fora proprietário de uma linda canoa mas,conforme o ouvi um dia dizer, não dava para um homem só.
Nesta triste realidade vivia eu, desde que aceitei viver com o homem mais asqueroso do mundo. Andava desesperado por vê-lo pelas costas. Encolerizava-me pelo tempo que demorei até me aperceber que, junto dele, mais tarde ou mais cedo me tornaria igual. Como esse não era o desiderato desejado, não passaria de hoje.
Subitamente, um cardume de golfinhos de todos os tamanhos, resolveu animar o panorama. Então pensei:
- Do mal, o menos!
No entanto, tudo era pouco ao pé do que sentia ao lado de Manuel. Respirei fundo, tentei concentrar-me somente nos remos e no tempo que faltava para atingirmos o nosso destino.
III.
O verão ia a meio. Nos Açores, a apetecida estação alegrava sobretudo os que visitavamestas ilhas perdidas no meio do Oceano Atlântico. Dotada de inúmeras atracções, aIlha do Faial é uma ilha de pequenos presentes paisagísticos, marcada por uma crónica ligada ao oceano.
Como componentes mais atraentes e simbólicos da sua paisagem natural existe a caldeira, o Vulcão dos Capelinhos, oVaradouro, a Fajã, o Morro CasteloBranco e o conjunto Porto Pim,Monte Queimado e Monte da Guia.
Para além da vida agrícola da imigração, marcaram profundamente o Faial as baleeiras, os hidroaviões, os cabos submarinos e os veleiros transatlânticos, sendo hoje aMarina da Horta o rosto mais claro das razões que motivaram esta identidade.
Nas nove ilhas, era época de fartura, era hora de amealhar. No entanto, se nesta altura era assim que generalizadamente se procedia, alguns, como Manuel, destoavam da maioria. Era vê-los de nariz ao alto, quais cães a cheirar o tempo. Quando a estrela da manhã despontava entre o Pico e S. Jorge, trazendo o branco manto do dia, os homens verdadeiramente do mar, enchiam-se de fé e rumavam em direcção as suas embarcações. Pequenas, grandes, médias, todas elas saíam porto a fora, salpicando o oceano de inúmeros nomes e cores.
Era também no verão que os atuneiros davam início à temporada de pesca. Apetrechados com modernas traineiras de fibra, dezenas deles perscrutavam o oceano em volta do arquipélago açoriano e não só, àprocura dos grandes cardumes que no verão cruzam os mares.
Nos Açores, a pesca do atum começa por volta de Maio, terminando em Outubro. São mais ou menos três meses de euforia.Os portos enchem-se de uma azáfama só vista na época do atum.
Atradicional arte de salto e vara não era exclusiva dos Açores, mas uma técnica de pesca que também se usava em todas as ilhas da Micronésia. A frota açoriana, actualmente com cerca de vinte atuneiros de vinte e oito metros, em média e com tripulações que variam entre 16 e 18 pessoas, não se restringe as águas açorianas, mas também pescam nas águas territoriais do arquipélago madeirense.
Houve tempos em que os atuneiros eram às centenas. Construídos emmadeira, quase sempre em estaleiros improvisados, as frágeis embarcações povoaram as ilhas por dezenas de anos.
A oeste dePortugalContinental, de sueste para noroeste, oArquipélago dosAçores é formado por 9 ilhas de origem vulcânica, organizadas Em 3 grupos:o grupo oriental, com as ilhas de S. Miguel e de Santa Maria; o grupo central, formado pelas ilhas Terceira, de S. Jorge, Graciosa, Pico e Faiale, por fim,o grupo ocidental,que inclui as ilhas das Flores e do Corvo,sendo esta última a mais pequena das 9.
A descoberta das ilhas dos açores está envoltaem muitas dúvidas e poucas certezas, pois são praticamente ausentes documentos régios quea comprovem ou assinalem as circunstâncias e as datasde cada descoberta.Mesmo a cartografia existente,pela sua multiplicidade,apenas contribui para aumentar a confusão sobre este acontecimento.
Segundo Gaspar Frutuoso, cronista açoriano do séculoXVI,os Açores foram descobertos por Gonçalo Velho Cabral que,a mando do Infante D. Henrique,teria chegado à ilha de Santa Maria em 1432e à ilha de S. Miguel no ano seguinte.
Durante o século XIX, alguns estudiosos defenderam que este arquipélago já seriaconhecido,tendo os navegadores do Infante D. Henrique apenas reencontrado estas ilhas.Estas conclusões baseavam-se na interpretação de alguns mapas do século XIV, onde estão representadas diversas ilhas a ocidente de Portugal,as quais só podiam ser os açores.
Todavia, fosse lá como fosse a descobertado arquipélago, o povo açoriano vivia alheio a essa problemática.
Entre hortênsias de várias cores e o perfumado cheiro aos limos das rochas do calhau, debaixo do olhar sinistro dos milhafres, quais atentos sentinelas eao som do piar das cagarras no verão, foi aquique nasci!
IV.
E com um par de remos nas mãos, há muito desejoso de me libertar do mundo ignóbil de Manuel,lá andava eu. Se os remorsos matassem… Se a estúpida vontade de sair da Casa do Gaiato não se sobrepusesse à clarividência,tudo seria provavelmente muito mais calmo. nãoteria tidoa estúpida necessidade de sofrer o que vinha sofrendo, desde o maldito dia em que aceitei a armadilhada proposta, facto de que me culpo todos os dias, horas e minutos. Com beneplácito do Senhor Padre, que muito estimava,aceitei e arrependi-me quase na hora, mal dei de caras com Manuel!
- Mas que raio - perguntei-me -,donde saiu isto?
Não demorou muito para me aperceber que Manuel era estúpido, sujo de língua e de corpomas, acima de tudo, bruto como as pedras! Foi calhar-me na rifa o homem mais vil, indecorosoe reles, só qualificável com recurso a um interminável rol de outros adjectivos sinónimos. Levei vinte anos a adquirir coragem para,de uma vez por todas,sair da Casa do Gaiato e, quando a arranjei, fui logo encontrar Manuel! Ora, não podia ter-mecalhadoSer Humano mais miserável. Teria sido Melhor partir as duas pernas!Todavia, como a palavra está acima de tudo, concordei.Então, para mal dos meus pecados, lá fui com Manuel. Logo no primeiro dia e mal chegámos a sua casa, ele olhou-me dizendo:
- Regra número um, quem manda aqui sou eu.Tu, só obedeces. Número dois, não fazes nada sem falar primeiro comigo. Por fim e a mais importante, não falas com ninguém sem a minha ordem.
Lembro-me de olhar para a sua cara nojenta e de pensar para comigo:
- Meu Deus, onde fui meter-me! - Por mim, tudo bem - lembro-me de lhe ter dito.
– Ainda bem que percebeste – replicou com rispidez.
Contudo, para quem só pretendia dar uma sacudidela na vida, até me acomodei demasiado bem àsituação.
Segundo o Padre,eu havia entrado na Casa do Gaiatoapenas com cinco anos. Disse-me ainda:
- Encontrei-te, meu filho, embrulhado num cobertor e mijadoaté ao pescoço!
Como não tinha razões para duvidar da sua palavra, tomei como verídica a sua história.
O Padre João tinha acabado de substituir outro padre, homem Já muito idoso para a árdua tarefa e, como tal,fui o seu primeiro órfão.Como a nossa relação sempre se pautou pelo mútuo respeito, sempre tentei acatar o que me ordenava.Contudo, o meu percurso na Casa teve atribulações, altos e baixos, como sucedia com quase todos. Mas enquanto os outros, pouco a pouco,se foram entrosando na vida da casa, eu não. Mantive-me quase sempre arredado, pouco participativo, desapegado. Vivia bem com essa situação, um tanto ou quanto bichinho do mato.O facto de ficar afastado não me afligia, até agradecia,poishavia tarefasa efectuar, afazeres que eram distribuídos por quase todos.Depois dos estudos, que entendi interromperabruptamente, fiquei encarregado de ser o único tratador dos animais da casa. Era um trabalho que fazia com gosto. A casa era proprietária de uma dezena de vacas leiteiras, meia dúzia de porcos– sendo um de criação -, uma centena de frangos, cinco cães de raça açoriana - ou seja, cães de fila - e um pombal construído por mim.
A casa não era muito grande,ficava situada junto àFreguesia dos Flamengos e foi construída na base de um monte. Os meus companheiros alegravam-se por terem sido contemplados coma sorte de terem uma cama e comida! Eu deveria pensar o mesmo, pois seria o mais razoável. Todavia, não o sentia. Seria ingratidão minha? Arrogânciaexacerbada? Fosse o que fosse, eu tinha de ser honesto comigo próprio e o que sentia era uma permanente tristeza. Podia ser defeito de fabrico, podia ser depressão, podia ser tanta coisa...
Os outros rapazes viviam em comunidade com a alegria estampada nos seus rostos, facto que deveras me irritava. Ora, o certo era que andavam felizes.Para quem, como eu, foi literalmente deitado fora, que sorte!Estariam eles certos e eu errado?Não sei. Todavia,a sua alegria era bem evidenteeas respostas para o meu dilema tardavam em surgir.
Alguns falavam dos seus progenitores com um patente ódio. Eu compreendia-os em certa medida. No que concerne àmágoa, era para mim compreensível. Não entendia era o ódio que sentiam. Não seriam eles capazes de perdoar? Saberiam eles quais as verdadeiras razões que levaramos seus pais a colocá-losnaquela casa? Alguns ainda sabiam quem eram os seus progenitores, já quanto a mim, bem… Mas como dizia o filósofo Heraclito, “nada existe de permanente a não ser a mudança”. Eu esperaria pelo milagre de os vir a conhecer.
Nessa indefinição vivi praticamente 15 anos, embora tivesse tido alguns momentos bons,principalmente na biblioteca, local que, mal comecei a ler as primeiras palavras, elegi como lugar sagrado. Sempre que os meus deveres me possibilitavam, se queriam ver o Luís Filipe, era na biblioteca. Lá, com os livros porcompanhia, deixava-me ir nas asas dos pensamentos, sonhando e imaginando-me protagonista de um romance de Camilo Castelo Branco oude uma aventura de JúlioVerme. Naquelas horas, tudo o que me rodeava era insignificante,quando comparado com o prazer que me dava a leitura. Por vezes, tinha de ser literalmente acordado:
– Luís! Está na hora do jantar!
– Tudobem, já estou a caminho – respondia sempre Ao moço que era destacado para a difícil tarefa de me chamar.
Os anos foram-se passando. Os outros moços, ou seja, os mais velhos e com idade de se governarem sozinhos, um a um, foram saindo. Conseguiram trabalho, namoraram e, quando deixavam a casa iam lavados em lágrimas. Eu achava aquela cena patética. No entanto, respeitava-os, pois não poderia ser de outra forma. O que não percebia era o porquê de tanta tristeza. Não iam juntar-se``a mulher amada? Não iam eles ser cidadãos de pleno direito? O que diziam na despedida era tão caricato...
– Esta casa deu-me tudo, estou profundamente agradecido a pai Américo.
Eu juro que tentava entendê-los. Fazia até um enorme esforço. Mas não o conseguia.
Segundo o Padre João, a obra do fundador atingia o seu auge no dia em que cada um dos rapazes criava asas e voava.Ora, era tudo muito agradável, lágrimas para aqui, abraços sentidos para ali,contudo, meu pensamento era dissemelhante. Se me perguntassemse estava agradecido àCasa do Gaiato, eu responderia:
- Estou.
Se me interrogassem sobre as vantagens de ter sido acolhido, diria que sim. Mas se me colocassem perante outra situação como, por exemplo, viver no seio de uma família, mesmo que desprezível, responderia que preferia minha família, por mais ignóbil que fosse. Claro que era eu oúnico a ter esse pensamento.Os demais nem imaginavam meus reais desejos. No entanto, mesmo que secretamente,desejava-lhes que tivessem sorte nas suas vidas. Quanto à minha, era uma vida tumultuosa.Não conseguia viver em paz com aquilo que tinha. E o que tinha eu? Tinha uma enorme necessidade de ficar só. Uma devastadora vontade de sair, o que de facto consegui.
No âmbito amoroso, tudo fiava mais fino. Eu era alto, de ombros largos, cabelo longo e negro, rosto de traços rígidos e dotado de uma saúde de ferro. O meu físico, a certa altura,, foi porto de abrigo de muitos jovens residentes. Na casa, nem tudo era um mar de rosas.
Padre Américo, quando pensou em fazer uma casa só para rapazes, não imaginava que o Ser Humano, por vezes, é mais inconsciente do que qualquer fera do mato. Estas, pelo menos, atacam em defesa própria, quando se vêem ameaçadas. Os homens, não. Somos repugnantes,obcecados por sexo, umas verdadeiras bestas. Houve alturas em que tive de impor-mecom o meu físico. Não admitia que nenhum rapaz fosse coagido à prática da masturbação. Naquele momento, sentia-me o mais vil dos homens, mesmo não sendo eu o agressor. Como é que se podia ter prazer sacrificando o outro? Ora, havia muitos acima de mim, mas ninguém abaixo. Eu não permitia que os mais fracos, introvertidos, fossem obrigados a aliviar seja quem fosse. Por isso, quando ficava a par dessas ignóbeis atitudes, havia sempre alguns minutos de pancadaria. No dia seguinte, lá estava Luís Filipe defronte ao Padre, no seu gabinete. As advertências eram sempre as mesmas:
- Não tens de fazer justiça por tuas próprias mãos – dizia-me.
Mas eu não ficava calado, isso não.
– Então, faz favor de arranjar forma de proteger os mais débeis -retrucava.Enquanto isso não for uma realidade, senhor Padre, com o respeito que lhe tenho, vou ter que o visitar mais vezes – acrescentava.
Padre João dizia-me que tudo seria resolvido mas tudo acabava por ficar como dantes: os mais velhos e porcos oprimindo os mais fracos.
Quanto a amores, eu era aquilo a que se podia chamar umfracassado. Não foi por não me ter apaixonado, isso não. Foram muitas as vezes em que me senti atraído pelo sexo oposto. Quando as via passar na estrada, junto dos campos, meus olhos inevitavelmente fixavam-se nos seus corpos. Eu era de certa forma correspondido. Deparei-me até, em certas ocasiões, com o atrevimento de algumas. A volta da casa, em redor dos campos que lhe pertenciam, haviam habitações e, nestas, muitas raparigas. Era quase inevitável encontrarmo-nos. Contudo, quando por algum motivo parecia tudo bem encaminhado para me relacionar com alguma, logo assomavamos meus complexos, acabando sempre por me distanciar. Conheci mulheres lindas, e pareciam gostar de mim. No entanto, refugiava-me na minha frustração e, cinco contra um, era o que tinha como mais certo. Então, resolvi não tentar mais.O tempo, se quisesse, que mudasse essa minha falha,facto que acabou por acontecer, mas de maneira inesperada.
Ora, a leitura dá-nos conhecimentos, torna-nos pensadores, munidos de muita informação, porém,meramente teórica.Portanto, resta-me ser o que sou, sabendo de antemão que não sougrande coisa. Falo pouco, é verdade mas, falar para quê? Falar de quê e com quem?
V.
Quanto a Manuel? Olhando para o seu rosto avermelhado, tingido pelovinho, com a brutalidade patente em todos os seus gestos, como poderia eu ter a iniciativa de me abrir com ele, nem que fosse um bocadinho? Eu tentei, meu Deus, como tentei ser seu amigo... Mas pese embora a minha vontade, o nojentoera movido por uma estupidez perturbadora. E como Se isso só por si já não fosse o bastante, ainda era porco, malformado, enfim, um bicho.
Ora, não fora eu um rapaz culto, tudo graças à professora que me incutiu o gosto pela leitura e o respeito pelas diferenças, já lhe tinha apertado o pescoço. Houve situações em que tive de respirar fundo mais de três vezes, tal era o sentimento dehumilhação.
Certo dia, quando pensava estar a fazer a coisa mais bemfeita do mundo, ou seja,a limpar a pocilgaem que Manuel vivia, tive um dos meus maiores reveses.E eu que pensava já ter visto de tudo, daparte dele…de facto, não tinha.
O senso comum dizia-me que qualquer pessoa gosta de ter uma casa a cheirar bem, com a loiça lavada, a sanita limpa... mas enganei-me! Manuel não gostou que eu tomasse a iniciativa de por ordem no curral.Sim, aquilo era de facto um autêntico curral! Estava eu ainda de vassoura na mão quando o vientrar, bêbado,é claro. Olhou para mim, torceu a boca e perguntou-me:
- o que é isto?
– Ah, resolvi fazer uma limpeza geral – respondi, esboçando um sorriso, coisa não muito comum em mim.
Qual não foi a minha surpresa, quando ele me disse:
- Olha, meu filho da puta, nesta casa, quem limpa sou eu!
Ainda o olhei e até pensei não ter ouvido bem.
– Como disse?
– Larga já essa merda e sai da minha frente – barafustou.
Passou-me uma nuvem pelos olhos e fui tentado a dar-lhe uma vassourada, mas não o fiz.Então, respondi-lhe:
- Tudo bem, você é que sabe.
Atirei com a vassoura e fechei-me no meu quarto, com os bofes em chama.
– Vai para o caralho, monte de merda - ouvi do lado de fora, estava eu já no quarto.
Coloquei-me defronte ao espelho que estava sobre a cómoda e observei-me profundamente.
– Tu vales mais do que isto – murmurei.
Subitamente,deu-me vontade de chorar. Sentei-me na cama, coloquei as mãos no rosto, e chorei por largos minutos.
No dia seguinte, regressei a rotina habitual e Manuel agiu como se nada tivesse acontecido. Eu vivia ali os meus piores dias. Pensei na casa e senti uma pontinha de saudade. Lá, pelo menos, ninguém me insultava. Embora não fosse um poço de virtudes, era respeitado na minha diferença. Manuel, não. Tratava-me abaixo de cão.Para ele, eu não passava de um desgraçado que não tinha onde cair morto. Reneguei o dia em que aceitei.Condenei-me por ter concordado morar com Manuel,mas era tarde demais. Agora, restava-me remediar as coisas e vinha intimamente pensando em dar-lhe com os pés. Voltar para a Casa do Gaiato não estava em questão. Regressar ao que era, embora me lembrasse com satisfação, não iria. Então,decidi aguardar o melhor momento para aplicar a Manuel o maior pontapé no traseiro que me fosse possível. Seria muito fácil pegá-lo pelos fundilhos. Seria muito prazeroso dar-lhe umas palmadas na cara, contudo procuraria fazer as coisas de modo que ninguém saísse magoado.
Pensando assim, até parecia um namorado a querer dar o fora, como dizem os brasileiros. Mas que fazia eu na comunidade piscatória? Não existia um, um só que me olhasse de maneira normal. Muito pelo contrário,os seus olhares eram de escárnio, de desprezo e de uma certa superioridade. Vejam só, superioridade!Se não fosse grave, até dava para rir. Mas o mais revoltante era constatar que Manuel se juntava a eles sempre que podia e que quem os visse no dia-a-dia, diria estar perante uma comunidade pacífica, um grupo de bons amigos. Nada mais falso! Não havia um só dia em que eu não ouvisse discussões e quase sempre tudo acabava a pancada. O que parecia um ajuntamento de bons rapazes, transformava-se num ápice numa verdadeira batalha campal. Era ver as mulheres a agarrarem-se pelos cabelos, os homens à bofetada e, até as crianças,prodigiosasaprendizes de bestas, guerreavam. No dia seguinte era:
- Bom dia corno!
– Como estás, filho da puta?
– Aquilo ontem é que foi...
– Eh, desculpa qualquer coisinha.
– Por mim, tudo bem.
Como poderia eu viver em paz a assistir a tudo isto?
Mas ainda havia mais. Uma vez por ano, o bairro engalanava-se todo para a procissão,um tributo a uma santa qualquer. Montavam-se as tasquinhas, o palco onde tocaria o conjunto contratado e estendiam-se tapetes no caminho que rodeava o bairro. O povo alegrava-se e vinham gentes da ilha toda. Depois de o andor, seguido de perto pela população devota, ter pisado os coloridos tapetes de farelo de madeira tingida, dava-se inícioà festa, o verdadeiro intuito de tudo isto. Caldo de peixe, lapas frescas e grelhadas, coelho frito e passarinhos, bife de atum, favas escorridas e bom vinho do pico não faltavam. Como sempre, ao início, tudo decorria dentro da normalidade, mas bastava uns copitos a maisetudo se caldeava. No dia da festa, deixei-me ficar por casa mas,às tantas da noite, não podendo ler com a tranquilidade que se exige, curioso, fui espreitar. Manuel, descaía curvado sobre o tampo do tasco com um copo de vinho a frente.Ao seu lado, outro copiava-o. Na pista de baile, situada no campo de terra batida pertencente a escola primária, os casais arrastavam os pés ao som de uma música de Quim Barreiros.
– Ponho o carro, tiro o carro, há hora que eu quiser…- cantava o conjunto de cinco rapazes, sobre o palco.
Havia crianças por todo o recinto e os velhos alongavam-se pelos muros que cercavam a pequena escola. De repente, ouviu-se um grito:
- Ele apalpou-me o cu!
– Ai bandido, – disse um, enquanto sacava da navalha -, deixa que eu corto-lhe os colhões!
Com oconjunto cantando “Aperta, aperta com ela”, havia garrafas pelo ar, homens deitados no chão sangrando, galhetas transviadas, o diabo em cuecas.
- Vem aí a polícia – berrou uma mulher de cabelos desgrenhados.
Num ápice, todos se aquietaram junto dos balcões, nada se havia passado. Os agentes, nobres personagens na ilha e pessoas muito consideradas, foram convidados a beber um copinho de vinho e a comer uma perninha de coelho.
– Pago eu! Venha cá senhor guarda – diziam todos. Ora, pelo menos, vai comer duas perninhas e beber três copinhos de vinho.
Afinal não houve mesmo nada, apenas um pequeno engano.
Permaneci refugiado o tempo suficiente para perceber que aquelas pessoas viviam bem com o que tinham, quem os podia condenar?
Como escreveuo filósofo alemão Immanuel Kant, “a moral propriamente dita, não é a doutrina que nos ensina como sermos felizes mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade“. Mas também dizia e com razão,que “Toda a reforma interior e toda a mudança para melhor dependem exclusivamente da aplicação do nosso próprio esforço”.
Ora, Kant era o filósofo de que mais gostava e, embora concordasse com ele nesse aspecto, tardava em seguir o seu pensamento. Contudo, no futuro, faria das tripas coração para me apetrechar de força suficiente para derrubar os muros que me cercavam. No entanto, precisava ainda de passar por algumas provações. A primeira que persistia em me incomodar, era o facto de Manuel, todas as vezes que se deitava alcoolizado, chamar pelo nome de Maria. Aquilo era para mim estranho, pois não imaginava Manuel com ninguém, por razões óbvias e até deixei de lado tal ideia. Todavia, noite após noite, era ouvi-lo:
- Maria,puta de merda!Porque me fizeste isto? Olha para mim, sou um desgraçado!
Nunca concordei tanto e tão profundamente com ele.No entanto, precisava de saber que tipo de mulher se deitaria ao lado de tão vil pessoa. Olhando rapidamente para o lado, logo caí na realidade. Não eram os outros como ele? Não tinham eles mulheres e filhos?
- Pronto, tábem – acabava sempre por dizer.
Dentro da contingência de viver ao lado de Manuel, haviam momentos prazerosos, longe dele, claro! Eu, tal como imaginosuceder com quase todos, tinha um local secreto, o lugar onde podia reflectir sem ninguém me aborrecer. Esse sítio ficava no alto do Cabeço das Moças.Chamava-se assim, segundo fiquei a saber, em virtude das moças que lá eramencontradas. O que faziam, porque lá iam, tudo era muito especulativo. No entanto, era um local com uma vista transcendental.
Junto do moinho de origem holandesa, a vinte metros do posto meteorológico, escondido pelas faias bravas - arbusto que deu o nome a ilha -, sentado, apreciava todo o esplendor da vista. Pensava na minha vida, como seria o meu futuro. Trazia comigo um livro e, deitando-me sobre as ervas secas, lia envolvido pelo chilrear dos tentilhões, das toutenegras e dos melros pretos. Mais de uma vez adormecia e a minha mente viajava livremente, alheia aos meus conflitos internos. Quando acordava, por vezes já a noite havia caído, regressava revigorado, preparado para enfrentar mais uma vez o rosto maltratado de Manuel. No entanto, sabia que seria por pouco tempo. Por esse facto e pese embora não saber o que me esperaria no futuro, tudo seria melhor do que aturar o imundo pescador. O que mais me custaria era ficar longe do mar, ao qual me acostumei. Contudo, a ilha é uma porção de terra rodeada de mar por todos os lados, conforme vinha escrito nos livros da primária. Fosse em que direcção fosse, lá estaria ele. Portanto, logo refutei a ideia do“nunca mais” e adoptei a do “até breve!”
VI.
Estava próximo o dia dos dias, o do confronto final. No bolso das minhas calças, escrito num papel, estavam registados os dias em que fui ao mar e o valor aproximado do que Manuel me devia. Escrevi a vermelho, não em homenagem ao seu rosto mas pelas lágrimas de sangue que me fez brotar. Não teria contemplações de espécie alguma, seria o mais frio possível. Ele não merecia um pingo de misericórdia da minha parte. Se por acaso a sua estupidez se convertesse em brutalidade, o mais certo era eu, Luís Filipe, mesmo não gostando,impor o meu físico em benefício de mim próprio. Deus o livrasse de tentar agredir-me. Convicto e, por fim, com a ideia bem amadurecida, olhei para ele e perguntei:
- Levantou-se vento?
- Rema e cala-te.Que percebes tu do mar?
Ora, quase a chegar ao porto, Manuel levou a garrafa pela última vez a boca, esvaziando-a.
Já se avistava a Praia de Porto Pim, estávamos a passar a ponta do Monte da Guia, ligado por uma língua estreita de terra ao Monte Queimado, que dava abrigo aos banhistas contra os ventos do quadrante norte. Mal desembocámos na ponta, as águas ficaram logo calmas e o pequeno bote navegava com ligeireza, com a força que eu empregava nos remos. Entretanto, já a muito que Manuel deixara de remar.Era clara a sua dificuldade. Todavia, mesmo debilitado, quase deitando os bofes pela boca, a incrustada estupidez mantinha-se viçosa e para durar.
Parámos a nossa embarcação sem sobressaltos e, depois de descarregarmos o pescado - vários pargos médios, uma vintena de garoupas e alguns besugos -, tratei da lavagem enquanto ele se dirigiu à taberna mais próxima. Passados alguns minutos, de ar sorridente, ladeado por um homem de cara bolachuda e grande barriga, aproximou-se de mim.
- Ora, aqui está – exclamou.
– Muito bom, muito bom mesmo – comentou o homem esfregando as mãos.– Quanto quer por isto?
– Para o amigo, oitenta euros basta – disse-lhe.
O homem levou a mão ao bolso do casaco azul e, retirando uma carteira de couro, entregou-lhe algumas notas.
– Leva isto até ao carro – ordenou-me Manuel, fazendo-me uma cara de zangado.
– Leva tu – respondi sorrindo-lhe.
– Como, que disseste?
O homem ficou à espera olhando-nos.
– Não ouves bem? – perguntei-lhe.
– Afinal amigo, quem leva a caixa do pescado? – perguntou o homem, aborrecido com o impasse.
– Eu levo – respondeu-lhe Manuel, agachando-se e colocando o recipiente às costas.
– Até logo – disse-lhe eu, sem mais conversa.
Mais tarde, depois de tomar banho e jantar, sentei-me na sala a ver televisão, esperando que Manuel chegasse. Já havia feito a minha mochila, acomodado os meus livros, com tudo preparado para zarpar da vida de Manuel. Mas ele tardava. A minha preocupação residia nos gastos que ele poderia estar a fazer com o fruto do meu trabalho.Entretanto, fui olhando o papel, constatando que me devia para cima de duzentos euros, contabilizando também o dia que agora findava.
Depois de muitaespera, ouvi vozes do lado de fora. Levantei-me e desliguei o televisor. Manuel surgiu agarrado por dois amigos de copos, mal se percebia o que dizia, tal era a carraspana. Fiel à sua forma de ser, olhou-me com escárnio eperguntou-me:
- A menina vai sair?
Os outros riram-se. Lançando-se sobre o sofá, despediu-sedos seus amigos, agradecendo-lhes.
Era o momento que euansiosamente esperava.
Corrigiu a sua postura e, olhando-me mais uma vez, repetiu-se:
- Vais as putas,ó cabelo de menina?Bolas, acho que bebi demais – murmurou, ajeitando-se melhor.
Então,intervim:
- Por favor, pague-me o que me pertence.
– O que disseste?
-Acho que ouviu correctamente – retruquei.
– Não acredito nos meus ouvidos! Devo estar a ouvir fantasmas! Podesrepetir, por favor?- disse-me, levantando-se e aproximando-se de mim.
Então pensei ligeiro:
- Este homem não mede o perigo!
– Repete, filho da puta!
Senti a sua mão na minha camisa, na minha melhor camisa!
Toda a minha razoabilidade esfumou-se, uma súbita raiva apoderou-se de mim.
Manuel, quando deu conta, já eu estava a lançar-lhe a mão ao pescoço e a erguê-lo acima da minha cabeça. Com ele bem seguro pelo gasganete, olhei nos seus olhos aterrorizados e voltei a dizer-lhe:
- Quero o meu dinheiro e rápido.
Contudo, por razões claras, ele não podia articular palavra, o arroxo não lhe permitia. Então, resolvi afrouxar mais um pouco, sem nunca o largar.
– Estou à espera, monte de esterco – disse-lhe.– Se fores um bom menino, se não fizeres muito barulho, talvez te deixe viver – declarei.
Manuel gesticulou afirmativamente.
- Ora, assim está melhor. Onde está o meu dinheiro? Não me digas que o gastaste com os porcos iguais a ti.
Sem emitir som algum, dirigiu-se ao quarto e, abrindo a gaveta da cómoda, retirou um envelope.
– Muito bem, o menino é poupado!
Ele olhou-me e disse:
- Isto vai-te sair caro.
– Já me saiu – afirmei.– Só por te conhecer, tudo o mais é eufemismo. Agora fica aqui quietinho, sentadinho e caladinho, que aqui o teu menino vai dar o salto para a liberdade – disse-lhe, virando-lhe as costas.
Mas aquela não era a minha noite de sorte. Mal coloquei os pés do lado de fora, fui literalmente abarcado por um magote de pescadores.
– Isto está bonito – pensei, olhando para os paus que traziam.
– Nós ouvimos tudo! Ladrão, entrega o que roubaste e rápido!
– vamoslá ter calma – tentei por água nafervura, enquanto pensava numa escapatória.
Era evidente que, fosse qual fosse a história, preparavam-se para me dar uma tareia. Para piorar tudo, Manuel surgiu à janela gritando: - Matem-no! Esse filho da puta roubou-me um mês de trabalho!
Esse foi o momento em que resolvi agir. Os três homens, surpreendidos, foram literalmente abalroados por mim. De pantanas, quando se levantaram, eu corria velozmente caminho abaixo.
– Pega que é ladrão! Vamos, rápido – gritavam no meu encalço.
Mas a minha superior preparação física fez com que cada vez mais eles ficassem para trás.Chegando ao fim da estrada, virei à direita, depois à esquerda e fui desembocar na praia de Porto Pim, ondeme enfiei.
Verificando que os pescadores haviam sido despistados, deixei-me cair nas areias negras e fechei os olhos.
– Caramba, que aventura! – murmurei.
De repente e mais afrio, o ocorrido deu-me vontade de rir. Ri como nunca o havia feito.
– Estou livre – gritei, quando me levantei num salto. – Ouviram? Eu estou livre!
– Parabéns amigo - ouvi dizerem-me.
Olhei para trás de mim.Um casalinho de namorados olhava-me como se fosse um demente.
– Ah, muito obrigado – agradeci, continuando a rir.
O moço abraçou-se à sua namorada e, olhando-me de soslaio, segredou-lhe qualquer coisa. A rapariga desatou a gargalhada.
– Que me importa o que pensam de mim, eu sou livre – gritei de novo.
VII.
Passado o meu momento de euforia, decidi andar, andar muito.A noite avançava e eu precisava de pensar muito.E nada é melhor para reflectir do que andar.
Enquanto vagueava pela despida cidade, depois de ter andado por ruas, ruelas, travessas e, por fim,pela avenida,pensei na Casa do Gaiato:
- A esta hora já devem estar todos a dormir, excepto algunsque se esgueiram rumo à janela, com o intuito de fumar um cigarro.
Além de um polícia guardando a porta da delegação do Banco de Portugal, mais ninguém avistei. Com a intenção de reflectir no passo seguinte,sentei-me defronte ao café sporting, mais conhecido por Peter’sBar. Não havia ninguém nas redondezas, ou quase ninguém.
Os meus olhos, subitamente, fixaram-se na porta do conhecido bar.Junto da porta, uma rapariga de cabeça baixa bebia uma cerveja. Era de média estatura, cabelo negro, longo e rebelde, vestia calças de ganga e uma camisola branca.Na mão esquerda,segurava a garrafa, na direita, um cigarro fumegava.
- Que estranho - pensei.Uma moça sozinha, àquela hora, aparentemente bêbada…
Achei muito esquisito,masnão era nada comigo. Limitei-mea observá-la. Olhei para o meu relógio e verifiquei que já passava das duas da manhã.Ela continuava de costas na paredee nada a demovia.
Tossi, mas ela nem se mexeu. Olhando-a com mais atenção, constatei que chorava.
- Ah, é isso! Bebe por desgosto!
Não estava errado nas minhas primeiras análises.Mal havia pensado na hipótese de lhe perguntar se haveria algo que pudesse fazer para atenuar a sua tristeza, logo a minha falta de coragem assomou. Sendo assim e sem forças para contrariar a maldita, deixei-me ficar como estava, de vigilância. Entretanto, fui surpreendido: a moça deu pela minha presença. Olhou-me desde o outro lado da estrada que separava o bar do muro onde eu me sentara e, seguidamente, vi-a atravessar a rua na minha direcção.
- Bolas, porque não me fui embora! - pensei.
Mas era tarde demais. A bonita moça aproximou-se e, estacando a dois passos, disse-me:
- Posso sentar-me?
Os seus olhos estavam dilatados de tanto verter lágrimas. A rapariga era mais bonita do que me tinha parecido antes. Além do seu longo cabelo negro, era de boca pequena e sensual. Os traços de seu rosto eram de uma sumptuosidade divinal,o nariz e a delicadeza do seu queixo eram de uma harmonia rara.
Apreciações a parte, então respondi-lhe:
- Claro, é público.
- Obrigado - agradeceu-me, sentando-seao meu lado e voltou a baixar a cabeça, sem mais falas.
Ao olhá-la, reparei que chorava.
- Chorar acalma - tentei puxar conversa.
A moça suscitava-me pena.
- Esta vida é uma merda.
- A quem o dizes!
A rapariga levantou a cabeça e olhando-me,perguntou:
- Tu também tens problemas...
- Todos nós temos, não é?
- Nisso tens razão. Para estares aqui a esta hora…
- Sim.A noite está linda - disse-lhe olhando o céu limpo.
Reparei que ela esboçou um sorriso.
- Tu és estranho - comentou.
- É verdade, também me acho.
- Eu chamo-me Diana.Qual é o teu nome?
- O meu é Luís Filipe.
Diana fixou-me com os seus grandes olhos.
- Vês, já está melhor - disse-lhe, verificando que sorria enquanto me olhava.
- Teu cabelo é lindo.
- Não o corto desde que me conheço.
- Ah sim?
- É verdade.Sou eu e um antepassado meu.
- Quem é ele, um tio, um avô, pai?
- Não, Sansão!
Diana riu-se com vontade.
- Só tu para me fazeres rir.
- Da maneira como falas, até parece que nos conhecemos desde há muito - declarei.
- Se calhar…
- Não acredito na reencarnação.
- Não era a isso que me referia - afirmou.
- Então…
- Falava dos caminhos da vida - acrescentou.- Somos da mesma ilha, provavelmente já nos vimos e nem ligámos!
- Duvido - retorqui.
- Porquê?
- Porque hoje foi o único dia em que saí da minha caverna!
Diana achou piada. Eu estava encantado comigo mesmo. Tinha dito mais de duas frases sem que as pernas tremessem! Das outras vezes que tinha falado com uma mulher cara a cara, quase me mijei de nervos. Mas a rapariga que encontrei, qual passarinho de asa partida, fez-me soltar a língua. Se o Padre me ouvisse, diria que era um milagre. No entanto, iria aproveitar o momento.Desejava saber qual o motivo da sua tristeza e foi isso mesmo que lhe perguntei.
Visivelmente trôpega da língua, narrou-me a história por completo.Diana informou-me daquilo que a levou a situação em que se encontrava:havia terminado pela centésima vez com o seu namorado de sempre, a sua mãe tinha fugido com um moço vinte anos mais novo e, para complicar tudo ainda mais,o seu pai, um empresário afamado na Ilha, tentou o suicídio.
- Como vez - rematou-,a minha vida é uma merda.
- Ainda não sabes da minha!
Interessada pelo meu tolo comentário, colocou os pés em cima do muro e encostou o queixo aos joelhos.
- E agora - pensei.
- Estou à espera - afirmou, olhando-me.
“Maldita sorte a minha” - pensei. “Que digo agora”
Surpreendendo-me a mim mesmo, facto que sucedeu pela segunda vez na noite, inventei:
- Morreu um grande amigo.
- Sinto muito - disse-me Diana, de voz sumida.
De facto, tinha ponta de verdade. Luís Filipe, ex-gaiato, enquanto as horas passavam, mostrou-se um comunicativo.O gaiato fechado, sorumbático, em suma, o bichinho do mato, estava a ser esquartejado.
“E Seria isso bom?”, questionava-me.
Eu, pelo menos, sentia-me bemcomigo, vendo cair por terra todo o meu estúpido complexo de inferioridade. Mas o mais importante naquele momento era tentar fazer com que a moça de lindos olhos, cuja cor ainda não dava para distinguir, se alegrasse.Ora eu,Envolvido por uma força que me surgiu vinda de não sei onde, resolvi armar-me em chico esperto e contei-lhe a história do bandido.
- Esse meu amigo era muito introvertido e tinha medo de enfrentar o mundo tal como ele é. Um dia, apareceu-lhe uma fada madrinha e bem …
- Estás na brincadeira!
- Não queres ouvir o resto?
Diana rosnou.
- Tábem melga - desinteressou-se.
- Depois, vendo que ele sofria muito porque era envergonhado e nada fazia para mudar, deu-lhe uma noite para tudo resolver. Nessa noite colocou à sua disposição um anjo triste e, conversando com esse anjo, o meu amigo reparou que este tinha tantos ou mais problemas do que ele.Moral da história –rematei: na vida, existemmais pessoas que sofrem, não sejas um egoísta!
- Estás a falar de ti - perguntou-me.
- Não, estava a falar daquele que está à beira da morte.
- Onde está o anjo, ou melhor – reformulou -, quem é o anjo?
Olhei de lado para ela, fui tentado a dizer-lhe, mas achei demasiado atrevimento para tão curto espaço de tempo.
- O anjo concluiu o seu trabalho e foi-se.
- Como é um anjo?
Perguntando-me, deixou-se cair de costas sobre o muro. Eu tentava fazer com que os meus olhos não se detivessem no seu corpo, mas não o consegui.
- Ouviste a minha pergunta - sussurrou de olhos fechados.
- Ouvi - disse-lhe de olhos nos seus seios.
Eram duas preponderâncias bem visíveis por debaixo do leve tecido da sua camisola.
- Um anjo são todos os rostos bonitos, tem o corpo das mulheres mais lindas e o coração mais benevolente.
Para remate e tentando saltar de assunto, concluí:
- Um anjo tem o rosto e o corpo que nós quisermos.
Quando acabei, reparei que ela já dormia.
A noite estava amena, não fazia frio. Então, deixei-me ficar ao lado de Diana, esperando que acordasse. Passaram-se os minutos, as horas…Por fim, quando o sol já se levantava entre o Pico e S. Jorge, fui despertado dos meus pensamentos pelos primeiros ruídos da cidade que acordava.
VIII.
Enquanto Diana dormia, regressei ao meu passado, um passado recente. Recordei-me de algumas passagens da minha vida e todas desembocavam na Casa do Gaiato, como seria de esperar.
A Casa do Gaiato é obra de Pai Américo, ou seja, Padre Américo Monteiro de Aguiar. Nasceu em 23 de Outubro de 1887, na Freguesia de Galegos, Concelho de Penafiel e Morreu no Hospital de S. António, no porto, no dia 16 de Julho, quando tinha 68 anos. Teve uma vida virtuosa mas, em consequência dum desastre de automóvel, em S. Martinho do Campo, Valongo, no regresso de uma viagem ao sul do País,não resistiu aos ferimentos.
Embora considerassePadre Américo um homem íntegro,eu achava que colocar tantoshomensjuntos numa única casa, era um pouco arriscado.De facto, os princípios eram bons mas os fins, um pouco duvidosos. No entanto, foi lá que passei de criança a jovem e, depois,me transformei num homem.
Para além do já referido, a Casa do Gaiato tinha ainda os seus segredos,um dos quais, em especial, fez-me matutar por longo tempo.
O padre, em certos dias e a certas horas, gostava de se refugiar em determinado local. Recordo-me de o ver esgueirar-se por um caneiro, nas traseiras da casa, que nos levava a um outeiro onde se podia ver tudo ao redor. Não haveria problema se ele fizesse isso as claras. O que me intrigou de sobremaneira foi o facto de o fazer às escondidas. A pergunta começou a martelar na minha cabeça: - Porque o faz pela calada e quando quase todos estão a dormir?
Descobri esse seu refúgio num momento em que, meio por acaso, olhei para a janela da camarata. Como quase sempre, eu estava a ler quando,de repente, vi um vultoa escapulir-se, deixando-me sobressaltado.Os nossos cães não latiram, facto que se revelou aindamais surpreendente.Então, presumi que só podia ser alguém conhecido.
Olhei o relógio e verifiquei que já passava das dez da noite. Aquilo deixou-me intrigado. No início, pensei que fosse algum ladrão mas logo refutei, pois os cachorros estavam mudos. Com os outros a dormir, levantei-me e fui verificar. No lado de trás, não haviam vestígios de qualquer ladrão, muito menos de alguma partida. O galinheiro estava intacto e os cães abanaram o rabo quando me avistaram. A única hipótese era o caneiro, como imaginei desde o começo. O estreito atalho era irregular, mas a lua iluminava-o. Então, resolvi arriscar e fui em perseguição do vulto.
Depois de subir o íngreme caneiro, quando cheguei ao topo, dei de caras com o Padre.Refugiei-me por detrás de uns arbustos e observei-o.
Padre João estava olhando o horizonte, na sua mão direita tinha um cigarro, facto que me surpreendeu mas somente isso. Oseu olhar era distante, divisei lágrimas a brilhar a luz da lua.
– mas que raio – pensei na altura-, porque chorará?
Tive tempo suficiente para me aperceber que ele sofria com algo. Naquela hora, refleti nas hipóteses possíveis. Eram tantas, mas só uma se salientou: ocelibato!
Compenetrado, olhando os campos das cercanias, Padre João, enquanto fumava, chorava.Nessa noite eu dormi mal, pois aquela cena não me saía da mente e aquele seu secreto local ficou bem guardado comigo.
Entre mim e o Padre,haviamalgumas divergências, embora ele não o soubesse, ou fizesse de conta que não sabia. Eu era um frequentador assíduo das missas de domingo, que eram celebradas na igreja da freguesia. Ia lá sobretudo porque gostava de comparar as homilias com as escrituras da bíblia sagrada. Não assistia só com o intuito de criticar, não. Gostava de ouvir a palavra de Deus, embora tivesse de relações cortadas com o todo poderoso.Era sobretudo um estudioso, uma espécie de autodidacta ehaviam diversas homilias que, no mínimo, me pareciam quiçá um tanto contraditórias. Era instruído o suficiente para contestar certas coisas.
Havia lido a bíblia sagrada, o livro dos cristãos, pelo menos cinco vezes e sabia que, desde o princípio até ao livro final, ou seja,o livro do apocalipse, não mais de três vezes se falava de Maria.Então, como é que se podia celebrizar e destacar tanto uma passagem da bíblia que se referia a Maria, em toda a vida de Jesus? Era Virgem Maria para aqui, Nossa Senhora de Fátima para ali e, quanto a Jesus, filho de Deus, niclesbatatóides.
Ora, eu não era pessoa de contestar sem ter argumentos. Embora Maria tivesse sido uma personagem fulcral em certa altura, abençoada pelo Espírito Santo após o nascimento de Jesus, filho de Deus e só de Deus, viveu a sua vida como mulher de José,sendo que os dois tiveram mais filhos. Ao contrário do que dizia o Padre, nada na bíblia dizia que Maria ficou virgem,por muito que se quisesse encontrar. Existiam sim, algumas passagens que davam a entender que Jesus, desde novinho, não a tratava por mãe, mas tão simplesmente por mulher. Isso tinha uma razão de ser esó não via quem não quisesse. Como poderia Jesus ser comparado a um humano, sendo ele Deus feito homem? Como é que o Padre tinha apresunção de dizer que ela era mãe de Deus? Eu entendia, segundo minha interpretação, que isso era deitar areia para os olhos dos fiéis. Deus todo poderoso, criador dos Céus e da Terra, teria uma criação sua como mãe? Esse era um aspecto relativamente ao qual descordava da Igreja, mas havia outro.Tratava-se dorespeitante aos santos e santinhos, ou santolas.
Lendo atentamente a bíblia sagrada, verifiquei que nem uma só vez haviam referências ao facto de que se devia adorar imagens, sejam elas de que tipo fossem.Então, um dia fiz aúnica partida de que me lembro.Coloquei por debaixo da porta do escritório do Padre, nos fundos da casa, um bilhete com uma passagem da bíblia, bem elucidativa no que diz respeito aos ídolos. Retirada do Livro de Levítico, estava lá citada apalavra de Deus:,do verdadeiro Deus (Levítico 26):
“1. Não fareis para vós ídolos, nem para vós levantareis imagem esculpida, nem coluna, nem poreis na vossa terra pedra com figuras, para vos inclinardes a ela; porque eu sou o Senhor vosso Deus.”
Ora, como é que a Igreja Católica tinha a audácia de contrariar o Deus de Abraão? Mas que raio os movia? Pcom que intúitodespresavam o próprio Deus, o mesmo em que eles diziam acreditar? Embora tivesse a minha opinião formada, não entraria no campo da fé, pelo simples facto de que quem crê seja no que for, é suficientemente responsável por isso. Não seria eu quem tentaria demover quem quer quefosse, até porque eu não pertencia a nenhuma congregação. Era basicamente um crítico que interpretava as passagens bíblicas em função do que lia.
Contudo, pensando eu que não obteria resposta ao meu bilhete, certa noite ao deitar-me, encontrei uma carta sobre os meus cobertores. Quando a abri, li o seguinte:“Acimade Maria, Fátima ou outro santo qualquer,está nosso Deus. As imagens não são para ser veneradas,são uma forma de atingir o verdadeiro intuito, a atenção do Senhor”. Assinado: “João”.
Lembro-me de ter rasgado a carta e de pensar:“Boa tentativa,Senhor Padre, mas não me convence”.
Esse caso, no entanto, morreu.Nas poucas conversas que tive entretanto com ele, nada foi aflorado sobre este assunto. Acho que, tanto eu como ele,tudo havíamos esclarecido.Tínhamos pontos de vista diferentes. O simples facto de ele ter tido formação em teologia não era suficientemente persuasivo. O que seria então dos apóstolos, pacatos homens do povo, na sua maioria iletrados?
IX.
De repente, fui acordado. Os sons característicos começavam a distinguir-se:os cruzeiros do canal, grandes barcos de ferro, preparavam-se para iniciar mais um dia de transportes. Os primeiros passageiros chegavam às bilheteiras, os táxis chegavam a conta-gotas.
Manuel de Arriaga nasceu a 8 de Julho de 1840.Foi um advogado, professor,escritor e político de origem açoriana. Grande orador e membro destacado da geração doutrinária do republicanismoportuguês, foi dirigente e um dos principais ideólogos do Partido Republicano. Natural do Faial, está imortalizado com uma imponente estátualocalizada no centro de uma rotunda,adjacente ao edifício da Capitania da Horta, sobre o cais.à sua volta, a roda-viva fazia-se notar, por fim.
Nove horas, bateram no relógio. Diana, continuava adormecida. Olhei mais uma vez, e mais uma vez hesitei em acordá-la. Contudo, teria de a acordar, em breve. Com a abertura do comércio, os olhos fixavam-se em nós.
– Diana, acorda, por favor.
A minha primeira tentativa não resultou. Toquei-lhe levemente no rosto.A sua pele parecia veludo.
– Acorda menina – disse-lhe.
Seus olhos abriram lentamente.
– Onde estou?
– No muro, defronte ao Peter’s.
– O quê?
Num salto, Diana colocou-se de pé. Todavia, algo a fez colocar a mão na testa e exclamar:
- Meu Deus, a minha cabeça!
Reparei que cambaleou um pouco. Levantei-me, peguei na sua mão e pedi-lhe que se sentasse.
– Ontem bebeste demais.
Ela, continuou de mão na cabeça.
– Lembras-te de mim?
– Claro - respondeu-me, de voz sumida -, foste o anjo que a fada madrinha me mandou.
- Pelos vistos, tens boa memória – afirmei.
– Quanto tempo dormi?
Olhei para o meu relógio e disse-lhe:
- Mais ou menos 7 horas.
– Eu não acredito!
– Mas é verdade – retruquei.
– Preciso urgentemente de um café.
– Eu também já tomava o pequeno almoço.
– Tomas comigo?
- Aonde? – perguntei.
– Eu conheço um sítio. Onde coloquei o meu carro?
– Nem sabia que tinhas carro…–declarei.
Diana levantou a cabeça e,dando uma olhada geral, exclamou:
- Ah, já sei.
- Estás em condições? – perguntei.
– Acho que sim – disse-me, levantando-se vagarosamente.
Minutos mais tarde e depois de ouvir muitos ais, por fim, tomamos o pequeno almoço. A pastelaria ficava na Freguesia da Conceição. Não era grande, porém tudo era limpo e harmonioso. O dono, um velho homem de 70 anos mas de ar jovial, era conhecido de Diana e de seu pai. Serviu-nos sempre com um sorriso expressivo. Durante o pequeno almoçono qual Diana nem tocou, limitando-se abeber o café, apesar da sua visível má-disposição,falámos um pouco da noite anterior. Ela recordava-se de tudo. Entretanto, quis saber mais a meu respeito, embora não tenha conseguido.
– Nem há um dia inteiro nos conhecemos… – disse-lhe.
– Mas eu contei-te quase toda a minha vida… – declarou.
– Pois, mas eu não apanhei nenhuma bebedeira– retruquei.
– Como queiras – rematou.
– Não leves a mal.Como sabes, eu não te pedi para contares nada. Se te servir de consolo, podes ficar descansada, pois ninguém ficaráa saber.
– Olha, isso dá-me cá um abalo que nem te conto – replicou Diana, de ar despreocupado.
Depois do pequeno almoço mais surpreendente que eu já havia tomado, a bela moça, um pouco mais solta, pois as dores pouco a pouco vinham-na abandonando, perguntou-me,já fora da pastelaria:
- Onde queres que te leve?
Lembro-me de a ter olhado e, mergulhando no manto verde e brilhante dos seus olhos, responder:
- Leva-me aonde me encontraste.
– Não queres que te leve a casa?
– Não, tenho de ir trabalhar – respondi-lhe de ar convicto, não fosse ela chamar-me de indigente.
– Tudo bem, tu é que sabes.
Depois de se ter despedido de mim com um beijo no rosto e de me ter dito que gostou de me conhecer, fiquei estático, deslumbrado, um pateta vendo-a afastar-se, talvez para todo o sempre.
X.
Era meio-dia, o sol era impetuoso e tive rapidamente de procurar sombra. Pouco depois,já abrigado debaixo de um plátano gigantesco situado junto do mercado de peixe, fiquei a olhar a baía da Horta, tentando matutar no passo seguinte. Não estava fácil. Veio-me à mente tanta coisa, tanto fantasma por afastar.. Diana tinha sido um intervalo nos meus problemas.
De novo por conta própria, precisava de fazer algo.Primeiro, tinha de saber onde dormiria na próxima noite, já que na anterior nãohavia pregado olho, nem por um minuto. Como entretanto nada me ocorreu, decidi andar, pois na véspera isso tinha resultado.
Acabei porir dar ao farol, na extremidade da doca. Depois de subir as escadas que me levavam ao topo, deitei-me num dos bancos cravados no muro que rodeava ofarol. Ora, o meu corpo exaurido rapidamente se alegrou e os meus olhos fecharam-se de imediato.
– Olá! Está tudo bem?
Ouvi vozes chamando.
– Como está, amigo?
Demorei até me aperceber de onde estava. Quando abri os olhos, um homem olhava-me curioso. Usava na cabeça um chapéu à comandante, tinha óculos de fundo de garrafa e a sua barba cobria-lhe o rosto por completo. Sentei-me no banco, reparei que o sol ia baixo e que se havia levantado algum vento.
– Caramba, adormeci! – exclamei.
O homenzinho não arredou pé.
– Já apanhei dois sargos, quer ver?
– Diga?
– Tem de acordar melhor – retrucou. Eu disse-lhe que, desde que cheguei e não foi a muito, já apanhei dois sargos.
– Ah, sim, que bom – respondi, vendo que uma cana de pesca estava inclinada sobre o muro.
– Eu chamo-me Mário Trincas.
– Como disse?
Ele riu-se.
– Todos dizem o mesmo – exclamou divertido.- Trincas não é nome mas alcunha – aclarou.
– Então,Senhor Trincas, vem todos os dias aqi?
– Sim, desde que a minha mulher morreu, ainda mais – confessou.
– Então porquê?
- Não diga nada a ninguém – pediu-me, agachando-se e falando ao meu ouvido.– Ela,enquanto vivajá era chata, mas desde que Deus a levou, não sei o que lhe deu, está insuportável!Não achas que é melhor ficarmos por cá?
Olhei o homenzinho e reparei que o que me dizia era com convicção.
– Senhor Mário– disse-lhe-, não sei como sãoas coisas por lá.
– Ela disse-me que é tudo muito bonito, mas não existe sexo.Que pensas disso?
– Eu não penso nada – retruquei.
- Ah, não?
– Não,Senhor Mário – repliquei.
O homenzinho ficou de rosto entristecido.
– Não fique assim, ela dará um jeito sobre esse assunto – disse-lhe, tentandofazer com que se sentisse melhor.
– Como o fará?
– Ouvi dizer que Deus dá uma oportunidade por semana a todos aqueles que se portam bem.
– Ah sim?
– Sim, sim.E até lhe digo mais.Elesregressam com uma força que nem lhe conto.
– Bolas, tenho de me lavar.Nunca se sabe se não será hoje, não é?
- Faça isso,Senhor Mário.
Logo de seguida, retirou o isco do mar e, colocando a cana às costas, despediu-se de mim, dizendo:
- Muito obrigado, você é um anjo.
A palavra anjo perseguia-me. Fiquei a pensar no Senhor Mário e no seu delírio.
– Não teremos todos nós os nossos delírios?
Levantei os braços, escancarei a boca e, estalandoos dedos, puz-me a mexer, pois a noite vinha a caminho.
XI.
Prestes a chegar ao local onde havia iniciado a minha caminhada, pertodo mercado de peixe, quase fui atrupelado por um automóvel.
– Caramba, não vê por onde anda?
– Olá, não queres entrar?
- Diana?
– Queres ou não?
– Claro que sim – respondi, abrindo de súbito a porta do carro.– Como estás? – perguntei.
Diana estava com outro ar, outra disposição.
- Bem melhor e graças a ti.
– Acho que foi graças ao café.
– Engraçadinho – retrucou.
Olhei para ela enquanto conduzia.Verifiquei que vestia saia curta de ganga e um top ínfimo, deixando bem visível o seu faustoso busto.
– Aperta o sinto, senão faço-te pagar a multa – brincou.
– Para onde me levas?
– Já vês. Confias em mim? – perguntou, olhando-me de soslaio.
– Não tenho razões para nãoconfiar.
Atenta à estrada, contou-me que havia tomado mais de 4 banhos durante o dia.
– Agora estou fresca e pronta para outra!
-Achas que valeu a pena?
Diana olhou-me.
– Acho que sim. De onde vinhas?
– Estive no farol. Conheci lá uma personagem verdadeiramente deliciosa – disse-lhe–, chamava-se Mário e tinha o seu mundo privativo.
- Era tão bom que assim fosse, não?
– Pois era – repliquei.
Diana conduziu durante vinte minutos, só terminando defronte a uma imponente vivenda de cor amarela, rodeada de altos muros.
– Este castelo é a tua casa?
– Sim, é – respondeu-me,premindo um botão de um comando que retirou do porta-luvas.
Um grande portão de ferro forjado abriu-se e entrámos para um amplo pátio de cimento. Constatei que no meio do pátio havia um lago artificial com a figura de uma criança no centro, ladeada por um grande cisne.
– nas traseiras, temos a nossa piscina – disse-me Diana, encaminhando-me em direcção a uma porta situada debaixo de uma arcada.
No interior, o luxo era evidente. Boquiaberto com tanta manifestação de riqueza eum tanto ou quanto estonteado, fui convidado a sentar-me na sala de visitas.
Nas paredes,destacavam-se quadros com cenas de caça ao cachalote, junto deuma grande janela, um bar em forma de barco e, sobre o balcão, réplicas de botes baleeiros. O chão era coberto por uma alcatifaazulada e uma grande mesa de vidro grosso situava-se no ladooposto aos sofás brancos onde me avia sentado.
– Depois mostro-te o resto – disse-me Diana, batendo palmas.
À porta da sala, apareceu uma moça com uma espécie de touca na cabeça e de avental azul e branco.
– Sim, menina – perguntou.
– Meu pai, Lúcia?
– O Senhor Martim está dormindo, menina – declarou.
A miúda,atendendo às feições, não teria mais de vinte anos. Era de rosto sorridente e jovial e tinha olhos castanhos amendoados.
– Lúcia está connosco desde os quinze anos – informou-me Diana. – A mãe dela morreu junto com o seu pai, num desastre de viação. A avó já não tinha idade para a criar e, comoéramos amigos da família, demos-lhe a possibilidade de trabalhar para nós, retirando-a da fábrica do leite. Lúcia é como se fosse da família. Tem o seu quarto, ganha mais do que a média e tem duas folgas por semana.
Diana entendeu contar-me parte da sua vida, no que se referia ao seunamoro. Contou-me que o seu namorado era filho de um bem-sucedido farmacêutico e que, depois deconcluir o décimo segundo ano, acomodou-se,passando a sua vida a ser não mais do que festas e mais festas. Disse-me também que já o conhecia desde pequeno eque haviam frequentado a mesma escola.
– Era tão bom que ele se tivesse mantido criança…- confessou, a certa altura.
Disse-me ainda que ele vinha entrando no mundo obscuro das drogas,provocando o afastamento dela.
– Sabes Luís, era contra tudo o que eu mais acreidtava. Aquele não era o sonho que tivemos para as nossas vidas.Estás a ver isto? – disse-me, retirando do bolso um telemóvel. – São mais de cem chamadas que não atendi.
Como sabia que quem acerta mais é o homem calado - provérbio de Rei Salomão -, limitei-me a ouvir, pois notei que a noite anterior não tinha sido suficiente. Quando Diana, por fim, deu por terminadaa sua narrativa, disse-lhe somente:
- Quais são as possibilidades de voltarem?
- Nenhuma – respondeu-me secamente.
– Mas não é para falarmos só de mim que aqui estás – rematou, levantando-se e encaminhando-se para o bar.– Bebes alguma coisa?
– Só se for água. Não gosto de álcool – disse-lhe.
Depois de ela me ter matado a sede, fomos surpreendidos por seu pai.
Era um homem de rosto triste, tinha uma longa barba negra, usava o cabelo puxado para trás e seus olhos tinham a mesma cor dos de sua filha. Visivelmente alheio à minha presença, encafuou-se no bar. Não valeram muito todos os avisos de Diana.
– Oh pai, isso mata-te aos poucos. Pensa em nós, por favor.
Quanto a ele, nem respondia. Depois de alguns minutos tapado pelo bar, surgiu de rosto mais desanuviado. Reparei que já me olhava, o que me levou a concluir que o álcool já havia feito das suas.
– Quem é esse moço que está ao teu lado?
Rolando para perto de nós, colocou-se à nossa frente, de olhos postos em mim.
– Pai, este é o Luís.
– É teu namorado?
– Não, nada disso– respondi.
– Ainda bem – retrucou. – Filha, acabaste de sair duma, não te metas noutra!
- Ele vai jantar connosco – disse-lhe Diana.
– Por mim, tudo bem – rematou.
Estive à conversa com eles durante algum tempo, falámos de muita coisa, sobretudo de literatura. Fiquei a saber que Martim havia sido um leitor compulsivo, sendo Eça de Queirós o seu autor favorito. Quanto a Diana, não era muito de leituras.Formou-se em advocacia, porém não a exercia.
Por fim e com todos a mesa, Lúcia serviu-nos um pargo assado no forno a lenha e, a seguir, a bonita rapariga sentou-se junto de nós.
Entretanto, nem sei como, a conversa foidesembocar na política.Martim, quando a palavra comunismo naturalmenteassomou, deu um grande rosnido.
– Sabes Luís – informou-me Diana -,o meu pai não gosta nada dos comunistas.
– Deu para perceber – retruquei.
Tentando saber o porquê de tanta raiva, perguntei-lhe:
- O que é que os comunistas fazem de mal?
Martim olhou-me.Os seus olhos deitavam chispas.
– Esses bandidos, são o cancro do nosso país! Foram eles que fizeram com que o nosso país ficasse por anos paralisado. Encobertos pelo 25 de Abril, secretamente iam minando a seu belo prazer toda a sociedade.
– Não são eles protectores dos que trabalham?
– Tu és comunista?
– Não, eu não sou nada – respondi quando vi que me olhou desconfiado.
– Eles são protectores de si próprios! Quando é que os vês sentarem-se a uma mesae a dialogar sobre o futuro do País? Não o fazem porque isso não lhes dá protagonismo! Eles preferem, pela calada, acicatar os pobres de espírito para se juntarem à porta dos ministros. Depois,na Assembleia, fazem-se de santinhos quando um grupo contratado grita nas galerias.
– Vamos parar de falar em política – intrometeu-se Diana.
– É melhor – concordou Martim.
– Que tal está acomida – perguntou-me Lúcia.
Já sem a touca na cabeça, verifiquei que tinha um lindo cabelo loiro e respondi:
– Muito bom,você é uma grande cozinheira.
– Obrigado menino – agradeceu, corando.
– É verdade, a nossa Lúcia cozinha como ninguém.É um dom natural – meteu-se Martim.
O jantar terminou com todos mais ou menos satisfeitos. Digo “mais ou menos” porque Martim, depois de despejar duas garrafas de vinho, teve de ser empurrado até aos seus cómodos -uma tarefa que Diana faz questão de efectuar.
Com ele já a dormir, ainda fui convidado a conhecer um lugar especial. Diana entendeu mostrar-me onde por vezes ia quando estava triste.
– Isto aqui acalma-me – disse-me quando, depois de percorridos sinuosos caminhos, termos estacado junto do Farol da Ribeirinha.
Havia ao lado uma espécie de miradouro onde se podia avistar toda a imensidão do oceano. Situado no topo de uma falésia,a imponente construção iluminava parte substancial do canal que separa as ilhas do Faial, Pico e S. Jorge.
- Anda que eu vou fazer-te uma visita guiada – disse-me subitamente Diana, pegando na minha mão.
Então, contou-me a história do Farol da Ribeirinha, construído em 1919 - edificação original.Mais tarde, em virtude do terramoto de 1998, foi reconstruído,sendo reinaugurado em 1999.Com cinco metros de altura, situado na ponta que dá o nome a freguesia onde se localiza, a imponente construção foi erguida no cimo de um cabo com 136 metros de altitude.
Passados alguns minutos e depois de eu ter ficado a par da história do farol da ribeirinha, voltamos ao miradouro. Tendo Diana começado a sentir frio,disse-lhe, compadecido:
– É melhor irmos embora.
Há muito que a noite havia caído.No regresso,as nossas bocas não se abriram.
À nossa espera já estava Martim e foi então que recebi de sua boca a proposta que mudou a minha vida.
– Primeiro que tudo, vou mostrar-te uma coisa – disse-me.Diana, filha, por favor, leva-nos à biblioteca.
– Vocês têm uma biblioteca?
– Já vês – disse-me Martim esboçando um sorriso.
Fiquei literalmente de queixo caído. A sala era ampla, ao centro havia uma mesa comprida e as paredes estavam completamente tapadas por prateleiras cheias de livros.
– Como vês, eu não te menti – declarou Martim, percorrendo toda a sala.
– Gostas? – perguntou-me Diana.
Martim, depois de dar uma volta completa à sala, parou na minha frente dizendo-me:
- Olha rapaz, não me perguntes porquê mas gostei de ti.
– Eu também gostei de vós todos – retribuí. – Gostava muito de poder vir cá ler – disse-lhe. – Posso? – interroguei.
– Não só podes, como eu faço questão que a uses – declarou –, desde que…
- Pronto pai – intrometeu-se Diana, abraçando-se a ele.
Constatei que o assunto para ele era um pouco incómodo.
– Tudo bem filha – declarou, beijando a mão de Diana –,mas ainda não acabou – disse-me.
– Então, existe mais? – perguntei.
– Sim, eu vou propor-te uma coisa – afirmou, olhando-me nos olhos.– Tu trabalhas?
– Eu não, fui despedido na noite passada.
Diana olhou-me.
– Precisamos de uma pessoa que tome conta das nossas terras, uma espécie de capataz, estás interessado?
O Meu coraçãoresolveu começar a galopar no peito. Diana continuava de olhos postos em mim.
– Então rapaz, estou à espera – apressou-me Martim.
– Eu, eu, bem…
- Tu, o quê?
- Claro que aceito, mas…
- Mas, o quê moço? – inquietou-se o pai de Diana.
– Mas eu acho que não mereço tanta sorte – declarei, emocionando-me. – Nós só nos conhecemoshá meia dúzia de horas – afirmei.
De repente, apeteceu-me chorar. Não acreditava em tamanha rasteira do destino, ou coisa parecida. A minha vida, até então um contínuo desassossego, estava a transformar-se numa coisa parecida com o agradável. Olhei para Diana e, de nó na garganta, disse-lhe:
- Vieste dar-me sorte.
- Todos temos a sorte que merecemos – retrucou –dando-me de seguida um abraço.
– Meninos, estou aqui! - declarou Martim.– Lúcia!
A moça surgiu de imediato à porta, com o grito de Martim.
– Diga, senhor.
– O quarto ao lado do meu está limpo?
– Está sempre – respondeu.
As surpresas ainda não haviam acabado.
– Eu vou ficaraqui?
– Não queres? – perguntou-me Diana.– Claro que tens de avisar a tua família – acrescentou.
– Ah, isso não é problema.
– óptimo! Vamos festejar – contentou-se Martim, rolando em direcção à sala, com Diana na sua peugada.
– Não vais beber mais!
– Só um whisky - dizia Martim, acelerando mais ainda.
– Luís, diz-lhe para parar de beber – pedia-me Diana.
O meu quarto era enorme, tal como quase tudo na casa. Tinha uma cama de casal só para mim, um grandioso guarda-fatos que ia de uma parede à outra, uma cómoda onde cabia a roupa de todos os rapazes da Casa do Gaiato, tudo em cor marfim. Para completar o meu espanto, o conteúdo do roupeiro eram alguns fatos do melhor que havia,que me haviam sido dados por Martim.
Eu estava a viver um sonho. Mas como em todos os sonhos, há um momento em que acordamos. Isso aconteceu quando Diana insistiu que eu devia avisar a minha família, facto que me atrapalhou. Mas como sobretudo preservava a sinceridade, deixei que ela me levasse à cidade.Sem rodeios,dir-lhe-ia de onde vim e aonde fui criado. Foi isso mesmo que aconteceu, mas a sua reacção não foi a que eu esperava.
– Esta é a minha família, vivi cá até há dois meses atrás.
– Tu eras Gaiato? – perguntou-me virando-se para mim.
– Tem importância?
Achei Diana estranha. Baixando os olhos, murmurou:
- Tem muita importância.
Ouvindo aquilo, foi como se a minha alma tivesse congelado.
– Não acredito – disse-lhe, abrindo a porta.
– Espera Luís, não é isso que estás a pensar – ouvi, enquanto, a passos largos, me afastava.
– Vocês são todos iguais – gritei-lhe.
– Luís, Luís!
Diana havia sido uma verdadeira desilusão. Esperava discriminação por parte de todos,menos dela.
– É bem-feito, tolo duma figa – martirizei-me –, mas o que pensavas? As coisas não caem do céu assim. És mesmo um lírico incorrigível.
Passei horas barafustando comigo mesmo e com a minha estúpida maneira de olhar para os outros. Refugiado nas cercanias da Casa do Gaiato, arredores que conhecia como ninguém, saí por fim do anonimato.
XII.
Cheio de fome, desci até à cidade.
- Ora merda para a minha sorte –resmunguei.
Fui precisamente comer no tasco onde Manuel costumava ir.
– Isto está bonito – murmurei.
Reparei que os que me rodeavam, olhavam-me como se fosse um bandido. Não me assustavam, nada disso, mas era sempre preferível evitar guerras e, depois de pagar o que comi, saí.
Mal tinha virado a esquina, apareceram-me pela frente dois rapazes. Eram ambos altos e de ombros largos, braços musculados, de ar malévolo, cabelo curto e de olhos trocistas.Pensei:“Dois,sempre é menos do que meia dúzia”.
– Que querem? – não estou num bom dia – afirmei, tentando passar por eles.
Eu estava a ser sincero. O dia tinha-me corrido muito mal, pois havia passado do oitenta ao oito, num piscar de olhos. Provavelmente,elesnada tinham a ver com a minha malfadada vida, contudo, só pedia a Deus que nãomexessem muito com o meu adormecido vulcão.Mas nada disso aconteceu.Mais uma vez, o impoluto Deus, não me ouviu.
- O menino não está bem disposto, vejam lá – exclamou um.
Vendo que aquilo não ia lá com educação, engrossei a voz e disse-lhes:
- Não está na hora do chichi e cama?Pelos vistos não gostaram.
Mirei-os bem, medindo-lhes as dimensões dos focinhos.Era o suficiente para lhes aplicar uns socos sem correr o risco de falhar.Os jovens, com uma hereditária arrogância, estavam decididos, mas eu dar-lhes-ia o que procuravam.
- Sabes o que fizeste a tio Manuel?
– Sei, sim – respondi–, trabalhei como um escravo – concluindo.
- Não foi nada disso, desgraçado – replicou um deles, fechando o punho.
A palavra desgraçado perseguia-me, fosse eu para onde fosse. Já não bastava eu próprio sentir-me assim?Os outros também tinham a mesma opinião?
Então,reflecti:“Se sou mesmo um desgraçado,vou agir como tal”.
À porta do tasco, todos nos olhavam, provavelmente,à espera que os moços me dessem uma lição.
– Desculpem desiludir-vos – pensei, preparando-me para o embate.
Ora, foi mais fácil do que à partida esperaria. Não queria fazer aquilo, juro que não, mas eles não me deixaram qualquer escapatória.Não era muito habitual fazer com que os outros pagassem pelas minhas frustrações.Porém, aqueles estavam a pedi-las. Então, movimentei-me contra eles e, com uma cabeçada no da esquerda e um soco bem direccionado no da direita, resolvi o assunto.
– Ai, ele partiu-me o nariz – gritava um.
Como outro, provavelmente havia sido mais duro, pois não lhe ouvia qualquer gemido.
– Bem, está na hora de por os pés de novo em acção – pensei..
Ainda deu para ouvir alguns gritos de socorro, mas já estava um pouco distante. Então, resolvi acelerar o passo.Todavia, fui barrado quando um carro da polícia travou ao meu lado, mal havia eu percorrido cem metros.
– Bolas, tão rápido – pensei, vendo as caras encolerizadas dos agentes.
Eram tão somentetrês:dois deles, mais novos e, um, de mais idade.Respirei fundo e decidi não oferecer resistência.
– Boa noite senhores – cumprimentei-os.
– Fiquem aqui que resolvo eu mesmo esta ocorrência – disse um com as insígnias de subchefe.
Para polícia, era demasiado pequeno e, como agente, só a farda escapava. Erade baixa estatura, por debaixo do nariz usava um bigode salpicado de pelos brancos e as maçãs do rosto eram vermelhas.
Tocou na pala, baixou a cabeça e deu dois passos na minha direcção.
– Posso saber a razão que o levou a agredir dois jovens?
- As coisas não decorreram bem assim, tudo começou…
- Eu não quero saber como começou, eu sei como acabou – gritou-me.
Seu rosto bonacheirão olhava-me com certa raiva.
– Se não quer saber, eu calo-me – retruquei.
Encostou o peito ao meu, dava para sentir o seu hálito desagradável, uma mistura de vinho com tabaco.
– Vais dar uma voltinha connosco – disse-me flechando-me com seus pequenos olhos pretos.
As pessoasparavam junto do carro da polícia.A curiosidade falava mais alto. Embora os outros agentes tentassem fazer com que circulassem, isso não era fácil.
Era para mim evidente que o policial gostava de dar nas vistas. Chamando por um dos seus subordinados, ordenou-lhe que me algemasse.
– Vai ser preciso tanto?
– Você está preso, em nome da lei portuguesa!
Ouvi palmas.Passados alguns minutos, constatei que a direcção que tomaram não era a da esquadra mas a da estrada da caldeira, um sinuoso caminho que desembocava no conhecido ponto turístico.
Pela primeira vez, senti medo,algemado, ao lado de um agente que, embora calado, observava todos os meus movimentos e ouvindo um jorro de indecências por parte do chefe.Por fim, o carro parou e o motor foi desligado.
– Que eu saiba, aqui não é a esquadra – declarei.
– Que novidade me estás a dar – gracejou Sousa (li no dístico que usava).
– Matos, trá-lo para fora – ordenou.
– Para onde me levam?
Matos limitou-se a cumprir ordens, não emitia qualquer som. O motorista baixou a cabeça sobre o volante. Fiquei com a sensação que lhes custava aquilo tudo.
– Para aqui, rápido!
Sousa foi colocar-se junto de uma enorme pedra, depois de percorrermos um caminho de cabras, sob uma escuridão fantasmagórica.
– Ajoelha-te – ordenou-me.
– Não meapetece rezar – disse-lhe enrijecendo todos os meus músculos.
– Matos,do que estás à espera?
– Não faço isto – respondeu-lhe o jovem polícia.
– Não fazes o quê?
– Isto não é seragente – acrescentou Matos.
– Tens muito que aprender - disse-lhe.– Depois falamos – aditou.
– Não fazes tu, faço eu!
Mal havia acabado de falar, levei uma valente pancada nas dobras dos joelhos e fiquei como ele pretendia.
– Vês como te pões de joelhos, filho da puta?
Instintivamente, tentei sair da situação. Rebolei sobre mim e tentei agarrá-lo pelas pernas.Porém, falhei o alvo.
– Boa tentativa, bandido.– Agora, ouve bem – gritou –,vou dar-te uma lição, para não te meteres com quem não deves.
Acabado de dizer tal coisa, senti uma vigorosa cacetada na nuca e perdi os sentidos.
Quando abri os meus olhos,segundo a enfermeira, dois dias depois de me terem encontrado junto a uma berma,após ter sido atacado por marginais, a minha cabeça, enfaixada, doía-me muito.Quando tentei movimentar os membros, idem-idem, aspas-aspas.
– Não se pouparam – pensei, gemendo de dores. – Por favor, estou cheio de dores – queixei-me.
– Já vou dar-lhe qualquer coisa para as acalmar – informou-me a jovem enfermeira.
Uns minutos mais tarde, com aacalmia das dores, tentei indagar o que na realidade a bonita enfermeira sabia.
– O que sei é pouco - disse-me. – Na noite em que chegou cá, eu estava de serviço, percebi que os três agentes o haviam encontrado.
– Como eram eles?
Ela fez um ar pensativo dizendo-me:
- Um, era de meia idade e de bigode preto…
- Preto e mesclado de branco?
– Sim, era isso mesmo, e tinha um ar…, bem…
- De porco!
– Foi você que disse – declarou, esboçando um sorriso. – Os outros dois, não passavam dumas crianças, era óbvio que eram novos na profissão – rematou Sofia.
Sofia era engraçada. Além de uma genuína vocação, sempre que entrava ao serviço, fazia questão de me visitar.
– Então, como está o bonitão
Eram estas as suas primeiras palavras, mal entrava na enfermaria - elogios a que eu nãoestava acostumado. Foram seis dias, seis penosos dias. Por sorte, ou talvez não, a minha mochila estava intacta. Enquanto a minha recuperação avançava, a leitura acompanhou-me. Sofia, curiosa, rendeu-se às conversas que tínhamos. Falávamos sobretudo de literatura.Fiz questão de lhe ler trechos dos Lusíadas, facto que lhe agradou.
– Não sabia que a literatura nos fazia sonhar - declarou um dia, para meu espanto.
Sofia foi uma boa companhia enquanto estive em restauro. A meio do percurso, recebi uma visita, no mínimo, inesperada.
Padre João, avisado pelos mesmos que me deram a tareia de criar bicho, entrou enfermaria adentro. Nessa altura eu já não estava com o turbante Só a perna esquerda se mantinha imobilizada.
– Que te fizeram, meu filho – lamentou-se. – Vais comigo para casa – acrescentou, segurando-me as mãos.
Reparei que chorava.
– Oiça lá,Padre – disse-lhe –, é preciso tanto salamaleque?
– Como assim meu filho?
– Você não vê que eu jamais voltarei?
– Preferes viver nas ruas?
Olhei-o bem e disse-lhe:
- Todos os desertos são áridos, longos, agrestes,penosos, mas existe sempre quem os atravesse.Estou errado? Até por vezes, no meio do trajecto, surgem oásis.Que tal? – rematei.
– Estás diferente – disse-me, olhando-me assombrado.
– Não me olhe assim.A pancada na cabeça deixou tudo como estava, penso eu – gracejei.
– Estás mais falador, desinibido, não sei.
- Foramos ares da cidade - repliquei.
Padre João, desde esse dia, era visita constante. No dia em que saí do hospital, lá estava ele.
– Tens a certeza de que não queres voltar?
Podia ter optado pelo mais fácil e regressar com ele, porém não o fiz.
– Não,Senhor Padre, eu vou em busca do meu destino – disse-lhe, junto da porta de saída.
– Pensei que não acreditasses no destino – declarou.
– E não acredito, é um lugar comum – afirmei.
– Para onde vais? – perguntou-me.
– Sei lá – declarei, olhando o horizonte.
– Assim assustas-me.
– Estou assim tão maltratado? – perguntei.
– Acho-te tão estranho.
– Pois é,Senhor Padre, li um dia que, por vezes, não nos basta estar fisicamente próximos para nos conhecermos. Existe mais para além da companhia.
Padre João, mais uma vez, olhou-me com estranheza.
– Já sabes, disse-me, para fim de conversa -, tens sempre as portas abertas para quando quiseres voltar.
– Tudo bem – disse-lhe, despedindo-me.
XIII.
Desci a rua que me levava à cidade e, quando olhei para o meu pulso, batiam as cinco da tarde.
– E agora, Luís Filipe?– pensei.
Meditei, andando sem rumo definido. Acabei por me sentar no Largo do Infante, talvez o local mais conhecido da cidade. Fiquei por longos minutos olhando abaía e os barcos que entravam e saíam. Lembrei-me de Diana e de Martim. Subitamente, senti uma grande angústia e fechei os olhos para evitar chorar.
Corria uma brisa fresca.Entre a folhagem das palmeiras,bandos de pardais faziam uma algazarra ensurdecedora. Enquanto Tentavafazer com que os meus pensamentos se desviassem noutro sentido, um perfume familiar veio ao meu encontro e lembro-me de ter murmurado:
- Diana usava um igual.
– Olá, como estás?
Aquela voz, o perfume…
- Diana?
- Eu mesma, lembras-te de mim? – perguntou-me.
Abri os olhos. Diana estava na minha frente.O seu rosto era de tristeza.
– Que fazes aqui? – perguntei-lhe.
– Não devia ser eu a formular essa pergunta?
– Então, porquê?
– Porque tu foste muito inconsequente - retrucou, de voz dividida.
Tentei regressar rapidamente a situação.
– Espera aí – disse-lhe, levantando-me, indignado.
Diana ficou surpreendida com a minha enérgica reacção.
– Tu discriminaste-me, e eu é que fui inconsequente?
- Quem te discriminou? Porque não me ouvisteaté ao fim?
– Para quê, Para ouvir:“desculpa mas não aceitamos rapazes da Casa do Gaiato”?
Diana sentou-se, colocou a cabeça entre os joelhos e chorou.
– Espera aí – disse-lhe –, achas que épara tanto?
Fiquei sem reacção, limitando-me a observá-la.
– Se optares por termos uma conversa sem choro à mistura, avisa-me – disse-lhe.
Diana, depois de se ter acalmado, por fim, esclareceu-me o porquê da sua estupefacção quando lhe disse que havia sido criado na Casa do Gaiato.
– Meu pai também foi lá posto!
Ora, eu nem sabia aonde me meter, tal foi a vergonha sentida.
– Porque não me disseste logo?
– Não me deste tempo, lembras-te?
Agachei-me junto dela e, pegando nas suas delicadas mãos, disse-lhe, olhando-a:
- Diana, sei que a palavra perdão, em certos casos, de pouco serve, mas quero que saibas que neste momento ela está envolta em sinceridade.
Diana levantou a cabeça e, olhando-me nos olhos, perguntou-me:
- isso quer dizer que voltas comigo para tua casa?
- Se ainda me quiserem por lá.
– O meu pai vai matar-te!
– Isso é um sim? – perguntei.
– O que é que achas?
Os olhos de Diana emanavam felicidade. Depois das desculpas pedidas e aceites, depois de lhe ter contado o que me aconteceu logo após nos separarmos, mal cheguei junto de Martim, ouvi um sermão daqueles...
– Que seja a última vez! Mas que raio te passou pela cabeça para nos deixares e da forma como deixaste? A minha filha, naquela noite, não dormiu, por tua causa! Aliás, nem ela nem eu!
– Já basta, pai – intrometeu-se Diana, vendo que exagerava.
Claro que fui obrigado a um pedido de desculpas.
– Olha, prometo que não faço igual – declarei.
– Nem igual, nem parecido!
– Pai, parece que estás a ralhar com um filho – observou Diana.
Segurei-me para não desatar à gargalhada com o jeito de Martim. Enquanto barafustava comigo, saltava na cadeira, como um boneco a pilhas.
Entretanto, fiquei a conhecer parte de sua vida, designadamente,a sua passagem pela Casa do Gaiato. Desprezado pelos progenitores, a sua história enquanto lá viveu assemelhava-se à minha. Narrou-me que, tal como eu, enquanto lá viveu, foi sempre um rapaz frustrado, nada o contentava e nem sequer tinha amigos.
Ora senti, salvo a diferença de idades, que o que narrava não era a dele mas a minha vida. Não obstante as semelhanças, Martim teve mais força do que eu e isso fez com que concretizasse quase todos os seus sonhos. Eu limitei-me a esperar que as coisas me caíssem no colo, mas ele, não. Eu ficava circunscrito às imediações da casa, mas ele, partiu para a luta. Portanto, resumindo e concluindo, Martim só era semelhante na frustração e, mesmo assim, só até certa data. Por isso, venceu na vida. Por isso, levantou os muros do seu próprio castelo e, por isso, constituiu família.
– Eu gostaria de ter tido a sua força – disse-lhe quando ele me perguntou: “como te comportavas lá?”
Acrescentando, disse-lhe ainda:
- Olhe,Senhor Martim, a sua história só é parecida com a minha até à altura em que você resolveu procurar ser feliz.
– E não é isso que devemos fazer todos? Não fizeste o mesmo?
Pergunta relativamente à qual hesitei na resposta.
– Acho que as coisas me caíram do céu, falo do facto de vos ter encontrado, naturalmente – disse-lhe. - Mas não falemos de mim, queria que me falasse mais de si – tentei assim mudar a agulha. – Fale-me de como foi parar ao ramo hoteleiro – pedi-lhe.
Enquanto escutava com muita atenção o que me dizia o pai de Diana, ela e Lúcia preparavam um jantar de gala em minha honra.
- O filho pródigo voltou – declarou Martim, com vontade de festejar o meu regresso.
Para Diana, era mais uma forma de ele estar sempre com o copo na mão, porém, aceitou, até porque se sentia feliz, conforme me confessou.
O jantar estava perfeito, a minha vida compunha-se a preceito e eu estava radiante com as pessoas que me haviam calhado na rifa.
Na grande mesa da sala, tudo estava irrepreensivelmente vistoso, saboroso, tal era o requinte. Lúcia foi convidada a jantar connosco.
–Essa foi a minha primeira noite na casa de Diana e Martim, residência onde me mantive por muito tempo. Nessa mesma noite, a primeira em que me vi envolvido por lençóis de cetim, sonhei com algo estranho:uma mulher sem rosto, cabelos negros e longos, cantava para mim eà sua volta,estendiam-seamplos prados verdes ondehaviam rebanhos a perder de vista. Essa mulher dizia-me:
- Filho querido, eu estou sempre contigo!
Lembro-me que acordei lavado em suor.
– Mas que raio – pensei na altura.
Contudo, pela manhã,reflecti e pareceu-me tudo uma tolice.Devia ter sido cansaço mental.Foi a conclusão mais lógica que encontrei.
XIV.
- Como estás hoje?
Maria, como sempre, estava ao lado do telefone.
– Essa pergunta já me aborrece.Não sabes a resposta?
- Não fiques assim, tudo irá resolver-se.
– “Tudo iráde resolver-se”, “não desesperes”, “eu amo-te”, porra para tudo isso! Vou abdicar de tudo e procurar o meu filho – murmurou, de lágrimas nos olhos.
– Agora que está tudo bem com o Luís?
- Essa história está malcontada –declarou Maria, passando as costas da mão nos olhos.
– Porque dizes isso?
– OFaial não é o Texas. Foi outra coisa.O meu coração diz-me isso.
– Seja o que for, ele está bem – esclareceu a voz do outro lado da linha.– Amanhã,estarei aí contigo.Estou a morrer de saudades.
- Onde está ele agora?
– Procurei na cidade, nas cercanias, mas não o vi.
-Ele está bem? – suspirou Maria.
– Espero que sim.No entanto, continuo a procura.
– Faz isso, por favor.
– Sem favor, amor – retrucou ohomem.
Maria animou-se. O homem, motivo de todos os seus conflitos atuais mas seu amor, estaria consigo no dia seguinte.
XV.
O verão deu lugar ao outono o qual, por sua vez, deu passagem ao inverno.Este último, rude, fez questão de deixar a sua marca bem vincada em algumas famílias.Acomunidade piscatória sofreu muito particularmente na peletoda aseveridade do inverno.Nesse ano, poucos pescadores foram ao mar, pelo menos enquanto o rigoroso invernomorou. Nada a que eles não estivessem acostumados, todavia, nesse inverno, parecia tudo mais difícil, muito mais austero.
Algumas vezes pensei em Manuel, nem sei bem porquê. Talvez porque tenha sentidoo quão trabalhosa é a profissão que exerci durante dois escassos, porém, bem elucidativos meses.
Não é nada fácil ser-se pescador nos Açores. Por esse facto e tendo em conta os invernos rigorosos, muitos, além da pesca, cultivam o seu bocado de terra e outros chegam mesmo a criar gado,no intuito de manter o sustento das famílias.Os que vivem exclusivamente do mar, esses, passam mais dificuldades. Portanto, nos Açores, uma boa fatia dos habitantes é pescadora quando o mar está manso e agricultoradurante o ano todo.
Não obstante toda a minha complacência para com a comunidade piscatória, estava decidido a que o inverno não fosse entrave aos meus desígnios. Tal coisa pensei, tal coisa executei. Ora, era uma vastidão de terrasaquelaque me esperava. Além daquelas que avistei ao redor da vivenda, Martim ainda era proprietário de pelo menos mais uma centena de alqueires. O mato consumia parte dos campos, portanto, árduo era o trabalho que tinha pela frente. Contudo, revigorado por fazer parte da vida de duas pessoas maravilhosas e por ter pela frente um horizonte mais risonho, arregacei as mangas e parti para a luta.
Foram meses a fio desbravando, edificando muros caídos, dividindo as terras em parcelas iguais, semeando de tudo um pouco e, para remate, apresentei a Martim as vantagens de se criar gado.
– São terras boas para criarmos gado, um negócio que, se bem acautelado, rende muito!
Martim aceitou na hora e nem sequer me perguntou como havia chegado a essa conclusão. Contudo, fiz questão de lhe explicar:
- Andei por aí a observar alguns lavradores e li muito a respeito do assunto.
Claro que sem investimento não podia concretizar o meu sonho, ou seja, encher os enormes campos de gado.
– Eu sei - declarou Martim. Houve tempos em que pensei em investir em grandes pomares, mas logo desisti. Todas as terras que tenho, comprei-as pouco a pouco, pensando que quando fosse velho poderia de alguma forma dedicar-mea esse ramo. Todavia, não o consegui. A hotelaria era o meu ar, a minha vida.
Martim contou-me como tudo começou:
- Naquela altura era tudo mais complicado. Trabalhei num tasco e aos fins de semana ia a pesca. Dia após dia, com suor, sangue e lágrimas,acabei por tirar um curso superior, à data, só ao alcance dos ricos. Tive o apoio fundamental do padre da altura, um homem justo e muito influente. Foigraças a ele que me formei em engenharia.
– Como foste parar ao ramo hoteleiro?
- Bem, isso tem uma história por detrás – afirmou. – Quando me formei em engenharia civil, conheci um moço do Continente, filho dum empresário do ramo hoteleiro – informou-me Martim.– Ora, eu e Tiago éramos muito amigos e, enquanto estudei em lisboa, era frequentador assíduo da sua casa no Restelo. Pouco a pouco, fui-me inteirando do quão aliciante é gerir um hotel.Diversas circunstâncias levaram-me muitas vezes a encontrar-me com Tiago no hotel do seu pai, onde dia após dia e quando as aulas me permitiam,me ia apercebendo da estimulante complexidade que é governar um grande empreendimento. Assim,quando acabei o meu curso, já estava completamente rendido ao ramo hoteleiro.
Com a minha curiosidade satisfeita, perguntei-lhe:
- Como, então, se iniciou por cá?
– Muito simples. Mais uma vez, o padre foi o meu suporte.A ele tudo devo. Ele próprio fez questão de me assegurar a estadia em Lisboa, ficando eu, por sua iniciativa, alojado num Seminário.Assim, o que consegui amealhar,acrescidoa umas ajudas dele,permitiu-me tirar o curso,no qual fui um dos melhores alunos.
Naquela época,no Faial, o turismo era muito incipiente. Como deves imaginar, os Açores tinham,à data e tal como agora, um enorme potencial para atrair estrangeiros, era só uma questão de ser bem divulgado. Sabendo eu muito bem disso e com a ajuda do pai do Tiago –um homem que se movimentava como ninguém nesse ramo -, foi só preciso abrir os olhos as autoridades regionais. Depois de desbravar essa terra um tanto ou quanto dura, foi-me concedido um empréstimo,por via do governo regional, visando cativar gente de outros países. Ora, bem assessorado pelo senhor Miranda, pai do meu grande amigo Tiago, logo me destaquei na ilha. Depois, vieram as redes sociais, que deram o empurrão que faltava.
– Então vou fazer-lhe uma proposta – disse-lhe com convicção. O nosso contrato inicial terminou.Já tenho as terras limpas, alancha,no porto,já está concertada e, até os porcos, no curral,já estão gordos e prontos para serem mortos. E se você me arrendasse as terras?
Martim levantou a cabeça e, olhando-me fixamente, respondeu-me:
- Não precisas de me pagar renda, faz delas o que quiseres.
– Nada disso - zanguei-me. Sem contrato, nada feito – declarei.
– Falaste disto à Diana?
– Ainda não – respondi.
– Acho que ela vai gostar de saber dessa tua intensão - afirmou Martim.
Depois de acertar tudo com Martim o qual, ainda por cima, me emprestaria o dinheiro necessário para os primeiros investimentos, corri a contar a Diana. Fui efusivamente felicitado com vários beijos. Diana sentiu-se satisfeita por mim, o que me deu ainda mais força.
A partir desse dia em diante, desdobrei-me em contactos, contratei duas pessoas para me auxiliar no âmbito agrícola e, pouco a pouco, os terrenos foram-se enchendo de vacas;os currais, de porcos de criação que vendia para toda a ilha; algumas terras, com milho,sempre que era época para tal e depois de construir um grande estábulo onde guardava a forragem para os dias maus, vi,diantedos olhos,o meu sonho concretizado.Realizei todas estas coisas em cinco anos, tempo em que trabalhei com afinco para fazer daquela freguesia a mais verde e a mais cultivada da ilha.
Foram cinco anos em que saía pela matina e só chegava a casa pela noite. No entanto, ao sábado, nós os três e, às vezes com Lúcia, tínhamos sessões de leitura. Martim gostava que tanto eu como a sua filha lêssemos em voz alta,actividade que eu fazia com prazer redobrado. Uma vez de quinze em quinze dias, quando o mar estava manso, gostava de ir à pesca com eles. A lancha de madeira que eu, com a ajuda de um especialista na matéria, reconstruí e a qual coloquei o nome de Diana, ficou um brinco.Pintei-a de azul celeste, compramos um motor de fora de bordo de vinte cinco cavalos e, quando estava vento, içava a vela que comprei para o efeito.
Na época do calor, Diana gostava de passear junto da costa. Eram os momentos mais exuberantes que presenciei. O biquíniamarelocontrastava com a cor da sua pele, um moreno café com leite. Diana enchia-me de volúpia e, pouco a pouco, eu deixava o meu coração tomar conta dos meus pensamentos. Como poderia resistir sem me apaixonar perdidamente? Não, não o consegui. Embora gostássemos de nos tratar como bons amigos, os nossos olhos vinham enganando-nos. Quantas vezes, quantas vezes Diana me flagrou olhando-a com desejo... Quantas vezes, quantaseu vi o seu olhar fixo no meu corpo... Contudo, nós tardávamos em dar o próximo passo. Perdi a conta às noites em que sonhava com ela. Eram inúmeras as ocasiões em que, sem complexos de maior, me satisfazia sozinho, pensando no seu corpo. Nessa constrangedora indefinição decorreram cinco anos. Tempos alegres, porém frustrantes. Frustrantes, sobretudo porque o meu coração se prostrouantetoda a sua beleza e delicadeza. Tudo em Dianaera motivo de regozijo. Meu Deus, meu coração explodia de saudades quando não a via durante um dia, um só dia.
Quando Martim, por fim, resolveu procurar especialistas que atenuassem a sua dependência do álcool, fê-lo na companhia de Diana. As viagens ao Continente sucediam-se umas às outrase eu amargava de saudades. Nem mesmo os telefonemas atenuavam a falta que ela me fazia.Aliás, só o simples facto de ouvir a sua voz causava em mim o efeito contrário. “Quando voltam?, era a minha primeira pergunta.
Martim, depois de ser visto por um médico especialista, grande conhecedor da matéria, foi aconselhado a ir a Cuba, um país mais avançado nesse âmbito. Mais uma vez, Diana foi sua companhia, mais uma vez, fiquei de coração comprimido.
Não obstante todas as minhas dores de amor, quando tudo terminou, Martim começou a andar de moletas, uma evolução da doença que deixou a classe médica sem explicações.No entanto, alguns disseram-lheque se os tivesse procurado na altura em que ohaviam aconselhado, provavelmente,estaria a andar normalmente. Contudo, Martim, mesmo assim, acabou por ficar feliz, vendo no facto de largar a cadeira-de-rodas um suficientemotivo de júbilo.
Segundo o que Diana me segredou, seu pai confessou-lhe que, desde que eu surgi em suas vidas tudo havia mudado para melhor. Narrou-lhe que sua vida se havia tornado outra, havia voltado a vontade de viver, e tudo graças a mim. Ora, que melhor elogio poderia eu querer? Mas disse ainda queeu tinha um jeito especial de ver as coisas e que as palavras saídas pela minha boca tinham outra cor.
– Perto dele e conversando com ele, o mundo parece menos complicado – havia declarado Martim, a sua filha.
Não poderia havercomentário mais elogioso e lisonjeiro, embora eu o achasse um pouco exagerado. No entanto, o que lhes tentei dizer, mas não por palavras, foi que a minha grandiosa gratidão seria paga, não com bens materiais mas com lealdade, até ao meu último suspiro. Não haviamno dicionário palavras suficientes para poder expressar todo o meu reconhecimento.Eles vieram preencher em mim a parte destinada à família, fragmento fundamental, bocado imprescindível do quebra-cabeças que é a vida. Ora, se eu lhes dava ânimo, era porque o tinha, se lhes dava amor, era porque o meu coração o continha. Que melhor e mais pura exteriorização de amor haverá, que não a da família? Eu, por fim, descobriisso, e tudo graças a eles. Portanto, numa família, a pesar dos contratempos, das dificuldades, o amor - factor basilar -, tudo suporta. Foi essa a percepção que, felizmente, encontrei junto de Diana, de Martim e de Lúcia e com a qual me transformei numa cisterna de força, num poço de energia. Eram a minha família e por eles morreria.
Embora na maior parte do tempo não me lembrasse do velho Luís,por vezes, de tempos a tempos, recordava-me daquele moço taciturno, infeliz, revoltado contra Deus, enfim, um inútil.Se voltasse atrás, provavelmente mudaria certas coisas, mas tudo é tão indecifrável, tão inesperado que, nem sei bem se o faria.
Nos anos que passei na casa de Diana e de seu pai, uma coisa assimilei: juntos, enfrentamos melhor as adversidades. Foi com esse espírito que se foi passando o tempo.E eu, cada vez mais, sentia-me parte integrante da ilha, um homem satisfeito, porém, com um canto por preencher dentro do coração: o lugar destinado ao amor. Este, estava limpo, arrumado, todavia a dona do compartimento só me olhava, só me fascinava e nada de nossos lábios se colarem.
Guardar-me-ia para ela, tal e qual uma donzela se guardava para o seu homem, até à lua-de-mel. Era inevitável. Se não fosse Diana, mais nenhuma ocuparia o meu coração.Mas como havia de dizer-lhe que estava perdidamente apaixonado, se em todos os anos que passei ao seu lado me limitei a considerá-la uma grande amiga? Que pensaria ela de mim, quando lhe dissesse:
- Sabes, eu vejo-me inúmeras vezes a fazer amor contigo e seca-me a boca com o desejo que esse dia chegue depressa.
O que diriaela se lhe dissesse o que fantasio, todas as vezes em que a vejodespir-se para se banhar no porto? O certo é que o meu coração tem vindo a tornar-senum desobediente, facto tão inquietante como perturbador.
XVI.
Como sempre, em todos os verões, Diana era das guias turísticas mais solicitadas.A empresa não prescindia dos seus serviços. Não fora para ser guia que estudou, todavia Diana gostava de dar aconhecer a ilha.
Certo verão, no qual mais uma vez os turistas se encantavam com oFaial, onde o Vulcão dos Capelinhos era um dos pontos mais fascinantes, Diana informava os forasteiros que o mesmo havia entrado em erupção no ano de 1957, provocando o êxodo da população circundante, tendo rumado quase todos aos Estados Unidos e Canadá.
Enquanto o autocarro a abarrotar de turistas lentamente circulava pelas recém-asfaltadas estradas da ilha, Diana, junto do motorista, narrava a história da caça a baleia:
- Na segunda metade do século XIX, desenvolveu-se nos Açores a indústria baleeira. A caça foi muito importante na economia ena cultura das ilhas do Faial e do Pico.A matéria prima mais importante retirada deste animal era o óleo,para uso em máquinas einstrumentos,mas também se faziam sabonetes,perfumes,produtos para maquilhagem,farinhas e gorduras. Com o osso, faziam-se instrumentos,ferramentas epeçasartísticas. De repente, uma mão levantou-separa perguntar:
- Porque desapareceram os produtos derivados da baleia?
O autocarro estacionou no Miradouro da Espalamaca, monte sobranceiro à cidade, também chamado Miradouro da Santa.Os turistas, na sua maioria alemães, estavam estasiados com a magnificência das paisagens. As máquinas fotográficas desdobravam-se em cliques e Diana era o alvo de alguns moços do grupo. Vestia-se de forma simples, mas o seu corpo deslumbrante, o rosto sorridente e o longo cabelo negro cativavam alguns jovens.
Respondendo concretamente à pergunta do moço que lhe levantou a mão, explicou:
- A proliferaçãodos óleos minerais e produtos sintéticosderivados do petróleo veio substituir os óleos animais eas outras matérias primas que se retiravam deste mamífero,sendo que esta actividade económica decaiu com o passar dos anos.Ainda assim,a caça à baleia nas ilhas só terminou em1984,altura da sua proibiçãopelos tratados internacionais da IWC(InternationalWallingCommission).
- Como é que a caça a baleia veio parar aos Açores? – perguntou um turista asiático, sentado nas primeiras cadeiras do autocarro.
O inglês era a língua em que se entendiam e foi neste idioma que Diana respondeu ao amarelado homenzinho:
- A arte da baleação, nos Açores, usou das técnicas mais antigasque são conhecidas pelo homem. - Quanto à sua pergunta – Diana olhou-lhe com simpatia -,em botes de sete homens,ora a remos, ora à velae com arpõesde arremessoà mão, lançavam-seao mar, ao sinal do foguete que eraatirado pelo vigiaque, dos pontos altos das ilhas,passava o dia com os seus binóculos,embusca do respirar dos cetáceos.
Depois do miradouro e enquanto o autocarro circulava em marcha lenta, proporcionando a todos uma melhor observação da ilha e dos seus encantos, Diana prosseguia, esclarecendo o nipónico.
- Obote baleeiro açoriano é uma embarcaçãoadaptada a partir das canoas americanas que seguiam a bordo dos grandes navios baleeiros no século19.Este foi sendo desenvolvido ao longo dos anos de forma a torná-lo mais veloz e lesto,pois as freguesias competiam entre si.Mais baleias trancadas, significava mais dinheiro para comprar os produtos externos às ilhas,produtosessesque eram inacessíveisao comum dos agricultores desubsistência. Portanto, tudo indica que a caça à baleia, nos Açores, tem origem nos grandes navios aportados ao largo das ilhas, originários da América.
Com a excursão quase no epílogo, Diana rematou dizendo a todos,posicionada ao lado do motorista:
- OsAçores são um dos locais do mundo onde a tradição ea cultura baleeira persistem com algumorgulho.Embora actualmente não se tenha dado caça às baleias,grandeparte do património baleeiro temsido mantido erecuperado desde1997,para finsculturaismas também desportivos,pois as regatas, a remos e à vela, em bote baleeiro, são uma forte tradição.Nos últimos anos houve também um grande desenvolvimento da indústria do whallewatchinge,com este crescimento, tanto no número de empresas como de pessoas ligadas ao mar para estefim,o DOP(Departamento de Oceanografia e Pescas) da Universidade dos Açoresestá a criar alguns mecanismos para que todas as observações de Cetáceos com fins turísticos contribuam também para um maior saber científico acerca das movimentações dos animais na região.Foinas ilhas do Pico e do Faial que a caça à baleia revelou maior impacto, sendo também hoje nestas ilhas que se encontram as mais importantes regatas de botes baleeiros,assim como o maior número de empresas ligadas à observação dos grandes mamíferos que cruzam as águas dos Açores.
Diana havia feito a sua última excursão. Mesmo com a persistência do dono da agência, não estava disposta a abdicar da sua família em benefício de um mero prazer,pois não era pelo dinheiro que andava a mostrar a ilha aos turistas.
Felizmente, dinheiro não era problema para ela, pois tinha quanto bastasse. O que a atraía nas viagens que fazia ao redor da ilha, era a constante transformação do comércio local, visando sobretudo os turistas. A Câmara Municipal tinha perfeita consciênciade que o turismo era o futuro da ilha, visão esta que se vinha generalizando por todo o arquipélago.
XVII.
Passados cinco anos do momento em que havia terminado com Marco, o coração de Diana rendeu-se categoricamente a Luís. Não esperaria mais. Foram cinco longos anos reprimindo-se, tentando afastar da sua mente o que para si era óbvio, ou seja, que estava apaixonada. Os olhos de ambos falavam-se com uma cumplicidade evidente, todavia, as suas bocas diziam o contrário. O medo de se magoar, facto natural para quem saiu machucada de uma relação, estava definitivamente afastado. Não teria medo de se entregar de corpo e alma ao homem que lhe caiu do céu, qual estrela cadente que lhe havia surgido naquela noite.Luís, qual Dom Sebastião finalmente regressado, veio colorir sua vida, uma vida desbotada, de sentimentos sem sentido algum. Mas não era a luz que dele emanava,o que mais gostava nele. Luís atraía-a porque era benevolente, ponderado, e, sobretudo, um elo.Junto dele, a família fazia mais sentido. A espera de cinco anos, enfim,terminara. Sabia que os olhos azuis de Luís a desejavam, tal como o verde dos seus o amavam. Faria uma paleta de cores emque o azul e o verde seriam as cores do amor. Despir-se-ia de qualquer preconceito e entregar-se-ia sem tabus aos devaneios de ambos, matando a sede de cinco longos anos.
Decorria o mês de setembro, o verão anunciava a sua partidae Diana impacientava-se por chegar a casa. Marco já era passado,um passado que a vinha atormentando, mas para o qual não havia volta a dar.Ela amava profundamente outro homem. Assim e mesmo depois de Marco ter dito a Diana que havia feito uma cura e que se havia transformado num novo homem, ela assegurou-lhe que não havia possibilidade de regressar ao passado. Naturalmente, Marco não gostou disso, tendo inclusivamente chegado a dizer-lhe que tudo o que havia feito fora em benefício do amor de ambos, declaração esta que recebeu de volta uma gargalhada de Diana.
Mas Marco não acreditava que ela havia simplesmente deixado de o amar. Ele precisou de lhe dizer que ainda não a havia esquecido, e que seu futuro passava por se casar com ela.
– Esquece-me Marco, eu já não te amo, e talvez nunca te tenha amado.
Foram palavras duras, mas que não surtiram o efeito pretendido.
– Mas o que me disseste quando eu te telefonei?
- Foi só para não te magoar – respondeu-lhe.
Esse telefonema havia acontecido antes da plena recuperação de Marco. Depois de muitas tentativas, tinha conseguido chegar à fala com ela, altura em que Diana lhe havia dito que não tinha ninguém.Agora,Marco constatava que, afinal, o que ela queria dizer era que tinha pena dele! Então, assomaram as desconfianças, sentimento revelador de intranquilidade.
– Tens outro, não é? Quem é ele?
Esta conversa aconteceu precisamente no dia em que Diana havia efectuado a sua última excursão.Pediria a Luís para, daquele dia em diante, com ele trabalhar. No entanto, Marco não iria desistir e disse-lhe que descobriria o causador da sua separação.
– Tolo inexperiente – chamou-lhe Diana, quando se viu livre dele. – Culpa quem não conhece e esquece-se que ele mesmo foi o único culpado.
São as usuais narrativas dos orgulhosos e arrogantes, que tendem sempre a ir buscar um bode expiatório para os seus fracassos. Não assumem as suas falhas e culpam sempre terceiros. Era o caso de Marco, relativamente ao qual Diana, por fim e liberta do espartilho de o conhecer à demasiado tempo, constatou que nem tudo o que luze é ouro. Marco era bonito por fora mas continha um coração sujo, que só se importava consigo próprio. Ora, bendita a noite em que tudo aconteceu e na qual Deus lhe colocou no caminho o homem que era exactamente o inverso do seu ex.Em tudo isto ia refletindo Diana, enquanto conduzia em direção a casa.A intenção era abrir o seu coração a Luís.
XVIII.
Marco era filho único e fora sempre criado longe das dificuldades e de saber o quão dolorosa é uma vida de sacrifício. Isso foi-lhe mesmo dito por seu pai, quando constatou que ele vinha esbanjando rios de dinheiro com as suas farras.
O seu avô,ao falecer, deixou como herança uma farmácia, diversos prédios na Praia do Norte, uma dezena de casas alugadas e uma avultada conta no banco. O pai de Marco, agora a gerir a pequena fortuna que o seu falecido progenitor lhe deixara, sentia-se incapaz de pôr travão aos gastos do seu filho. Marco foi dos mais beneficiados no testamento e isso jogava a seu favor quando o seu pai o confrontava.
– Gasto só o que é meu – era a sua resposta.
Francisco, o farmacêutico,homem mais ou menos bem visto pelas gentes, ao contrário do seu filho, tinha prazer em trabalhar. Gostava de dizer que o trabalho dignificava.Francisco tinha de facto razão ao ter em tão boa conta este dito popular, masera um tanto ou quanto sovina. O seu carro tinha vinte anos, só comprava roupas pelo Natal e tudo o resto era para colocar numa conta bancária, aumentando ainda mais a sua fortuna.
Ora, Francisco foi casado com Lurdes, que pensava exatamente ao contrário,assemelhando-se deste modo ao seu filho. “O dinheiro é para ser gasto, não tem outro uso”, dizia ela. Contudo e como Lurdes não mexia uma palha, os gastos que fazia eram controlados pelo seu esposo, que lhe atribuía uma espécie de semanada. Portanto, mesmo que Lurdes pretendesse gastar mais, era logo barrada. Então, recorria a seu filho, que era o seu suporte nessa difícil tarefa.
Lurdes havia estado empregada, mas isso tinha sido já há muito tempo. Funcionária de um laboratório em que Francisco se abastecia, logo percebeu que ele era o passaporte para a boa vida. Cheia de atributos físicos, não lhe foi difícil fisgar o introvertido farmacêutico. Seis anos mais nova, mulher de olhos achinesados e de cor castanho claro, seios grandes e firmes, pernas roliças e provocantes; logo conquistou a atenção de Francisco.Ora, depois de tanta insinuaçãoe de alguns encostos involuntários, o homem tomou coragem e pediu-a em casamento. Para Francisco, não havia aquela coisa de namoro.Era logo direto ao pote. “Se queres, queres, se não queres, procura-se quem queira”, era o seu pensamento. Claro que Lurdes quis, não queria ela outra coisa. Mas quando se vai para um casamento tendo meramente em atenção o conforto, fica sempre algo por preencher. Lurdes, no entanto, colmatou bem esse pequeno pormenore Francisco levou com um par de cornos, conforme jamais pensou. Ora certo dia, o coitado, avisado por uma daquelas pessoas que estão sempre no sítio certo à hora indicada, flagrou a sua Lurdes esparramada em cima de um jovem que devia ter a idade do seu filho. Contudo, se alguém pensasse que ele faria banzé, estariamuito enganado. Depois de avistar os distraídos amantes, sentou-se na sala,à espera que acabassem os gemidos de prazer e, quando verificou que o coito havia terminado, surpreendeu-os, dizendo:
– Bem, agora que tudoacabou, permitam-me que fale. – Vou dirigir-meà sala e, quero que os dois, por favor, saiam pelas traseiras, se não se importarem.
Lurdes ainda tentou explicar o inexplicável, todavia recebeu não mais do que um olhar de nojo.
A partir desse triste incidente, Francisco nunca mais pensou em casamentos.Os seus relacionamentos limitam-se a trocas de favores. Existe sempre alguém que se venda por um jantar, por um vestido ou por outra coisa qualquer, constatou ele com alguma tristeza. Infelizmente para alguns, uma benesse para os desprovidos de sentimentos, existia de tudo e a todas as horas, bastando-lhe para tal abrir a páginado jornal e logo surgia de maneira dissimulada alguém a oferecer sexo em troca de dinheiro.Francisco sabia que a prostituição sempre existiu, contudo o endeusamento de quem vende o seu corpo sem retirar prazer, era um pouco demais para o seu entendimento.
“É o progresso”, diziam os mais novos. “São os tempos modernos”, comentavam alguns. Todavia, para Francisco, o simples facto de se vender o corpo ou mesmo de se juntar com alguém apenaspor causados seus bens patrimoniais, só por si, já era prostituição. No entanto, só lhe resta respeitar as diversas formas de ganhar dinheiro.
Mas os verdadeiros problemas do farmacêutico não eram as múltiplas formas de se prosperar, mas sim o seu filho. Marco vinha ficando cada vez mais rebelde, mais gastador e,segundo veio a saber, já nem ligava à mãe. Lurdes podia ter muitos defeitos, e se os tinha, mas enquanto esteve debaixo do mesmo teto que o seu filho, sempre foi uma mãe atenciosa. Marco preferiu ficar com o seu pai, mal soube que a sua mãe o havia traído. Mesmo gostando muito, ela não tinha perdão possível. Assim, a melhor forma de a castigar, foi apartar-se dela. Francisco não concordou quando Marco lhe disse que não a queria ver à frente.
– Todos nós cometemos erros.Uma coisa nada tem aver com a outra – disse-lhe.
Mas Marco levou a sua avante e nunca mais quis saber da mãe para nada. Lurdes ainda procurou Francisco mas, depois de conversarem, verificou que não havia sido ele a instigar o filho. Depois, bem, vieram as lamentações do costume: “Não tenho como me sustentar.Estou a sofrer amargamente por um erro que,por mais de um milhão de vezes, eu mesma me condenei,” etc.
Francisco, embora tivesse um ar austero, fechado, seu coração ainda a amava.Não podia ser de outra maneira. Tudo era muito recente. A mente dizia-lhe que ela era isto, aquilo, uma não sei o quê, uma pessoa nojenta, porém o seu coração ainda se derretia na presença dela. Tão estúpidos como indecifráveis são certos sentimentos, constatou Francisco. Contudo, a sociedade, com os seus padrões comportamentais segundo os quais quem é traído não pode aceitar de volta quem pisou o risco,reprimia para todo o sempre alguns sentimentos.Franciscoenglobava-se no grupo que pensava assim. Lurdes será sempre o seu amor, todavia nunca mais serão um casal. Mas como uma mãe é insubstituível, foi a ela que confessou a sua preocupação com Marco. Como era óbvio, Lurdes prontificou-se para ajudar, Francisco compadeceu-se e, desse dia em diante, ela teve direito a uma renda mensal.
Lurdes tinha saído do divórcio tal e qual havia entrado, ou seja, com uma mão à frente e outra atrás, pois Francisco, quando se casou, fez questão de colocar tudo em pratos limpos:
– Casamos sim, mas o que é meu, continua a ser só meu e, o que é teu, é só teu!
Lurdes teve de aceitar.Havia muito tempo para o fazer mudar de ideias, facto que nunca aconteceu. Depois do divórcio, martirizou-se por ter sido imprevidente.Nunca pensou que terminaria da forma que terminou. Se tivesse sido cautelosa, quiçá, um pouco perspicaz,teria feito um pé de meia,.Mas não o fez. No entanto e nem sabendo bem como, lá conseguiu que Francisco lhe atribuísse uma renda.
A pesar de ser gananciosa, Lurdes gostava do seu filho, e fez questão de o procurar,cumprindo o que combinara com Francisco. Todavia, Marco nem lhe deu ouvidos e a indiferença dele assustou-a. Quando voltou a falar com Francisco, Lurdes relatou que havia visto o seu filho deveras perturbado. Os dois resolveram entãoque teriam uma conversa com ele,mas acabou por não ser preciso.
Marco, depois de Diana ter acabado tudo e mantendo a esperança de ainda a ter de volta, resolveu, por fim, pedir ajuda. Mas a quem? Os seus amigos das noitadas estavam fora de questão, eram quase todos seus fantoches e pagos para o divertir. Sentiu-se muito mal quando verificou que, além de Diana, não tinha mais ninguém. Os telemóveis começaram a desligar-se,as desculpas a ser inventadas na hora.Uma dura realidade, ficando ele com a perceçãode que a sua vida havia sido uma mentira. Então, como sempre acontece, Marco recorreu à pessoa que mais criticava, à que era alvo de todos os seus cáusticos comentários.Mas quando precisou, lá estava ela para lhe dar um abraço. Foi isso mesmo que sucedeu.
Francisco verificou que o seu filho, quando entrou em casa, permaneceu junto da porta da sala, olhando-o. O seu rosto era triste e as lágrimas escorriam abundantemente. Depois de alguns minutos a fingir que estava a ver TV, Francisco levantou-se e dirigiu-se a ele, que continuava cabisbaixo:
– Que se passa filho?
Marco não falou. Francisco nunca o avia visto tão triste, nem em menino. Colocou a mão no seu ombro cadavérico, perguntando-lhe:
- Que se passa contigo, moço? – Eu sinto que tens algo para me dizer – acrescentou.
Francisco conduziu-o até ao sofá e fez com que se sentasse.
– O que quer que seja, quero que saibas que eu não deixei de ser teu pai, nem deixei de gostar de ti. – Vai, agora diz o que te atormenta – aditou.
Marco resolveu, por fim, tudo contar.
– Pai, eu sou toxicodependente.
Francisco não articulou palavra. Marco olhou para cima e ele mantinha-se de pé, olhando-o.
– Ó rapaz, que merda de vida é a tua? – disse-lhe, de lágrimas nos olhos. – Precisas que alguém cuide de ti, filho? – acrescentou.
– Não me vais tratar mal?
– E porque o faria?
Marco estava abismado.
– Não sei, ouvi-te sempre a criticar essas coisas…
-Mas será que estava errado?
– Não, tinhas razão em tudo o que falavas – declarou Marco.
– Levanta-te filho.
Marco fez o que o seu pai lhe pediu.
– Olha bem para mim – pediu-lhe.– O que vês?
– Vejo o meu pai a chorar – constatou.
– Não, o que vês é um pai cheio de remorsos – declarou. – Remorsos por te ter abandonado e por não ter tido a sensibilidade de te acompanhar na fase em que mais precisavas.
– Isso quer dizer que posso contar contigo?
Francisco deu um sentido abraço ao seu filho.
– Sabes tão bem… – murmurou –, amanhã mesmo, vamos tratar da tua cura - disse-lhe.
– Ó pai, desculpa-me por tudo.
– Vamos deixar-nos agora de lamechices.Urgente é tratares-te – declarou Francisco.
Marco conheceu naquele momento um Francisco que nunca julgou existir.Tanto quanto se lembrava, ele nunca lhe dera um abraço, nem sequerhavia brincado consigo. A sua vida era do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Quando Marco saía para a escola, já Francisco estava a caminho do serviço e Quando regressava, ele quase sempre estava a dormir ou ao telemóvel com fornecedores. Portanto, nunca havia tempo para o filho, limitando-se Marco a estar com a mãe e com alguns amigos. Depois, veio a adolescência, os primeiros cigarros, a sua primeira experiência sexual e, nessa altura,já a presença do seu pai era menos pretendida, por motivos óbvios.Como o dinheiro nunca foi um problema, os seus pais pensavam que tudo se resolveria, bastando colocar-lhe umas notas no bolso para que a ausência fosse menos notada. Foram precisos muitos anos para verificarque existem coisas que o dinheiro não substitui, ou seja, a presença dos pais nos momentos mais importantes do crescimento de um filho. No entanto, como dizia o povo, e com razão:“mais vale tarde do que nunca!”
Marco, com a ajuda do seu progenitor, tratou-se durante dois anos numa clínica especializada. Quando regressou, cheio de renovados sonhos, pensou que Diana o recebesse de braços abertos e que a discussão entre ambostinha sido apenas para que ele arrepiasse caminho, tal como ela já tinha feito muitas vezes. Nada mais errado! Era evidente no olhar de Diana que o sentimento por ele havia findado. Mas não desistiria dela! Não iria permitir que alguém, que nenhum outro homem ficasse com a sua Diana, que conhecia desde menina.
Ainda bem presente na memória de Marco estavam os anos em que juntos estudaram, desde a quarta classe até ao final do ensino secundário. Lembrava-se claramente dos laçarotes que Diana usava quando ainda era mocinha ingénua e dos momentos de nervosismo, quando esperava por ela à porta da escola, enquanto aguardava que o carro da sua mãe surgisse à esquina. No que concerne aos estudos, Diana era uma aluna exemplar. Ele, nem por isso. Vieram-lhe à mente os planos que faziam para o futuro, tendo sempre no horizonte o casamento e uma rebanhada de filhos, como era o desejo de Diana.
Teve tantas oportunidades de mostrar a Diana que poderia ter sido um homem às direitas…, mas deixou-se levar pelo mais fácil, pelo mundo exagerado das festas, das drogas, dos fugazes momentos de satisfação. A frustração começou a consumi-lo, sentia raiva só de imaginar Diana nos braços de outro homem.
XIX.
A leste do padecimento do seu ex-namorado, no mesmo dia em que Marco lhe havia dito que “drogas, nunca mais!” e que estava disposto a viver uma vida ao lado dela, Diana tratou de dizer a Luís que o amava profundamente. O momento tão aguardado por ambos aconteceu quando ela o procurou no armazém, depois deter sido informada do seu paradeiro. Era de tarde, quase noite.Depois de ter recusado a sua permanência na agência e de ter dito a Marco que não havia volta a dar, a urgência de se declarar falava mais alto.
Tudo aconteceu quando eu estava no interior do armazém, a arrumarutensíliosagrículas. Lembro-me daquela noite como se fosse hoje. Eu tinha chegado dos campos, onde havia estado todo o dia e tinha acabado de me despedir dos meus colaboradores. Diana chegou, qual furtivo ladrão, surpreendendo-me.
– Mas que surpresa!
Ela estava vestida com uma saia curta preta, usava na parte de cima uma camiseta de alças que permitia distinguir os seus grandiosos seios, inspiradores de tanta fantasia... Lembro-me que Diana me tapou os olhos com as suas mãos e, nas minhas costas, perguntou:
- Quem é?
Seus seios tocavam-me levemente e suas mãos pequenas e de pele fina, como me acariciavam…Tudo se proporcionou para que acontecesse o que aconteceu no momento seguinte. Coloquei as minhas mãos sobre as dela e, virando-me de sopetão, fiquei com o meu corpo colado aodela. Os nossos olhos pararam, as nossas bocas emudeceram. Deixei minhas mãos deslizarem por suas costas enquanto nossos lábios se tocaram num delicado beijo de cumprimento. Então, em murmúrio, disse-lhe:
- Há tanto tempo que aguardo por este momento...
– Eu quero ser tua - respondeu-me em sussurro.
Peguei-lhe na mão e, fechando a grande porta, conduzi-a até aos fardos de palha, nos fundos do armazém. Voltei a beijá-la, desta vez com avidez, enquanto despia a sua minúscula camiseta. As suas mãos travessas desapertaram-me o cinto e, logo de seguida, desabotoou as minhas calças. Não haviam palavras, só gemidos de prazer saíam das nossas bocas. Podia considerar-me o homem mais realizado do mundo, pois a minha primeira vez foi com a mulher que amava, e a única. Foram horas de magia.Os nossos corpos, ávidos um do outro, entregaram-se sem tabus, numa profusão de aromas e posições. Descarreguei no seu ventre todos os anos de frustração por não a poder ter, sujei-a de amor, provei o mais doce néctar.Nessa mesma noite, para regozijo de Martim, fiz questão de a pedir em noivado.
XX.
- Boa tarde aos pombinhos!
Marco surgiu de repente, quando eu e Diana tomávamos um café na esplanada do Internacional. Estávamos no pico do verão, não se havia completado uma semana desde o meu pedido de casamento a Diana.
Foram dois aprazíveis anos de um namoro apaixonante, onde milhares de vezes agradeci a dádiva dos céus. Diana era mais do que algum dia eu havia sonhado, por todas as razões e mais uma. Linda de morrer, sensível quanto baste, alegre na justa medida, perspicaz quase sempre, em suma, a mulher da minha vida, a primeira e a última.
Marco surpreendeu-nos no preciso momento em que trocávamos um beijo.
– Era assim que não tinhas ninguém – dirigiu-se a Diana.
Seus olhos deitavam chispas. Diana ficou embaraçada.Era patente o seu desconforto.
– Só te disse aquilo para te tranquilizar – retrucou.
Ouvi Marco dar uma gargalhada.
– Posso saber o que se passa aqui? – intrometi-me.
– Põe-te no teu lugar, rapazote – disse-me, apontando-me o dedo indicador.
– É melhor eu falar com ele sozinha – disse-me Diana, olhando-me um pouco assustada.
– Não me digas que me ocultaste alguma coisa.
– Olha o anjinho – escarneceu Marco.
Apercebi-me que Diana me havia escondido algo e não gostei disso. Não fora isso que havíamos prometido um ao outro: a verdade acima de tudo, custe o que custar. Agora, estava perante algo que não sabia bem o que era, mas de uma coisa eu tinha a certeza: Diana mentira-me.
Marco não arredou pé, sempre de olhar trocista para mim. Podia muito bem ter-me levantado paralhe daruns cascudos mas quando me ergui da mesa foi para pagar a conta e desaparecer.
– Era tudo muito bonito – pensei,quando de regresso a casa -, era muita sorte junta – reflecti: – Uma mulher deslumbrante e que dizia que me amava, um negócio que ia de vento em poupa, um sogro maravilhoso, em fim, o paraíso na terra! – Estúpido! Como foste acreditar nas pessoas? - condenei-medurante toda a viajem.
Quando cheguei a casa, troquei de roupa com ligeireza e saí para as terras,juntando-me ao gado, nos pastos. Martim ainda me perguntou qual era a pressa e onde estava Diana, mas nem lhe respondi. Meu intuito era fugir para um local onde pudesse tranquilamente pensar nos últimos acontecimentos. Podia estar a agir precipitadamente, lá isso podia, mas mesmo assim precisava de estar só. Podia ser um patético romântico, lá isso podia, mas o amor que sentia por Diana sobrelevava-se a tudo o que era razoável. Eu amava demais aquela mulher.
Tivemos dois anos de verdadeiro deslumbre, uma cumplicidade única. Não seria uma pequena mentira que abalaria os alicerces do meu amor mas, a matéria corrosiva chamada de mentira, se não fosse aniquilada, deitaria por terra toda a estrutura do castelo que havíamos construído.
Depois de ter estado a rodopiarpela ilha e de ter aflorado o velho Luís da Casa do Gaiato, no finalzinho, concluí que a vida não é uma história de William Shakespear.
– Onde estiveste?
Diana aguardava-me na sala.
– Por aí – disse-lhe, virando-lhe as costas e seguindo para o meu quarto.
Ela seguiu-me.
– Não te importas? – disse-lhe, sentado na beira da cama.
– Luís, eu amo-te, não sabes disso?
– Quem ama não mente – retruquei.
– Quem mente tem alguma razão, não achas?
Olhei para seu rosto. Era notório que tinha estado a chorar.
– Quais os fundamentos que levam à necessidade de mentir a quem se diz amar?
– Porque se ama simplesmente – replicou.
– Que estranha forma de amar – disse-lhe.
– Posso sentar-me? – pediu-me.
– Claro! – disse-lhe afastando-me um pouco.
Diana pegou nas minhas mãos e levou-as à boca, dizendo-me:
- Olha para mim, por favor.
Fiz o que me pediu.
– Que vês?
– Vejo a mulher que amo, a única mulher que amei e que sempre vou amar.
– Então, queres dizer que sabes que eu sou também humana e que cometo erros como o comum dos mortais?
– Há erros que só se cometem premeditadamente.
– Eu não sou assim, Luís – disse-me Diana, deixando as suas lágrimas molharem a minha mão,que estava encostada a sua boca. – Peço-te perdão pela mentira, mas só o fiz para não magoar quem ainda me amava.
– E o que queria ele?
– Não fui a mais correta com ele, também,quando lhe disse ao telefone que não tinha ninguém.Dei-lhe, mesmo que de modo involuntário, a esperança de reatar com ele.Juro que não foi esse o meu intuito, Luís – disse-me Diana, deitando a sua face na minha mão.
A sua angústia deixou-me triste.
- Ó meu amor, não fiques assim.Claro que te perdoo!Desculpa ser tão rigoroso – disse-lhe, abraçando-me a ela. – Sou mesmo um tolo – declarei. – Quem sou eu para exigir seja o que for..., como posso ser tão radical, ao ponto de pensar que tu não erras também? –afirmei.– Vamos esquecer-nos deste incidente – disse-lhe abraçando-me a ela.
Diana beijou-me sofregamente.
– Eu pensei que me ias largar – confessou, de cabeça no meu ombro.
– Só a morte me separará de ti – disse-lhe, afagando o seu lindo cabelo negro.
Nessa noite, fortificados pela conversa, reavivados pela constatação de um facto, ou seja, o de que todos temos as nossas fragilidades, adormecemos abraçados.
Diana contou-me a conversa que havia tido com Marco.O rapaz estava decidido a fazer-nos a vida negra. Diana disse-me mais:
- Ele alertou-me que iria fazer-te mal, para te pores à tabela.
– Não te preocupes – disse-lhe –, de hoje em diante, não sais de perto de mim – afirmei.
– Mas não saio mesmo! Pois é verdade – rimo-nos os dois.
XXI.
- Aquela puta nunca será feliz ao lado daquele merda – barafustava Marco.
Dois anos a pensar no momento em que lhe pediria perdão por tudo, para quê?
Francisco, quando chegou do trabalho, verificou que Marco estava sentado no bar da sala, com algumas garrafas vazias à sua frente.
– Quem faz anos? – tentou gracejar, uma virtude que nunca teve.
Marco não lhe respondeu.
– Como está o negócio? – tentou mais uma vez Francisco, porém, mais uma vez sem resposta.– A coisa é séria – murmurou, aproximando-se de seu filho.
O cheiro a fumo tresandava, na sala havia uma densa nuvem que perturbava a visão e dificultava a respiração. Aquele havia sido o dia, desde que Marco regressou da desintoxicação,em que o viu mais abatido.
– Não me queres contar o que se passou?
Marco olhou-o, dizendo-lhe:
- Porque não me disseste que ela tinha outro?
– De que é que estás a falar, filho?
– Não se faça de desentendido – gritou-lhe Marco.– Daquela puta chamada de Diana!
- Ah, isso...Eu sabia que chegaria o dia… – disse-lhe seu pai, encaminhando-se para o sofá.
Descalçou os sapatos e, suspirando de alívio, explicou:
- Sabes filho, nós fazemos coisas e temos atitudes que vão muitas vezes contra os nossos princípios, mas são úteis, por vezes. No caso de Diana, foi a atitude que achei ser a mais correta.Tu estavas em plena recuperação. Luís também é um bom moço – disse-lhe seu pai.
– Como, tu ainda defendes aquele canalha?
Marco ficou enfurecido. Colocou-se em frente ao seu pai e perguntou-lhe:
- É melhor do que eu, não é?
Francisco baixou a cabeça e respondeu:
- Bem melhor do que o Marco que havia antes da cura.
– Não acredito – barafustou Marco.– Quem é aquele rapaz?
– Um exda Casa do Gaiato mas que venceu na vida – declarou Francisco.
– Casa do Gaiato?Terei eu ouvido bem? – resmungou Marco. – Não acredito! A doutora Diana namora com um exda Casa do Gaiato!
Marco desatou a gargalhada.
– Isto merece um brinde – disse, enchendo mais um copo junto do bar.– Festeje comigo pai – gracejou.
– Não filho, não quero - murmurou Francisco, observando o seu filho transtornado. - Por favor, não abuses do álcool - aconselhou-o.
– Tens medo que eu me drogue de novo, pai?
– Tenho, filho – disse-lhe seu pai, olhando-o.
Marco sabia muito bem que o álcool é primo, em primeiro grau, das drogas.Éo trampolim para as mais pesadas.Começa quase sempre assim.
- Não te preocupes – declarou Marco, pousando a garrafa que tinha na mão.– Eu não volto ao que já fui – acrescentou, para descanso do seu pai.
– Ainda bem rapaz – respondeu Francisco. – Olha que a vida só nos dá uma oportunidade de bandeja.
– Enão existemoutras? – perguntou-lhe Marco.
– As outras…, bem… as outras só Deus sabe.
– Que enigmático – comentou Marco.
– Não se trata aqui de ser ou não misterioso mas sim realista.– Quando se desaproveita a única oportunidade que a vida nos oferece, as outras têm de ser conseguidas a troco de algo. Perdeste Diana, mas terás certamente a oportunidade de seres novamente feliz.
– Como tens tanta certeza? – perguntou-lhe.
– Basta olhares para mim – declarou.
– Tu és feliz?
Francisco olhou para o seu filho, esboçou um ligeiro sorriso e declarou:
- Quase.
– O que te falta para seres totalmente feliz?
– Que tu o sejas!
Marco ficou pensativo. O seu pai não era homem de muitas exteriorizações, não conhecia esse seu lado.
– Bem, estás a falar como um poeta – disse-lhe Marco. - A vida não é tão lírica – acrescentou o jovem.
– Aí é que te enganas – afirmou Francisco.– Depende do modo como a enfrentamos.
– Não me digas que conseguimos levar a vida com poesia.
– Depende da poesia – retrucou o seu pai. – Se bem te lembras, não sei se sabes, existe poesia mordaz, erótica, sofrida, de tudo um pouco...–Resta-nos escrever a nossa própria poesia - disse-lhe seu pai.
Marco estava estupefacto. Francisco Sousa da Silva, homem taciturno, “Tio Patinhas”, sovina, distante, revelava-se um trovador!Seria mesmo o seu pai, ou um clone de Florbela Espanca?Não fora a sua careca, a sua barriga um pouco saliente e o bigode farfalhudo, diria estar na presença do espírito da poetiza.
– Já que estás tão inspirado – disse-lhe Marco, sentando-se ao seu lado -,sabes a resposta a esta pergunta: como faço para tirar esta dor do peito?
Francisco pegou nos sapatos que havia descalçado, olhou para Marco e respondeu:
- As dores de amor, tristeza, saudades, todas elas, só passam com o tempo.Não existe remédio milagroso.- Posso dizer-teainda que há mágoas que nunca perecem.Simplesmente, adormecem. Por vezes, levamos uma vida para descobrir o quenos aproximava mais danossa companheira. Existem muitos que confundem amor com sexo.Outros,confundem companheirismo com paixão. Leva-se uma vida inteira ao lado de uma mulher ou vice-versa, só porque nos falta a coragem para dizer:“desculpa, mas… sabes, eu estava enganado”.
- Mas eu amo Diana – disse-lhe Marco, atento à explicação de seu pai.
– Tens a certeza? O que queres dizer com isso?
Francisco, de sapatos nas mãos, olhou bem para o seu filho e, chegando-se perto dele, disse-lhe:
- O amor é condicionado por vários factores. Não se pode dizer que se ama quando se faz sofrer. O amor é tolerante, compreensivo, benevolente, alegre e nunca egoísta! Se não tens estas referências, digo-te que, filho, por muito que me custe, tu não sabes o que é amar.Se te mantiveres perseverante e íntegro, Tenho a certeza que, um dia mais tarde, encontrarás o verdadeiro amor. Pensa no que te disse, filho – falou-lhe Francisco, encaminhando-se para os seus cómodos.
Marco não conhecia aquelas virtudes do seu pai. Pensativo,refletiu no que ele lhe dissera.
Colocando o cotovelo na perna e segurando o queixo, mesmo um poucotoldado, meditou por muito tempo, chegando a uma conclusão:
- Não, eu não vou desistir de Diana!Não concebia a possibilidade de se ver ao lado de outra. Ela nasceu para mim e minha será – rematou, antes de se deitar.
Sobre a cama,refletiusobre o quão perto esteve de se meter novamente na droga.
– Não, droga, nunca mais!
Quando viu Diana a ser beijada poraquele rapaz, seu sangue fervilhou de tal forma que só lhe apeteceumatá-la. Depois, bem depois, surgiram os pensamentos autodestrutivos. Entre tantos outros, a droga assomou commais veemência. Com tanta desilusão, com um enorme desgosto por ver Diana nos braços de outro, imaginando-a a fazer amor sem ser consigo, tudo isso quase o levou a cair de novo nas malhas daquela maldita.Ainda bem que travou o ímpeto a tempo.
No dia seguinte, Marco retomouo negócio que fez questão de montar quando do seuregresso do continente. Tratava-se de uma agência de turismo, um ramo em pleno crescimento no arquipélago. Mas o dia não estava a correr-lhe muito bem.Já não estava acostumado a beber em demasia.A sua cabeça parecia querer explodir. Os malditos cafés que havia bebido não fizeram o efeito desejado mas,mesmo assim, continuou a trabalhar.
O dia anterior tinha sido importante para ele. Além de descobrir um novo Francisco, tinha ainda magicado a melhor forma de pregar um susto ao “Rambo” que estava com Diana.
– Ela pode não ficar comigo mas vai amargar um pouco – concluiu o jovem, contrariamente a tudo o que o seu pai lhe aconselhara.– Não temos de dar algo em troca? Então, prepara-te, monte de músculos – pensou Marco, esboçando um sorriso.
Marco, contrariamente ao que o seu pai lhe propusera, não aceitava perder Diana para um borra-botas qualquer.O seu lado sombrio e todo o seu desprezo, assomaram.Não importava mais nada do que fazer sofrer Diana.Ela teria de sofrer na pele toda a angústia que Marco vinha sentindo. Como o executaria, ainda não sabia mas,como quem tem dinheiro tem amigos…- constatou, sorrindo novamente.
XXII.
Faltavam duas semanas para o nosso casamento e, mais uma vez, a vida quis surpreender-nos. Eu estava com Diana e meu sogro a conversar na sala depois do jantar, como sempre fizemos, quando o telefone de casa tocou. Diana foi atender. Enquanto eu e Martim falávamos de política, designadamente, do braço armado do partido comunista e dos sindicatos afetosao partido, segundo ele, ratos almiscarados, cobrasvenenosas que instigam os mais ingénuos para uma causa utópica; Diana demorava-se ao telefone.
– Precisamos de sindicatos que façam pressão junto das entidades patronais para se cumprirem os contratos - contrapus.
Martim não era de direita, eu já sabia, mas seu doentio desconforto quando se falava do partido comunista era bem patente no aumentar dos decibéis.
– Quando lhes convém, fecham-se em copas.Quando não lhes convém, tratam de minar tudo. É para isso que serve o seu braço armado! Infiltram-se nas empresas, vendem ilusões e os tolos dos trabalhadores, além de descontarem para lhes encher os cus, vão na cantilena!
Aquela conversa tantas vezes discutida,, não daria em nada mas surgia sempre, mal se falava em política.
– E se mudarmos para os negócios? – tentei variar um pouco.
Ele concordou dizendo:
- Ainda bem.Da próxima vez não me fales daqueles…
- Olhe a linguagem, sogro – adverti-o.
Entretidos na conversa, nem demos pelo regresso de Diana. Para nossa surpresa, demos por ela a chorar junto da entrada da sala. Levantei-me ligeiro e, chegando-me junto dela, perguntei-lhe:
- Que se passa, amor?
– Era a minha mãe– declarou, visivelmente emocionada.
– Albertina?
Martim veio para perto da sua filha e repetiu:
- Albertina ligou-te?
- Sim, pai – afirmou Diana.
– Que queria ela?
– Queria ver-me.
– Nunca! Tu não vais encontrar-te com aquela…, aquela…
- Tenha calma, sogro – intrometi-me.
Martim estava notoriamente nervoso.
– Eu preciso de uma bebida – disse, montando-se nas moletas e apressando-se em direçãoao bar.
– Nada disso – barafustei.
– Sai da frente, Luís – disse-me quando me coloquei entre ele e a entrada do bar.
– Você sabe tão bem como eu que a maldita bebida não resolve, não acalma, só prejudica!
Martim já não bebia como dantes.Só levava o copo a boca em ocasiões muito especiais. Desde que largou a cadeira de rodas, com a nossa insistência,achou por bem só beber em festas. O problema era que ele queria fazer uma festa todos os dias.
- Tudo bem – respondeu-me. Tens razão – acrescentou, voltando para junto de Diana.
Diana já me havia revelado que gostaria de ver de novo a sua mãe. Eu estava a par da sua vontade.Mas ela sabia que se realizasse esse seu desejo, magoaria profundamente seu pai.
Albertina já tinha tido o perdão da sua filha.
– Mais do que o simples acto de perdoar, é importante sabera quem. Diana sempre amou a sua mãe.A sua ausência era por demais notada. Foi com alguma naturalidade que emergiu o sentimento mais nobre, porém o mais difícil.
– Perdoa-se por tudo e por nada, desculpa-se tudo mas, na verdade, palavras, leva-as o vento.
Não era o caso de Diana, que a perdoou intimamente.O que eu não sabia era que ela ea sua mãe já se contactavam desde há meses. Mas isso não me impediu de dizer ao meu sogro o que pensava sobre o assunto. era muito egoísmo da parte dele.
Embora eu tivesse uma enorme amizade, uma gratidão sem limites por Martim, o meu estimado sogro estava a proceder mal.
- Oiça lá sogro - disse-lhe. - Naturalmente não o faria se não tivesse a confiança necessária para tal. - Acho que é dum enorme egocentrismo impor sua vontade. Que culpa tem Diana, Responda-me se souber.
Ele olhou-me e, mesmo não gostando muito da minha frontalidade, respondeu-me:
- Que exemplo dará ela à sua filha?
Aquela resposta deu-me vontade de rir.Porém, ele disse-me aquilo com tanta convicção que achei melhor não o fazer.No entanto, não o deixei sem resposta, mesmo sabendo de antemão que o poderia magoar:
- Que exemplo você deu? Foi com uma garrafa na mão, ou lançando-se contra umas árvores? A sua filha não o abandonou, pois não?Acho que está na hora de você pensar menos em si, e olhar um pouco para a sua filha.Ela ama sua mãe!Se você gosta da sua filha, certamente quererá vê-la feliz.Estou errado?
- Ela magoou-me muito – declarou, de voz embargada.
– Mas que egoísta, sogro!E Diana, não interessa nada, não é?Você pensa que o simples facto da sua ex-mulher o ter magoado é motivo suficiente para uma filha deixar de amar uma mãe? Onde está a sua inteligência sogro?
Martim não contra-argumentou.
– Seja bondoso consigo mesmo – rematei, colocando-me ao lado de Diana.
Uns momentos depois, Martim juntou-se a nós.
– Vocês telefonam-se há muito?
- Que importa isso agora? – intrometi-me.
– Desde há algum tempo – afirmou Diana.
Reparei que Martim não estava completamente descansado. Então, resolvi revelar uma situação que havia ocultado de todos:
- Que faz você com as fotos de Albertina?
Martim olhou-me com espanto.
– Quem te disse isso, rapaz?
-Pai – murmurou Diana, olhando-o.
– Peço-lhe desde já desculpa pelo atrevimento de o ter visto, mas não me diga que minto – declarei.- Já há muitas noites vinha notando barulho e,numadelas, fiz questão de averiguar donde vinha. Qual não foi meu espanto quando verifiquei que os sons vinham da biblioteca! Abri lentamente a porta, e dei de caras com você, debruçado sobre algumas fotos.
– Como podes dizer que eram de Albertina?
Vi que o rosto de Martim se desanuviou, porém, por poucos segundos.
– Sei que chorava por ela porque, enquanto chorava, murmurava seu nome, tão simplesmente.
Meu sogro ficou visivelmente perturbado. Por seu lado, Diana, vendo que eu escondi tão importante facto, perguntou-me:
- Luís, porque me escondeste tal coisa?
Pergunta a que lhe respondi:
- Lembras-te do dia em que me disseste que a mentira por amor por vezes é inevitável?
Ela conformou-se.Um breve olhar foi conclusivo. De seguida, agachou-se junto de seu pai,o qual se havia mantido cabisbaixo desde que lhe tinha descoberto o segredo.
– Pai, qual é o mal de ainda amares a mãe? Perdoa-a, por favor – disse-lhe, beijando-o.
– Ela fez-me tanto mal… – suspirou, de voz embargada.
Foi a altura de eu intervir novamente. Peguei na mão dele e disse-lhe:
- Olhe sogro, eu, sem a vossa compreensão, sem a vossa ajuda, não era o que sou,e tudo isto porque vocês não olharam para o que fiz, para donde vinha ou mesmo para que intensões teria.
– O teu caso é diferente – respondeu-me Martim.
– Vocês não me perdoaram?
Martim baixou a cabeça murmurando:
- Coisa de pouca monta.
– O perdão só se usa em casos de pouca monta, sogro?
Dianaconduziu cautelosamente o seu pai até ao sofá.
– Por favor, pai, perdoaa mãe – suplicou-lhe, deitando a cabeça no seu colo.
– Há tanta coisa por esclarecer… – declarou.
– Ora aí está – exclamei –, nada melhor do que aclarar tudo! Acho que você ainda ama a sua ex-esposa.
Martim ficou calado, limitando-se a alizar o longo cabelo de Diana.
– Bem, quem cala consente – rematei.
E para que tudo ficasse bem explicado, disse:
- O amor verdadeiro não se lastima por fisionomias, culturas, traições, etc. Esse amor que sente pela sua mulher é verdadeiro, merece outra oportunidade – acrescentei.
– Eu sou um aleijado – respondeu-me.
– Você é um homem, acima de tudo – disse-lhe.
– Ela queria tanto falar-nos… – disse Diana, erguendo a cabeça.– E eu sinto tanto a sua falta – aditou.
– Onde está ela agora?
– Está hospedada na Residencial S. Francisco – informou-o Diana.
Ficamos na espectativa.
– Se não se importarem, preciso pensar – disse-nos.
Ajudei Diana a erguer-se.
– Que tal darmos uma volta? – perguntei-lhe. – Precisas de espairecer – adicionei.
No local que também havia elegido como meu, junto do farol, abraçados; desejamos intimamente que ele cedesse ao orgulho.Era evidente que nunca ahavia esquecido.
- Ele vai ceder –disse a Diana, afagando o seu longo cabelo.
– Achas?
– Tenho a certeza – retruquei.
– Deus te oiça – disse-me Diana, deitando a cabeça no meu ombro.
No dia seguinte, Martim acordou-nos aos gritos.Corremos para o seu quarto, demos com ele tombado.Nas mãos, tinha um par de calças.Diana gritou de susto.Passado o primeiro impacto, reparámos que Martim estava a tentar vestir-se, tarefaessa que fazia sempre com a ajuda da sua filha.
– Não sei vestir-me sozinho – barafustou.
Aquela cena, se não fosse um pouco dramática, era digna de uma comédia.
– Quem vai querer um homem que não sabe despir-se?
– Ó pai - riu-se Diana. – Isso quer dizer que vais falar com a mãe?
– Agora já não sei – declarou frustrado.
– Eu ajudo-te – disse-lhe Diana.
XXIII.
Albertina era uma mulher muito bonita. Quando a vicruzar a porta de entrada, fiquei boquiaberto com tanta semelhança com Diana. Tinha os mesmos olhos verdes, o cabelo era parecido,um tanto ou quanto mais curto, e movia-se com graciosidade.Tinha um longo vestido azul marinho, nos pés, uns sapatos abertos pretos e no pescoço divisava-se um fio de ouro com uma pequena cruz.
Os olhos de Diana e de sua mãe entrelaçaram-se e Albertina sorriu ligeiramente. Martim baixou a cabeça.O ambiente era de cortar à faca.O silêncio era constrangedor. Martim permaneceu cabisbaixo e Diana sem reacção.Tive de intervir:
– Bem, dona Albertina – disse-lhe, tentando desanuviar o clima –, eu chamo-me Luís e sou…
- Tu és o noivo de Diana.Ela falou-me de ti – antecipou-se.
– Ah sim?
- E só me falou bem!
- Claro – retruquei.
Então Diana entendeu meter-se:
– Convencido - gracejou.
– Filha, não me dás um abraço?
Diana olhou-me.Eu sorri-lhe, perguntando-lhe:
- Amor, este é o momento que tanto aguardavas, não é?
Estas foram as palavras que esperava. Ambas se abraçaram fervorosamente, com Albertinadizendo-lhe:
- Perdoa-me filha, eu fui uma má mãe.
– Claro que sim, mãe – choramingou Diana no seu ombro.
Depois veio o momento mais embaraçoso. Pedi a Diana que nos afastássemos.Haveria certamente muito que esclarecer, muitospedidos de desculpa, era o momento dos seus pais.
– Vamos amor? – disse a Diana, conduzindo-a pela mão.
– Achas que eles vão fazer as pazes?
– Se quiseres muito, acontece – disse-lhe, abrindo a porta de saída.
Entretanto, o casal desavindo adiava o diálogo. A conversa que haviam de ter tidoestava atrasada sete anos. Albertina via-se de novo perante o homem que muito amou e que um dia acabou por perder,tendo a estúpida carência e subterfúgio rotineiro levado aque cedesse aos devaneios sexuais do jovem com o qual acabara por se envolver.
Sandro era bonito, musculado e cheio de energia. Ela era triste, carente, uma professora mal-amada que seu marido preteriu, escolhendo o trabalho. Sandro não passava dum simples rapaz bem parecido, mas dava-lhe o que seu marido vinha adiando: fazer com que se sentisse desejada, uma mulher completa. Não, não amara Sandro, porque o amor, segundo sua Concepção, não se resume ao sexo, emboraseja parte fundamental. O simples facto de se fazer amor não é só por si sinónimo de que se ama mas sim, de um desejo repentino e animalesco.
Ora, Sandro frequentava a sua casa desde o dia em que fora contratado para limpar a piscina, enviado pela empresa em que trabalhava. Seus olhos travessos estavam constantemente focados no corpo de Albertina.Aquilo enchia-a de sensualidade. Naquela hora, não haviam padrões comportamentais, lealdade ao cônjuge, preconceitos, nada existia a não ser uma vontade louca de se entregar aos devaneios do rapaz.E tal como dizia o ditado “quem muito procura sempre alcança”, o dia tacitamente desejado acabou por surgir.Com a sua filha na escola, o seu marido recebendo estrangeiros no hotel, tudo se proporcionou para tão sumptuoso momento. Depois sucederam-se os encontros e, quando se deu conta, estava inapelavelmente envolvida. O desfecho só poderia ser um: Martim, avisado por alguém, flagrou-a.Nesses casos, existem sempre pessoas dispostas a tudo.No caso dela, não foi exceção.
Albertina jamais se esquecerá daquela tarde.Foramgritos de fúria, momentos de pânico quando Martim sacou da pistola, correrias, etc. Não obstante tanta desilusão, tristeza, remorsos momentâneos,tudo acabou por ficar calmo quando Martim,completamente alterado, desapareceu por dois dias. Contudo, era evidente que algo teria de ser feito,e Albertina sabia-o bem.
Passados dois dias, Martimsurgiu perante ela, de semblante tranquilo porém, de âmago ferido. Podia ter-lhe chamado todos os nomes feios do mundo, podia ter-lhe dito que ela era a mulher mais desprezível a face da terra, mas não ofez. As palavras saíam-lhe da boca como farpas afiadas.Cada frase, cada letra que a ela era dirigida, eram como punhais a cravar-se no peito.A despedida era inevitável.
– Fizeste a tua escolha – começou por dizer-lhe Martim. Provavelmente, poderia ter sido diferente se me tivesses dito que já não me amavas mas, de momento, as lamentações só servem para agravar o sentimento que agora nutro por ti. Vou trabalhar e quando regressar já não te quero ver nesta casa. Por favor, faz as tuas malas e desaparece das nossas vidas. – rematou Martimnaquele dia.
Diana estava do lado do pai e,quando sua mãe tentou falar-lhe, Diana simplesmente virou-lhe a cara.
Como tudo o que é superficial é efémero, uma semana depois de Albertina ter saído de casa, Sandro chutou-a para canto. Não podia ter sido de outra forma. O rapaz era 16 anos mais novo do que ela.Albertina ainda tentou, mas como estava latente desde o início, ele tinha como real interesse o seu dinheiro. Como é óbvio, Martim cortou-lhe o cartão de crédito. Nada mais justo.Contudo, embora ganhasse mais do que o comum dos trabalhadores por conta de outrem, o seu ordenado era muito curto para si e para sustentar os caprichos de Sandro. As regras do jogo estavam implícitas desde o primeiro encontro, e o pior de tudo era que ela sempre o havia sabido.
Depois de ter voltado a cair na realidade que, embora dura, teria de ser enfrentada, a bonita Albertina, professora bem-querida pelos seus alunos, começou a ser discriminada. Haviam inúmeras formas de a magoar.Não existia dia em que não se confrontasse com o facto de ter traído um dos homens mais influentes da ilha,desde papéis escritos nas paredes das salas de aulas com dizeres, no mínimo, inconvenientes até colegas que lhe viravam o rosto. Foram semanas de tristeza até ao dia em quepensou sair da ilha. E se depressa reflectiu sobre essa hipótese, mais depressa a executou. Custava-lhe abandonar a sua filha sem ao menos se despedir dela. Diana passava por si como se fosse invisível. Albertina tinha a certeza que sua filha a amava e considerava que a sua reação era natural.O seu apego ao pai fez com que se solidarizasse com ele. Não obstantea tristeza de deixar a sua filhota, sabendo que a levava no peito, Albertina fez das tripas coração e partiu, lavada em lágrimas.
Durante os sete anos em que permaneceu no Continente a dar aulas, o seucoração jamais se abriu ao amor. As propostas sucederam-se, até houve alturas em que o seu corpo quase cedeu, porém manteve-se tal como prometera a si própria ao decidir viajar, fechada a qualquer espécie de relacionamento.
A promessa fora cumpridana íntegra até aos últimos tempos, altura em que vinha tentando umaaproximação, mas sendo Diana o foco. Não foi fácil. Sua filha,no início mostrou-se inflexível mas, pouco a pouco e com a sua insistência, acabou por ser o amor a vencer.
– Tenho tantas saudades tuas, mãe – disse-lhe um dia a sua filha, quando as recorrentes conversas ao telefone, por fim, tiveram o resultado pretendido.
– Ó filha,há diversas coisas que tenho para te dizer,quando tiver de novo a possibilidade de te abraçar.
– Esquece o passado, mãe.
– Não, o passado tem de ser recordado, nem que seja para, de uma vez por todas, ser incinerado - respondeu Albertina.
Depois de muitaconversa tendo em vistao seu regresso há muito desejado, Albertina, por fim, voltou. A oportunidade tão aguardada, por fim, chegou.
– A ilha está na mesma!
– Ó mãe, foram só sete anos – disse-lhe Diana quando a foi buscar ao aeroporto.
– Estás cada vez mais linda, meu amor – comentou, pela centésima vez.
– Tu também – retrucava sempre Diana.
No dia da chegada, Diana havia feito questão de a ir buscar. Albertina não podia ter desejado melhor recessão. Não fora para isso mesmo que nos últimos tempos havia trabalhado? Agora, via-se ao lado da sua filha e, olhando-a de relance, constatava que também ela estava feliz. Em parte,isso devia-se ao seu regresso mas, conforme Diana já lhe havia confessado, também ao facto de amar um rapaz que a vinha deixando maravilhada. Lembrava-se do dia em que, ao telefone, Diana lhe dissera:
- Sabes mãe, eu pensava que amar alguém era uma mera formalidade, mas já vi que não.
– E porque achas que não? – perguntou-lhe.
– É tudo muito recente – esclareceu. – Com Marco, havia amizade.A nossa relação era aprazível sim, mas faltava algo. Não sentia o que sinto por Luís. Quando não estou ao seu lado, quando por algum motivo tenho de me ausentar, bolas, parece que o mundo vai acabar – declarou Diana.
– Sabes o que é isso, querida?
– Acho que sim, mãe – retrucou sua filha.– Acho que só agora me apercebi do quão poderoso é o amor.
Albertina recorda-sede lhe ter respondido:
- Se reparares em mim, tens a resposta.
– Ainda amas o pai?
– Mais do que nunca, filha - afirmou.
Diana deixou-a junto da pensão em que ficaria hospedada. Despediram-sefervorosamente e combinaram que se telefonariam sempre que possível.Depois, a oportunidade surgiu com naturalidade e, por fim, o desejo da sua filha concretizou-se.
XXIV
Agora via-se perante o homem que sempre amou, mas as palavras tardavam em sair. Observando-o, constatou que ele tinha envelhecido mais do que seria normal. Martim manteve-se de cabeça baixa até que Albertina, por fim, enchendo-se de coragem, resolveu falar;:
- Deixaste crescer a barba?
Martim não lhe respondeu.
– É natural que não queiras dirigir-me a palavra, pois eu magoei-te de mais.
Continuando:
– Como deves imaginar, estar aqui à conversa contigo, também é doloroso para mim. Contudo, acho que mereces que te peça perdãoe que te diga que tudo aquilo por que te fiz passar, toda a humilhação e dor, não foi premeditado mas sim uma loucura momentânea.
Martim olhou-a e, quando se preparava para dizer algo, Albertina acrescentou:
- Espera, preciso que saibas tudo.Depois tens todo o tempo do mundo para me condenares– acrescentou. – Quero que saibas também que, desde que parti, nunca fui mulher de outro homem. – digo-te isto não para que sintas pena de mim mas porque é a verdade das verdades. Sabes Martim - prosseguiu Albertina -, não te falo isto no sentido de me valorizar mas porque, apesar deter sido uma má experiência, serviu sobretudo para saber, sem qualquer espécie de dúvida, que é a ti que eu amo.Poderás pensar “mas que lata tem esta!”Dou-te toda a razão.Contudo, tinha de te dizer isto.São frases há muito guardadas.
Martim esperou que Albertina acabasse.Verificando que chorava, aproximou-se e, pegando em sua mão, disse-lhe:
- Eu acredito em tudo o que disseste. Não porque quero ser bonzinho, não é isso, mas porque, pese embora toda a dor, todas as saudades, conflitos, remorsos…
- Remorsos?
- Por favor, deixa-me acabar – pediu-lhe Martim.
Albertina ficou olhando-o. Ele estava notoriamente nervoso. Martim continuou:
- Sim, remorsos. Eu sei muito bem que as coisas acontecem não porque são planeadas mas, simplesmente, sucedem. Basta um momento de fragilidade, uma hora menos conseguida, alguma altercação mal resolvida e, quando damos conta, estamos a cometer algo que vai contra o que na realidade desejamos.
– Sentiste alguma vez isso?
Martim baixou a cabeça.
– Sentiste? – insistiu Albertina.
– Claro que sim – confessou. – Naquele dia, tratei-te tão mal...
Albertina não percebia porque Martim, em vez de a massacrar por motivos óbvios, falava como se fosse ele o culpado.
– Como fui tão egoísta, meu Deus.
– De que estás a falar, Martim?
De repente, a confusão instalou-se na cabeça de Albertina. Martim insistia em martirizar-se,nunca aludia à traição.
– Na verdade – prosseguiu ele -, eu fazia o mesmo e há mais tempo.
– Como?
Estava tudo claro agora, pensou ela.
– O teu afastamento, as horas que passava sozinha, as noites em que não vinhas dormir a casa…
- Sim, era tudo forjado.Eu tinha uma amante!
- Quem é ela?
– Não a conheces – declarou Martim. – Era uma pobre mulher, esposa de um pescador – acrescentou.
Martim deslocou-se um pouco para a frente e, colocando-se de novo cara a cara com Albertina, pediu-lhe:
– Olha aqui, o mau da fita sou eu.Por isso, o meu pedido de perdão tem sete anos de atraso – afirmou Martim com as lágrimas escorrendo rosto abaixo.
Albertina estava assombrada com a história que acabara de ouvir. Mesmo boquiaberta, não era sua intenção condená-lo, até porque os dois haviam cometido erros.
– Às vezes dou comigo a pensar… – declarou Albertina. - Dizem que o destino comanda a vida. Eu não acredito nele.Contudo, existem passagens da nossa vida que põem em causa o meu ceticismo. Porque será que damos sempre mais valor às coisas quando as perdemos? Porque será que nos arrependemos quase sempre de certas atitudes espontâneas?Será que as espontaneidades são provas? Tens resposta para estas interrogações, Martim?
Albertina deu em deambular pela sala, uma sala que já tinha sido local de fartas gargalhadas, momentos de sexo repentino, local de muita felicidade.
– Deixaste tudo como estava – declarou, pegando num pequeno cinzeiro em forma de estrela, com o seu nome gravado. – Eles foram uns amores – murmurou, lembrando-se da turma que lho havia oferecido.
- Podes vir cá? – pediu-lhe Martim, erguendo-se nas moletas. – Olha, mesmo que tirasse todos os objetos que me fizessem lembrar de ti, nunca poderia apagar a gravura que tenho no coração, essa sim, inapagável.
Albertina fixou os seus lindos olhos verdes nos dele.
– Isso quer dizer que temos hipóteses?
Martim chegou-se perto dela, dizendo-lhe:
- Teu perfume, teu rosto, tua presença, só por si, fazem-me desejar-te.Eu amo-te como se nada tivesse acontecido.
Albertina encostou-se a Martim e deu-lhe um beijo delicado nos lábios.
– Que tolices fazemos por vezes, não é?
– Que tolices - retrucou Martim. – Por favor, não saias mais da minha vida – pediu-lhe.
– Eu nunca mais te vou largar, bobinho.
– Quando te foste, eu era um homem por inteiro.Olha para mim agora – disse Martim, abanando as moletas.
– Podes não te achar um homem completo, podes julgar que isso é importante, mas existe algo que nunca será por metade: nosso amor – declarou Albertina beijando-o.– Vamos dar as boas novas?
Albertina apartou-se dele e, pegando-lhe na mão, levou-o até ao sofá.
– Quero que conheças bem o meu genro – disse-lhe Martim.
– Eu acho que já o conheço – declarou Albertina.
– como assim?
– Diana, quando falava comigo ao telefone, não tinha outro assunto.Era Luís para aqui, Luís para ali…Está mesmo apaixonada.
– O moço foi uma bênção nas nossas vidas – afirmou Martim.
– Eu sei, querido.
– Quero que voltes a lecionar.
– Achas que devo?
– Claro, amor!Tu eras umaprofessora reconhecida.
Martim reparou que algo a perturbava.
– Olha – disse-lhe –, o que os outros falam, o que pensam, pouco me importa.
– Vou pensar nisso – retrucou albertina.
Entretanto, Diana perguntara-me pela milésima vez:
- Achas que eles vão reatar?
Pela milésima vez, respondi-lhe:
- Acho que sim.
– Como tens tanta certeza?
– Eu não tenho a certeza – repliquei.
– Era tão bom se tivesses… – murmurou.
– Tudo bem, eu tenho!
– Só estás a dizer-me isso para me alegrares, não é?
Não havia hipótese, tudo o que dissesse ela contrariava. – agarrei-afirmemente pela mão e, olhando-a bem no fundo dos seus olhos verdes, disse-lhe:
- Se eles se amam, não tarda e estão a chamar-nos!
– Luís! Venham cá, venham a correr!
- Bolas, tão depressa?
Diana pendurou-se no meu pescoço gritando:
- Eu sabia que tu sabias! Papá, mamã,estou a ir!
Enquanto Diana disparou casa adentro, fiquei meio atordoado, pensando:
- Será que tenho algum poder de adivinhar? Não!- sorri com minha estúpida meditação.
Quando cheguei à sala, o quadro era deslumbrante.
- Ainda bem que chegaste - disse-me Martim, olhando-me sorridente.
- Eu só estava ali ao virar da esquina - brinquei.
Diana veio ter comigo, recebi um terno beijo na bochecha.
- Obrigado, amor - disse-me.
- Obrigado porquê?
- Por seres somente meu amor.
- Ah, isso – sorri, passando a minha mão no seu rosto.
- Vem cá extremista – disse-me Martim.
Ele gostava de me chamar por esse nome. Tudo porque eu defendia ideias de esquerda. Umas vezes extremista, outrasvezes comunista e,de quando em vez, de revolucionário. Martim tinha a convicção de que “menos Estado era menos chulos”. Eu combatia-odizendo que“um Estado bem gerido pode ser grande, que dá sempre lucro!” Com pontos de vista opostos, rigorosamente díspares, no entanto, numa coisa convergíamos: - a seriedade tem de estar sempre subjacente a quem nos governa. “Há que governar e não governar-se”, lema que ambosentendíamos ser o mais coerente. Não obstante as nossas discussões, dávamo-nos lindamente.
– É tão bom vê-los bem – comentei.
– Tudo graças a ti!
– Eu?Que fiz eu?
– Tudo,ó comunista – disse-me Martim.
Levantei as mãos ao cimo da cabeça e exclamei:
- Levem tudo!
Tivemos muito tempo em família, as conversas recaíam inevitavelmente nos enigmáticos trilhos da vida. Constatei que, pese embora toda a mágoa, raiva ou outro sentimento menos agradável, aqueles servem sobretudo para que a reflexão se implemente.
Há Não muito tempo, eu pensava que o amor era uma palavra usada superficialmente, referindo-se ao intuito de dar bem estar a quem nos era mais próximo. Li inúmeras vezes sobre o amor entre um homem e uma mulher. As justificaçõespara que terminasse eram muitas,tais como “o nosso amor acabou!”ou mesmo “o amor não dura para sempre!”.Na minha ingenuidade, às vezes dava comigo a pensar:“ora, se o amor é sentimento único, sem designações múltiplas nem paradoxos, como se podia dizer tal coisa?”Entendia que, nesse domínio, o amor verdadeiro não poderia acabar. Porque pensariaeu assim? A resposta é muito simples. O que seria das famílias se um pai ou uma mãe dissessem o mesmo relativamente aos seus filhos: “sabes filho,o meu amor acabou!”Afinal, o amor de um pai não é o mesmo amor que se sente por uma mulher? Haveriam vozes que diriam:“não, porque entre um casal existe sexo”. Para isto, tinha eu também uma explicação:seráo amor indissociável do sexo? Eu entendia que o sexo é uma consequência, não um sentimento.Podia estar enganado mas os pensamentos a esse respeito eram tão discrepantes como contraditórios… Resumindo e concluindo, eu achava que, quem sente verdadeiro amor, jamais deixa de o sentir. Quando se diz “olha, foi bom mas acabou”, essa pessoa nunca amou. São de facto muitas as teorias.Contudo, a minha era simples e objectiva:; o amor é recto, único e sem versões.É sentimento que não se deixa corroer.
Devaneios a parte, deixei-me envolver profundamente pelo momento.O meu sogro estava genuinamente feliz.Atéao dia em que conheci Diana, sentia-me o ser mais insignificante, dotado de uma constrangedora falta de auto-estima, uma almatriste.Depois de a conhecer, tudo mudou. Antes, a minha incerteza quanto ao futuro era real, tal como incerta era a esperança de ser feliz. Todavia, na noite que pensava ser a primeira de uma vida de mendicante, surgiu-me, inesperadamente, a mulher da minha vida. Capricho do destino ou não, resultado da interferência ou não de qualquer elemento mitológico ou transcendental, o certo é que aconteceu, e ainda bem.
Depois de uma noite de reconciliação, depois de um jantar em família - palavra que cada vez mais me sabia bem -, fomos deitar-nos.
Nessa noite,como sempre, dormi envolvido pelos braços de Diana e sonhei. Sonhei com uma enigmática mulher, de rosto inconclusivo. Não sei porquê mas quando acordei estava feliz.Sempre ouvi dizer que os sonhos eram passagens da vida que haveríamos de percorrer, mas nunca acreditei. No entanto, a partir de certa altura, aquela personagem voltava, e voltava mal eu acabava de adormecer. Pensei em contar a Diana, porém não o fiz. Provavelmente chamar-me-ia de tolinho. Contudo, o tempo decorreu e aquela mulher não me largava. Com alguma naturalidade, acabei por acostumar-me e, desvalorizando esta situação, preocupei-me com outras coisas tais como, por exemplo,com o meu casamento e com a felicidade do meu sogro.
XXV.
Era tudo muito bonito, sim senhor, contudo O jovem Luís nem sonhava com o que o seu arquirrival lhe preparava.Marco jamais aceitariaum desenlace como este,muito menos para um rapaz da Casa do Gaiato! O jovem filho de Francisco entendia que só Luís e somente ele era culpado por Diana lhe ter dado um chuto no traseiro.
– Posso perder definitivamente Diana, mas ele não ficará a rir-se.
Estas, foram as meditações de Marco. Telefonou então para dois velhos amigos, acenou-lhes com algumas notas e, em conjunto, magicaram a forma comoe onde haveriam de abordar-me.
Ora, depois de Martim e Albertina se terem reconciliado, faltavaapenas uma semana para o meu casamento quando fui surpreendido por um grupo de jovens encabeçados por Marco. Estava eu, como sempre, atarefado e nem dei pela aproximação deles. Um dos meus colaboradores - nome pomposo que veio substituir a palavra empregado -, alertou-me para a aproximação de um jipe que entrava pelas terras adentro. Aquilo deixou-me confuso. Que raio teria passado pela cabeça do condutor para,às três da tarde, invadir propriedade alheia? Intrigado, fui averiguar quem seria o maluco. De súbito, dei de caras com Marco que ainda estava a sair do jipe. Seu semblante não era de quem vinha fazer um convite para almoçar.
– Boa tarde, monte de merda –cumprimentou-me.
Por momentos, pensei estar a ouvir mal. No entanto, fiz um compasso de espera,dando-lhe assim a possibilidade de se arrepender, o que não chegou a acontecer.Pelo contrário, ficou ainda mais atrevido.
Dianatinha-me narradoa sua história com ele e falado sobre os caminhos por onde o moço se metera. Não tinha raiva dele, isso não. Muito pelo contrário, se não fosse jocoso, até lhe agradecia.Respirei fundo, e afirmei, tentando que tudo se resolvesse a preceito:
- Ouve lá moço, não faças nada de que te arrependas no futuro.
Marco riu-se.
– Tens medo?
Dessa vez, fui eu que esbocei um sorriso, facto que o deixou mais furioso ainda.Na sua retaguarda, dois rapazes, qual deles o mais jovem, sacaram de dois tacos de baseball. Os meus colaboradores juntaram-se a mim.
– Patrão, que quer que façamos?
– Nada – disse-lhes.– Deixem-me conversar com esta gente – acrescentei.
Despi a minha camisa, ficando em tronco nu. Os olhos dos outros moços fixaram-se no meu corpo. Marco apercebeu-se que eles vacilaram quando avaliaram o meu físico.
– Avancem – ordenou-lhes –, ouviram?
Os rapazes, nem um passo deram. Marco virou-se para eles e exclamou:
- Vocês não passam duns medricas!
- Pois, pois, chama-me o que quiseres mas não contes comigo - respondeu-lhe um deles, lançando o taco ao chão, seguido de imediato pelo outro.– Por favor, leva-nos a casa - pediram-lhe.
- Bando de medricas, vocês não veem que é só um homem?
– Mas tem o corpo de dois – responderam-lhe.
– Não contes comigo – acrescentou um deles.
-Nem comigo –disse o outro. . – Não foi para enfrentar este Golias que vim.
- Vão a pé! – enfureceu-se Marco.
– Carlos!
– Sim, patrão – respondeu-me o meu empregado.
– Pega no carro e leva estes rapazes à cidade, por favor – ordenei.
– Sim senhor.
fezassim o que lhe mandei,o meu empregado mais antigo.
Marco franziu a testa.
– Agora nós – disse-lhe, chegando-me mais perto.– O que é que na realidade queres comigo, moço? – questionei-o.– Não percebes que Diana gosta de mim ou tens de te aperceber disso da pior maneira?
Marco riu-se.
– Porque não voltas para a Casa do Gaiato?
– Pelos vistos, estás bem informado – retruquei.
– Se calhar fazia-te bem uns tempos lá… – disse-lhe.– Agora desampara-me a loja – declarei, virando-lhe as costas.
Mas Marco procurava confusão, e teve-a.
– Patrão! – gritou-me o meu outro empregado.
Quando me virei, senti um objeto frio a entrar no meu braço esquerdo e recuei rapidamente.Marco não estava ali para brincar.Vi nos seus olhos toda a frustração de quem não gosta de ser passado para trás.
– Fica onde estás – ordenei ao meu empregado, quando ele avançava para Marco.
Levantei do chão a minha camisa e, rasgando-a, coloquei-a sobre o golpe. Não era profundo mas jorrava sangue abundantemente.
Marco mantinha-se de navalha na mão quando um carro da polícia estacou junto do portão e dele saíram três policiais. Vi que se apressavam terra acima.Sorri quando constatei que não eram nem mais nem menos do que os mesmos que me haviam dado a sova. Depois de refletir um pouco, deixei que eles falassem com Marco.
– Larga já a navalha, Marco!
– Ora, ora, são amigos – pensei.
O polícia Sousa bufava quando estacou junto de nós.
– Bons olhos o vejam – cumprimentei-o.
Ele olhou-me, confuso.
– Não se lembra de mim,Sousa?
Tocou na pala do chapéu e, fazendo-se de desentendido, respondeu-me:
- Já nos vimos antes, senhor?
– Desculpe,Senhor Agente – retruquei–, pensei ser o filho da puta dum polícia que me fez ir parar ao hospital há alguns anos atrás. Provavelmente, enganei-me.
Reparei nos outros agentes, que se mantiveram um pouco mais atrás. Lá estava Matos,que baixou a cabeça.
– Levem-me este moço daqui.Eu não tenho nada contra ele.
– Mas patrão..
- Mas, nada! – gritei para o meu empregado.
– Quer que o levemos ao hospital?
Voltei-me de novo para os polícias e respondi a Matos:
- Senhor agente, eu acho que você é um bom profissional.
-Obrigado – retrucou.
Sousa apressou o momento.
– Vamos embora. O menino vai no seu jipe.Nós iremos atrás. Nada debrincadeirinhas, ouviu?
Marco, depois de lhe dar a navalha, olhou-me de soslaio.
– Olha rapaz – disse-lhe, quando ele abriu a porta do seu veículo -, no amor, não existem perdedores ou vencedores. No amor existe compreensão, por mais dolorosa que seja.
Ele baixou a cabeça e entrou.
– Boa tarde a todos – despedi-me.– Vamos companheiro – disse para o meu empregado.
Depois desse episódio, Marco nunca mais deu de caras. Com sinceridade, desejei que encontrasse paz para o coração.Em certa medida, percebia a sua angústia.Não parecia fácil ser-se preterido. No entanto, ele encontrou o que andava à procura. Em vez do amor, preferiu o vício; no lugar da paixão, as noitadas e o álcool.
Quando contei a Diana o sucedido, como seria de esperar, ela entristeceu-se por ele. Para ela, não era simples ver uma pessoa de quem gostou a destruir-se.Esperavano entanto que Marco viesse a encontrar a tranquilidade suficiente para se desviar do caminho mais fácil e seguir noutradireção.
XXVI.
- Não aguento mais,eu vou para aí!
– Não faças isso!O que me prometeste?
– Estou farta de promessas!Foram 15 anos de esperanças vãs!
– Ouve lá. Se apareceres agora, estragas tudo!
– Que me importa? Eu já estraguei tudo no dia em que o abandonei.– Preciso de o ver com urgência.
– Maisuma vez te peço, não faças isso!
– Está na hora de assumirmos as nossas responsabilidades.
– Se prometeres que não apareces, eu juro…
- Não jures.Já juraste demais e não cumpriste nada.
– Mas desta vez vou cumprir.Eu juro-te!
- Não!Amanhã mesmo, viajo para aí.
– Por favor, não me faças isso, peço-te!
- Olha, então seja como quiseres, mas depois do casamento de Luís, tá bom assim?
– É para a semana! Só mais esta semana. Obrigado amor.Eu sei que farias isso por mim.
– Já não faço por ti mas sim, por mim.
– Como queiras, amor. Então, adeus.
– Vai comDeus.
XXVII.
– Que queres João,às três da tarde?
– Quero saber quando resolves assumir o teu filho,de uma vez por todas – afirmou.
– Mas do que falas, homem de Deus? - retrucou.
Manuel vivia momentos perturbadores. Aos 65 anos, via-se só no mundo.A sua vida tornara-se numa espiral deprimente. HaviamPassado22 anos desde que Maria fugira, deixando-o num mar de controvérsia onde os remorsos o afligiam diariamente. Já nem mesmo o álcool lhe conseguia provocar a amnésia de que tanto precisava. Culpava-se por Maria o ter deixado eo seu filho nada significava para ele. Quando o via, de súbito, assomava uma descontrolada raiva.Era a personificação da mãe. Tem os mesmos olhos azuis, o cabelo negro assemelha-se ao dela e até o modo de falar o irritava! Tentou, é verdade,mas o rapaz, com o seu jeito calado,os olhos penetrantes e a sua estranha maneira de se expressar, não ajudava nada.
– Maldita a hora em que concordei que ele viesse comigo – declarou Manuel.
João era bem conhecido no bairro. Quando se decidiu, ou melhor, quando a sua mãe decidiu que fosse para o seminário, a vocação de servir a Deus era nula. Contudo, naquele tempo, quem dava o pão, mandava. Nesse contexto e com o assentimento do chefe de família, seu falecido pai, quisesse ou não, barafustasse ou não, teria de obedecer. Como naquela época a fome era negra - conforme se dizia por ali -, como as perspetivas de vida erampouco mais do que nenhumas, lá aceitou, contrariado.
O seu irmão, obrigado pelas circunstâncias da vida a fazer da pesca uma profissão para a vida, não teve, logo desde novinho, as mesmas possibilidades que foram dadas a João. Todavia, veio a transformar-se num dos melhores pescadores.
Depois da morte de seu pai -que dos homens do mar era o mais respeitado -, Manuel seguiu os seus passos, Mas não era igual a ele. Manuel não era dotado nem da décima parte da capacidade de seu pai, no que se referisse à firmeza, tenacidade e, acima de tudo,ao facto de ser um homem de família. O velho Jaime, conhecido pela alcunha de “o sargueiro”, não frequentava tascos e a sua mulher não era maltratada.Resumindo, tratava-se de um homem que, embora duro e de aspecto rígido, era amigo do seu amigo. No bairro em que sempre viveu, era quase idolatrado. Manuel apanhou ainda sequelas dessa adoração, porém não tão calorosa.
Depois de João ter saído de casa, de seu pai ter subitamente morrido aos 70 anos e de sua mãe ter sucumbido a um cancro da mama, Manuel ficou só. Mas à data, a juventude suplantava qualquer espécie de solidão.As farras, a vida frenética que levava e, mais tarde, Maria, tudo contornaram.
João decidiu então confrontá-lo. Era hora de ele assumir o filho. Luís, segundo as informações que chegaram a Manuel, transformou-se, para espanto dele e contra todas as suposições, num homem bem sucedido.Tendo em conta a forma como se comportava, Luís surpreendeu-o. Como se não fosse isso, só por si, um verdadeiro milagre, soube também que namorava uma linda rapariga, filha de um empresário. Não obstante toda a sua felicidade, Luís precisavade saber que tinha um pai e que já havia convivido com ele. Por certo, não reagiria bem quando soubesse que era Manuel, o mesmo que havia patrocinadoo seu mal mas, mesmo assim,teria de saber.
– Está na hora, Manuel!
– Está na hora de quê – respondeu-lhe Manuel, fazendo-se de desentendido.
– O teu filho tem de saber que foste tu que o colocaste na Casa do Gaiato – disse-lhe seu irmão.
– Quem te garante que ele é meu filho?
– Não digas essas coisas, homem – irritou-se João.– Eu sou testemunha da seriedade de Maria – declarou ainda João.
– Tu andavas ocupado com as beatas da igreja, não podias ver tudo – retrucou Manuel.
A casa de Manuel estava imunda. Ele estava sentado na pequena sala e,em frente dele, sobre a mesa,havia uma garrafa de vinho quase vazia. O televisor avariara-se; no teto, a lâmpada fundira-se e não havia sido trocada;a um canto, uma jarra sobre uma camilha, continha um ramo de murchas rosas e, por debaixo, estava um pequeno retrato do velho sargueiro. A nuvem de fumo pairava sobre eles e o cheiro a chulé era abundante.
– Como está esta casa, meu Deus! – exclamou João. – Mas o que me trouxe aqui não foi a casa – disse, querendo voltar a conversa.
– É como te disse, meu querido - declarou Manuel, enchendo mais um copo.
– Ninguém me dá a certeza de que aquele rapaz é meu.
– Se não é teu, de quem é?
Manuel olhou para João eos seus olhos avermelhados fixaram-se nos dele.
– Não sei – rematou. – Podem ser todos, tal como pode não ser ninguém.Não sei – exclamou.
– Se não disseres a Luís, digo eu!
– Não te atrevas!
Manuel levantou-se enfurecido.
– Se tiveres a audácia de me fazeres isso, eu nem sei o que te faço – gritou, de nariz encostado à cara de João.
– Tu fedes – disse-lhe João, afastando-se.
– Se não gostas, a porta é serventia da casa – retrucou Manuel, apontando para a porta.
– Não te livras de mim assim tão facilmente.
– Ora merda, e eu a pensar que já estavas de saída – gracejou Manuel, sentando-se de novo.
– Quem te disse que eleestava bem?
– Assim gosto mais – retrucou João, vendo que seu irmão falara mais brandamente e com curiosidade.– Esta ilha é pequena demais -disse-lhe. – Aqui, tudo se sabe. – Dá-se um peido no Capelo e logo se sabe na cidade – argumentou.
– Senhor Padre! “Peido”? – que maneiras são essas de se expressar?
– Deixa-te de coisas.Eu acima de tudo sou humano – replicou.
– Sei que tem um negócio, pelos vistos, muito lucrativo. E de que se trata? – perguntou-lhe Manuel, acendendo mais um cigarro.
– Disseram-me que tem muitas cabeças de gado e que também tem inúmeras hortas.– O rapaz saiu-me melhor do que a encomenda!
- Que encomenda? – brincou Manuel.– Quer-se dizer que se transformou num agricultor – murmurou Manuel, cruzando a perna.
– Ao contrário do pai, que não passa dum bêbado!
– Pronto! – disse Manuel. – Voltamos ao insulto – acrescentou, levantando-se e entrando na cozinha.– Não saias daí – pediu ao seu irmão. – Ora aqui está – disse, colocando sobre a mesa outra garrafa de vinho. – Esta veio especialmente do Pico para mim – resmungou enquanto a abria.
– Louvado seja o nome do Senhor – exclamou João, abanando a cabeça.
– Queres um copinho?
– Não, obrigado – respondeu-lhe João, resignado.
– Olha, eu vou pensar no teu assunto – afirmou Manuel, para surpresa de seu irmão.
- De verdade?
– Ó caralho!Já me viste mentir?
– Bem… já – retrucou João, esboçando um sorriso.
– Pronto,talvez uma ou duas vezes, mas não mais do que isso – declarou Manuel.
– Seja como for – disse-lhe João –, vou tentar fazer com que vocês se encontrem.Está bem assim?
– Olha, espero que o rapaz não me parta o canastro – confessou Manuel, bebendo o copo dum golo só.– Ah, que bom!- exclamou. Este vinho escorrega bem – disse com satisfação.
- Qualquer dia o fígado sai-te bocafora – declarou João.
– Eu fecho a porta para ele não sair – galhofou Manuel.
– Ri--te, ri-te – disse-lhe João, junto da porta.– Ficamos assim, então?
– Assim como?Eu estou sentado.
– Lá estás tu com a merda da brincadeira!
- Senhor Padre, não se diz asneiras!
- Manuel,paras ou não?
- Tábem,Senhor Bispo.Ah, desculpa, Senhor Padre - riu-se Manuel, para desespero de João.
O álcool fazia das suas. Antes que o seu irmão desse o dito por não dito, João despediu-se com um simples tchau.
– Vai com Deus!
João ainda ouviu as gargalhadas de Manuel enquanto entrava no seu carro.
– Meu Deus –disse ele, levantando os olhos ao céu –, não podias ter-me arranjado outro irmão?
No caminho de regresso àCasa do Gaiato, foi pensando naquilo em que se tornara Manuel.Lembrava-se claramente do dia em que ele,satisfeito, lhe telefonou dizendo que se iria casar.
– Ó irmão, ela é linda de morrer.
– De morrer – murmurou João, de olhos na estrada.
Naquela altura ele havia terminado o Seminário.Recém-ordenado, fez uma espécie de estágio na Igreja das Angústias, tendo o seu guia sido nem mais nem menos que o padre mais querido na freguesia, o Padre Júlio.
No dia em que conheceu Maria, era ela ainda namorada de Manuel, ficou muito satisfeito, pois a moça era tudo o que seu irmão lhe havia narrado. Era bonita, falava bem, tinha uma cultura acima da média e era uma mulher prendada. Fez-lhe impressão o facto de ela se ter apaixonado por um homem como o seu irmão.Contudo, os caminhos do amor são por vezes indecifráveis.Não há que contestá-los. O que ela viu nele, só ela poderia dizer.Provavelmente, o físico invejável de Manuel falou mais alto. Nesse campo, o velho sargueiro deixou a sua marca. Tanto João como Manuel eram dotados de um corpo fora dos parâmetros normais e Luís havia também saído à família. Manuel,à laia de brincadeira, gostava de enfurecer João dizendo-lhe:
- Tanto corpo, tanto músculo, tanta força, para quê?Só para pegar na hóstia! As terras a precisar tanto de homens fortes e este anda de saias!
João foi-se habituando às brincadeiras e, por fim, já nem ligava.
Distraído com os seus pensamentos, João não deu pela presença de um cão que estava na estrada e, quando quis desviar-se, encontrou outra viatura no sentido contrário. A buzinadela foi bem audível,os pneus chiaram...
– Cumcaralho! – exclamou João, verificando que o outro automóvel se espetara entre as hortências.– Graças a Deus – exclamou novamente, quando viuabrir-se a porta.
– Caramba, padre – disse-lhe o outro condutor.
– Luís?
– quaseex-Luís – afirmou.
– Ó meu filho – disse-lhe João, agradecendo a sorte.
Luís saiu do seu carro.Estava trajado a preceito.Ia assinar as escrituras para a construção de uma pequena fábrica de lacticínios,projecto a que a Câmara da Horta se havia associado, cedendo os terrenos.Assim se realizaria o sonho que tanto ele como Diana - seu braço direito, esquerdo, pernas, tronco, mas principalmente dona de seu coração-, projectaram.Seriam criados alguns postos de trabalho epretendiam ser brevemente a maior empresa de exportação da ilha, ultrapassando mesmo as conservas de peixe, designadamenteas de atum.
– Que fazes da vida? Já soube que te vais casar, meu filho – disse-lhe João.
– Então, quer dizer que não preciso de responder à pergunta, não é?
–Como, que disseste?
– Deixe lá isso – retrucou Luís, apertando a mão ao Padre que o viu crescer.– Você tem um tempinho para mim? – perguntou-lhe Luís.
– Quando quiseres – disse-lhe.
– Pode ser agora?
– Claro, meu filho – declarou João.
– Então, vamos retirar os carros da berma, está bem?
– É verdade – respondeu-lhe o Padre.
– Por sorte, não batemos – disse-lhe, encaminhando-se para o seu veículo.– Você está sempre protegido – gracejou Luís.
– Essa é boa, meu filho! – riu-se João.
Uns minutos mais tarde, sentados numa das esplanadas do bar da marina, Luís começou por dizer:
- Oiça Padre, eu gostava de lhe agradecer tudo o que fez por mim.
– Era minha obrigação – disse-lhe João.
– Eu sei, mas também sei que eu era mais protegido do que os outros.
– O que te leva a pensar assim, meu filho?
– Quem são os meus pais?
João engasgou-se com o café.
– O que disseste?
- Isso mesmo que ouviu – retrucou Luís, de olhos fixos em João.
As pessoas passavam por eles, serpenteando entre as mesas, alheias ao embaraço do padre.
– Depois de ultrapassar todos os meus traumas, conflitos internos, atribulações existenciais, refletisobre o tempo em que lá estive, constatando, mais tarde e depois de muito meditar, que eu era muito protegido. Portanto, existe uma razão.– Quem são os meus pais? – perguntou novamente Luís.
– Eu não sei – disse-lhe João, sem convicção.
– Olhe para si,Padre.Você treme como varas verdes – disse-lhe Luís, flechando-o com os olhos.– Vai dizer-me ou não?
– Bem, eu gostava muito… - respondeu João, visivelmente perturbado-, eu não sei.Essa é que é a verdade, meu filho.
– Não acredito numa só palavra – retrucou Luís, ligeiro.– Não está a encobrir ninguém,Padre?
– Porque o faria?
– Responda-me você – disse-lhe Luís.
João estava abasbacado com a desenvoltura com que Luís falava e colocava as questões.
– Que mudança,Deus meu! – pensou João. – Ele, que era um verdadeiro bichinho, uma figura fantasmagórica, uma alma penada que se limitava a andar escondido, está agora à minha frente a falar como um ministro!
– Ouviu o que lhe perguntei,Padre? Não vale a pena esconder, eu sei que você sabe e mais alguém deve saber – afirmou Luís, engrossando a voz.
– Não, meu filho.Infelizmente, não te posso dar boas notícias – esclareceu João, baixando a cabeça.– Ninguém sabe quem são os teus pais. Pelo menos eu não sei – aclarou.– Encontrei-te embrulhado num cobertor, na soleira da porta.
– Não havia um papel?
– Não, meu querido – retrucou João.
Luís insistiu com o padre, contudo não obteve resultados satisfatórios. Ele tinha quase a certeza de que o padre sabia quem eram os seus pais, mesmo desconhecendo as razões dessa suspeita.Talvez isso se devesse ao facto de o padre o ter tratado sempre de forma diferente.
- Ele não ficou convencido – pensou o padre, depois do café com Luís.
Era urgente que Manuel lhe dissesse que era seu pai. João estava nervoso.O seu menino, o mais protegido,a criança que tanto havia ignorado, embora por uma boa causa, Estava prestes a casar-se. E não casava com uma miúda qualquer, não. Casava-se com uma rapariga de uma das famílias mais ricas da ilha!
– És um vencedor – suspirou João, travando no pátio defronteàCasa do Gaiato.
XXVIII.
A igreja deslumbrantemente enfeitada por Albertina estava a encher-se de gente,de pessoas que Nem Luís, muito menos Diana, conhecia. Mas Martim fez questão de os convidar.Poderiam vir a ser muito úteis no futuro, tendo em conta as ambições do seu genro e da sua amada filha.
A igreja escolhida foi a Igreja Matriz porque, além de ser a maior, situava-se no centro da cidade. Martim desdobrava-se na receçãodos convidados enquanto a sua linda mulher tratava dos últimos retoques antes da cerimónia. Aquele teria de ser o casamento do ano. Martim não olhou a gastos. Ofereceu a ambos um luxuoso apartamento na cidade e, quando regressassem da lua de mel, estaria estacionado defronte ao prédio em que iriam morar, um Mercedes da última geração. Ele sabia que Luís lhe diria:
- Não devia tê-lo feito!
Por saber disso, comprou-oà socapa.Ele teria de comer e calar. Aquilo dava-lhe um gostinho especial. Embora tivesse uma afeição desmedida pelo seu genro, gostava de o contrariar.
Luís era poupado e preocupado com os mais desfavorecidos mas Martim, por seu lado, achava que muitos, mesmo muitos, viviam à sombra da bananeira,à espera que o Governo Regional lhes colocasse a comida na mesa.
Luís não gostava de ostentar o que ganhava com manifestações de riqueza.
– Meu sogro, é muito excêntrico - dizia-lhe sempre.
– Se ganhamos com seriedade, se não prejudicamos ninguém, porque não?
O que mais o irritava em Luís era a forma como terminava as altercações.
– Tem razão, acabei por aqui.
Luís sabia que era uma maneira irónica de o enfurecer.
– Já viram? Deixa-me sempre a falar para o boneco – dizia Martim, enquanto Diana e sua mãe se riam como jeito de Luís.
Exceptuando as contendas, Martim estava intimamente agradecido ao moço esquivo, de olhos tristes e contidoque o destino lhe havia colocado no caminho. Foi após a chegada dele que, surpreendentemente,a sua vida, pouco a pouco, se recompôs. Foi ele, com o seu jeito calmo, a sua delicadeza e sensibilidade, que o fez ver que a vida, por vezes, coloca-nos perante situações adversas mas, se permanecermos fortes e seguros, de um momento para o outro, tudo muda.
– Como vê,Senhor Martim, no momento em que eu pensava que a minha vida não passaria de uma cruel indigência, apareceram vocês e tudo deu uma cambalhota.
– Este rapaz merece que a sua vida seja um exemplo – disse um dia Martim ao diretor da televisão regional.
Depois de ficar a par de algumas passagens da vida de Luís, convidou-o para uma entrevista na delegação local. Luís, a princípio recusou, mas quando lhe disseram que Diana podia acompanhá-lo, mudou de ideia e permitiu que o entrevistassem.
– Como vêem, senhoras e senhores telespectadores, este rapaz que está à minha frente,ao lado da sua linda noiva, foi abandonado aos cinco anos. Mas se pensam que ele baixou os braços, enganam-se redondamente – prosseguiu o entrevistador. – Luís é o exemplo real de um homem que subiu a pulso. Quando conheceu a sua actual namorada, pensava que a sua vida iria ser nas ruas, como um verdadeiro pedinte. Mas não. A vida da sua linda noiva estava numa fase má e,numa certa noite, depois de Diana ter terminadoum relacionamento, como se diz em gíria popular, juntou-se a fome com a vontade de comer.Esta linda moça que vêem ao lado de Luís, não obstante a sua licenciatura, aliás, concluída com muito mérito e o facto de ser filha de um dos homens mais aclamados da nossa querida ilha, passava momentos perturbadores quando conheceu o até então miserável rapaz. Diana vinha de uma relação falhada e Luís vinha de uma história de vida extraordinária em todos os aspectos, não pela dor que sentia mas porque nessa mesma noite se tinha despedido, digamos assim, do homem que o acolheu aquando da sua saída da Casa do Gaiato.Elatinha bens materiais e ele tinha somente a força de quem quer vencer. Acabando o prelúdio, O pivot dirigiu-se ao nervoso Luís e perguntou-lhe:
- Diga-me uma coisa, meu amigo. Pensava que a vida lhe sorrisse como sorriu?
Luís, depois de engolir em seco três vezes e de Diana lhe dar um aperto na mão, respondeu:
- Se não fossema minha noiva e o meu sogro, eu não tinha passado de um pobre, como muitos dos que por aí andam.
– Lá está ele com a veia comunista!
– Deixa ouvir, Martim – disse-lhe Albertina.
Estavam os dois na sala,a assistiràentrevista.
– É isso que o desgraça – barafustou. – Um empresário não pode dizer que gosta dos pobrezinhos, mesmo que o sinta! Porra para o moço!
– Por favor, deixas-me ouvir? – pediu-lhe mais uma vez a sua mulher.
– Desculpa – disse-lhe Martim,deixando-se afundar na cadeira.
– Não será humildade a mais? Que me diz, senhorita Diana?
Então, foi a vez de Diana contar a todos os açorianos o quão virtuoso Luís era.
– Anda, querida, exterioriza o teu amor - murmurou a sua mãe, de lágrimas nos olhos.
Diana começou por narrar a forma como se encontraram e em que circunstâncias:
- Eu tinha nesse mesmo dia terminado, mais uma vez,a minha relação mas, daquela vez era mesmo definitivamente. Bebi durante toda a noite no Peter’s bar,até ao pontode ser literalmente convidada a sairporque queriam fechar. Comprei mais uma cerveja e encostei-me a parede exterior, ao lado da porta do bar. Era uma das noites mais tristes para mim pois,à data, eu amava muito o meu namorado. Contudo, não sei como apareceu, donde veio mas, quando levantei acabeça pesada do álcool, vi, sentado no muro defronte, um rapaz de longos cabelos negros. Reparei que me olhava. Arrebatada pelo álcool, não fui de modas e tentei saber quem era. Eu estava por tudo. O que mais queria naquela hora era desabafar com alguém.
– Meu Deus, como ela é linda na TV! - suspirouo seu pai.
Albertina limpava as lágrimas.
– A nossa filha é o nosso orgulho – comentou, levantando-se e juntando-se a Martim, que se esforçava para não lacrimejar também.
Atentos, fixaram-se no ecrã, enquanto Diana prosseguia com a sua narrativa:
- A primeira coisa que lhe disse, acho que foi que“esta vida é mesmo uma merda”, não foi?
Luís olhou-a somente. Não estava muito à vontade com as luzes do estúdio e, mesmo sendo agora muito mais desinibido, achava já ter contado demais.Todavia, depois de lhe confirmar, deixou que Diana contasse o resto, pois ela estava mais à vontade.
Poucos televisores estavam desligados naquela hora. A cativante história prendeu quase todos ao ecrã.Os comentários eram variados:
- Eu já vi aquele rapaz em algum lugar.
Outros diziam:
- Acho que ele teve mais sorte do que saber.
Fossem quais fossem os raciocínios, ninguém tirava os olhos da TV.
– Luís nunca se interessou pelo nosso dinheiro – continuava Diana. – Se assim o fosse, não teria rejeitado a nossa proposta inicial.
– E qual foi, senhorita Diana?
– Propusemos que tratasse das terras e dos animais, mas não queríamos nada em troca, digo, qualquer contrapartida financeira. Sabem o que ele fez?
Luís baixou a cabeça. Era para si complicado ouvir uma pessoa a falar das suas eventuais virtudes, mesmo que fosse a pessoa mais indicada, como era Diana.
– Simplesmente, recusou.
– Assim?
O entrevistador,tal como quase todos os açorianos, estava compenetrado a ouvir a linda namorada de Luís.
– Só aceitava tratar das terras se pudesse pagar uma renda, não aceitava borlas – rematou Diana.
– Louvável, muito íntegro, sim senhor – exclamou o entrevistador.
– Como e quando deram conta de que estavam apaixonados?
– Bolas!Isto é demais – chateou-se Martim. - Daqui a bocado vai perguntar-lhede que cor são as suas cuecas!
– Não digas tolices, amor – riu-se Albertina, sentada ao seu lado.
– Desde o dia em que verifiquei que tanto a minha vida como a do meu querido pai haviam mudado.
– E quando foi isso?
- Quando num certo dia, depois de ele concertar um pequeno barco quase moribundo que tínhamos no porto, chegando a casa de sorriso deslumbrante, nos disse:“Pronto, promessa cumprida!”O porto não fica distante da nossa casa.Ele empurrava a cadeira do meu pai e eu ia ao seu lado. Quando chegámos ao porto, vimos um barco completamente novo e dissemos “isto não é o nosso barco”.Foi a nossa primeira conclusão.Por debaixo da amura da proa, vi que estava escrito “Diana”. Ele havia mudado o nome do barco! Senti crescer o que já alimentava no peito e, nessa hora, fiquei com a certeza de que o amava.
– E você? – perguntou o pivot.
Luís levantou a cabeça, declarando:
- Acho que amei desde o primeiro dia.
– Bonito, muito comovedor – disse o entrevistador, emocionando-se.
Quando acabou a entrevista, metade dos açorianos, os mais sensíveis, estavam genuinamente comovidos.Depois dessa largamente comentada entrevista, Luís e Diana tornaram-se o casal mais popular dos Açores, especialmente na Ilha do Faial.
Não era de admirar que, além da igreja cheia, as pessoas se acotovelassem no exterior da mesma. Todos queriam ver o rapaz que estivera na Casa do Gaiato durante 15 anos mas cuja bravura, integridade e, acima de tudo, perseverança, haviam feitodele um homem de reconhecido mérito.
Como todos na ilha, Manuel ficou a par do feito de Luís. Não que tivesse assistido ao programa mas,como tudo se comenta, ele foi informado por via do que se ouvia falar. Aquilo mexeu com ele. Mesmo sem nada sentir nem tendo mexido uma palha para favorecer a felicidade de Luís, a vida encarregou-se de odotar de força suficiente para vencer por si próprio.
– Ora aqui está um dos enigmas da vida - pensou Manuel. – É muito mais nobre do que eu – refletiu.– Caramba!Merecerá ele saber que sou seu pai? – pensou Manuel,durante todo o dia. – Por certo mata-me à pancada e, se calhar, tem razão – adicionou às suas reflecções.
Manuel, embora arrependido e, por fim, consciente do mal que havia feito ao seu filho, mesmo reconhecendo tudo isso, não quis dizer-lhe que era seu pai massim e tão somente, assistir ao seu casamento. Seu irmão que se lixasse.Se quisessedar com a língua nos dentes, que desse. Ele não prejudicaria mais a vida de Luís. Agora que o rapaz tinha encontrado a felicidade, não lhe faria a maldade de o colocar de novo em amargura.O mal,quando duas vezes praticado, deixa de ser uma coisa horrenda para passar a ser uma manifestação de psicose. Manuel foi um verdadeiro carrasco para Luís.Porém e, inicialmente contra sua vontade, acabou por fornecer-lheas armas com que ele enfrentou a vida com galhardia, como um autêntico guerreiro. Não percebia a argumentação de João. Depois de quinze anos e após muito sofrer, depois de encontrada a mulher da sua vida, trabalho e um rumo de sucesso, não se podia fazer essa maldade. Se havia dado a volta por cima, atravessado um deserto de mágoas, um oceano de conflitos, uma selva de desilusões, merecia, mais do que todos, ser feliz.Não precisava de mais desgostos.
Na igreja, ornamentada com centenas de hortências azuis, com um tapete vermelho e com um couro cantando continuamente “hossana nas alturas”, fez-se silêncio logo que a noiva entrou.
O vestido evidenciava-se pela simplicidade, era todo em tons de rosa e o rosto estava delicadamente coberto por um véu. Diana vinha acompanhada por seu pai e por sua mãe.
Enquanto soava a marcha nupcial – a tão bem conhecida parte do Ato III da ópera Lohengrin, de Richard Wagner -, Luís aguardava nervosamente por ela, junto do altar.A acompanhá-lo, estava Padre João que, dois dias antes, se havia surpreendido com o convite.
Luís havia feito questão de ir ele mesmo àCasa do Gaiato. O que João pensava vir a ser uma mera visita sem demasiado significado, transformou-se numa demorada introspeção. Nesse dia, Diana acompanhava-o e,de recordação em recordação, deixaram-se ficar por toda a tarde e uma boa parte da noite.
Luís fez questão que Dianaconhecesse o local onde ele permanecia mais tempo. A biblioteca estava tal e qual ele a deixara.
– Era aqui queeu sonhava – disse-lhe ele, enquanto os dois lentamente percorriam todas as prateleiras de livros. – Enquanto os outros se divertiam na sala de convívio, eu deixava-me ir nas ondas da fantasia, desejando, imaginando, tendo somente por companhia os meus autoresfavoritos.
– Isso foi muito importante – comentou Diana. – Foram também os livros que te tornaram numa pessoa mais sensível e, de certa forma,num melhor homem – confessou, abraçando-se a ele. – Eu amo-te muito – declarou Diana, subtilmente, ao seu ouvido.
Recebeu de Luís um olhar conclusivo.Os seus olhos mostravam todo o amor que sentia por ela.
– Adoro quando me olhas assim – afirmou.
– Estarei lá, com todo o gosto – disse-lhe João, orgulhoso de ter feito parte dos escolhidos de Luís.
Desde o dia em que conversaram na marina, Luís jamais tocou no assunto referente aos seus pais. Isso só facilitava a vida a João. Manuel, seu irmão, parentesco que Luís nem sonhava, do mal o menos, havia dito que não iria contar-lhe nada, mas iria estar presente no casamento, desejando-lhe todas as felicidades do mundo.Mas não era bem isso que João pretendia. Entendia que Manuel deveria assumir toda a verdade, mesmo que isso fosse motivo de revolta. Mesmo que no início Luís o renegasse, João era daopinião que Manuel tinha de lhe contar tudo.No entanto e não obstante o seu arrependimento, Manuel não estava de acordo:
- O rapaz já sofreu demais!Se ele se tornou feliz assim, porque carga de água eu tenho de o fazer infeliz?
– Mas isso, depois passa-lhe!
– Não e não – replicou Manuel ante a insistência de João.
XXIX.
- Eu dava o meu braço direito para estar presente.
– Eu sei, amor. Mando-te fotos, está bem assim?
– Tem-no visto muito?
– Vou dar-te uma novidade.
– Ah sim, preciso de novidades!Nesta ilha nada se passa. Só oiço vacas a mugir, o relinchar de cavalos e,à noite, as cagarras com o seu barulhento piar. Quando vens cá novamente?
– Queres ouvir a novidade?
– Ah sim, desculpa.
– Eu fui convidado! Aliás, acho que a ilha toda o foi.
– Eu vi a entrevista. O meu filho estava lindo… e tem uma noiva deslumbrante, e filha de um milionário!
– isso é o menos importante.
– Estabilidade é importante.
- quem te ouvir falar…
- Desculpa. tudo bem, amor.Eu sei que aceitei as regras do jogo.
– Ainda bem que te lembras, querida.
– Que vai fazero outro?
- Acho que também vai.
– Achas?
– Sim, já não o vejo desde há muito.
– Como assim?
– Ando muito ocupado.
– Estou a contar os minutos para sair desta desolação
– Prometeste-me.
– Eu sei, mas…
- Mas, nada!Prometeste-me.
– Tá bem, eu sei.
– Só te liguei porque estou cheio de saudades tuas.
– Achas que eu acredito?
– Ó meu amor, não fales assim que me fazes ficar triste.
– Desculpa, não ligues ao que digo.
– Eu sei que estás a passar um mal bocado…
- Há22 longos anos.
– Sim, é tempo demais. Mas pensa bem, tudo se arranjará e um dia ficaremos juntos para sempre. Estou a tratar de tudo, para resolver a situação, não vais esperar muito mais.
– Sinto-me só, esqueci-me de quem era, tudo se tornou sombrio e distante…Eu só quero ver o meu filho e, cara a cara, dizer-lhe “sabes filho, eu sou a tua mãe”. Nãome importarei com a forma como ele reagirá nessa hora.Tudo será insignificante diante da alegria que sentirei junto dele.
- Vá lá, não chores.
– Chorar é o único consolo que tenho desde que confiei em ti.
– Vamos voltar ao mesmo? Tchau.
- Por favor, dá-me novidades do meu filho.
– Sabes que te ligo todos os dias.Não te preocupes
XXX.
Marco rendeu-se a evidência:lutar contra o amor de duas pessoas que se amam, tem tanto de burrice como de estupidez. Diana está com quem ama e, isso,por mais que lhe custasse, era uma realidade. Resta-lhe procurar o seu caminho, esperando que o fator vida lhe traga, no futuro, menos desilusões. Por tudo isso reconhecer, mesmo que disfarçadamente, Marco era uma de entre os milhares de pessoas que se empurravam no exterior.O noivo de Diana mostrou-se um rapaz ponderado enquanto ele próprio, não. Agiu como uma criança e, por isso, fez questão de mandar uma carta com um pedido de desculpas. Esse seria o acto que o desvincularia definitivamente de Diana.Daquele momento em diante, cada um seguiria caminhos antagónicos.
O arguto Martim havia mandado colocar do lado de fora da igreja um ecrã de grandes dimensões, fazendo assim com que todos tivessem uma boa visão do interior.Haviam almas que sonhavam com um dia assim, outros criticavam tanta ostentação. Bom o mau, certo ou errado, bonito ou menos bonito, excêntricoou nem por isso, poucos faltaram ao evento.Aquele era o casamento mais badalado que algum dia fora visto na ilha.Nem mesmo os mais velhos se lembravam de algo idêntico. Diana foi entregue a Luís e,diante do altar, perante a cruz de Cristo, choraram de alegria. Albertina e Martim não contiveram aslágrimas, beijaram-se de felicidade.
Manuel também se fazia presente. Os últimos dias haviam sido de reflexão.De alguma forma, a vida do seu filho havia modificado a maneira como sempre tinha encarado a sua.
– Luís, aceita Diana da Silva Golart como sua mulher?
– Sim, aceito – respondeu o jovem, olhando-a com deslumbre.
– Diana, aceita como seu esposo Luís Filipe de Sousa Rebelo?
– Sim, aceito – respondeu Diana, virando-se no sentido do seu noivo.
– Eu vos declaro marido e mulher.
Luís levantou delicadamente o véu, constatando que Diana chorava.
– São lágrimas de felicidade – murmurou ela.
– Eu amo-te muito – disse-lhe ele, em sussurro.
Seus lábios tocaram-se e ouviu-se um murmúrio geral. No exterior, a multidão comoveu-se e, muitos, abraçaram-se emocionados.
João, chorava. Uma mistura de emoções faziam-no verter lágrimas, gotas de remorsos, felicidade por Luís e alguma frustração.
Então, inesperadamente,uma mulher entrou aos gritos pela igreja adentro.
– Maria! – exclamou Manuel, levantando-se de imediato.– Não pode ser!
– Ó senhor,dá-me licença que veja – gritou com ele uma mulher que pretendia ver a cerimónia.
Uma súbita raivaapoderou-se dele e, alguns passos depois, estava junto de Maria, ouvindo o que dizia aos gritos:
- Filho querido, muitos parabéns! A tua noiva é linda, fazem um lindo casal.
As lágrimas jorravam pelo seu bem talhado rosto e a emoção contagiou alguns dos presentes.
– Mas o que se passará? Quem é aquela mulher? – eramestas as interrogações que surgiam.
O povo sobressaltou-se:
– Agora é que está interessante! Isto vai aquecer!
Os comentários eram díspares mas convergiam num ponto: o casamento não era mesmo normal.Então, os ecrãs no exterior emitiram imagens do Padre João a barrar a enigmática personagem.
– Sai da frente! Por favor, Maria, estás a deitar tudo a perder!Estou farto das tuas engenhocas! Lembra-te do que falámos, por favor – suplicava-lhe João, de braços abertos, impedindo-a que andasse.
– Mas o que se passa aqui? Disse Manuel, surgindo entre eles.
- Rápido, Albertina – alarmou-se Martim.– Destruíram o casamento.
– Calma, amor – respondeu-lhe ela.
– Quem é a senhora,na realidade? – perguntou-lhe Albertina,entrepondo-se entre ela e Manuel.
– Eu sou a mãe de Luís – respondeu Maria.
– Por favor, esta é uma data muito importante para meu genro e minha filha.Não brinque connosco.
– Ela está a dizer a verdade – meteu-se Manuel.
– Não, não está – barafustou João.
Maria flechou-o com os seus grandes olhos azuis.
– Não está?Então não fui ao hospital? - comentou Manuel, confuso.
Albertina foi rapidamente acercada pelo Padre que presidia àcerimónia e por Martim.
– Quem é a senhora?
- Diz que é a mãe de Luís, amor – informou Albertina.
Martim ordenou aos técnicos que havia contratado para o evento que desligassem imediatamente todos os ecrãs.
– Ela parece-se contigo, amor – comentou Diana, abraçando-se A um Luís atónito.
– Depois de tantos anos?
– Se calhar teve razões fortes para isso, não achas?
Luís olhou para Diana.
– Devem ter sido mesmo fortes… – murmurou.
– Que sentes agora, amor? – perguntou-lhe Diana.
- Não sinto nada, o que é uma coisa estranha.
– Não lhe queres falar?
– Achas que devo?
– Não só deves como será inevitável.
– Vens comigo?
– Claro, amor! – respondeu-lhe Diana, dando-lhe o braço.
Enquanto Luís e sua agora esposa desciam do altar, Albertina tentava por ordem na confusão.Subitamente, veio-lhe à mente a conversa que havia tido no dia da sua reconciliação. Martim havia dito que tinha tido uma relação com uma mulhercasada com um pescador e, agora, aparecia-lhe uma mulher com essas características…Ficou, naturalmente, um pouco intrigada.
Olhou para Martim e perguntou-lhe:
– Não é esta, pois não?
– Não percebi, amor – retrucou Martim.
– Maria, mulher de um pescador…
- Não, querida.Não é… – respondeu-lhe ele, pegando na mão dela.
Albertina suspirou de alívio.
– Esta rameira é a mãe de Luís? – perguntou Martim.
- Infelizmente é – afirmou Manuel.
– E quem é o pai?
Manuel olhou para João, que não se moveu. E respondeu:
– O pai, bem… o pai,sou eu!
Luís ouviu a confissão.
– Como, você?
– Sim, rapaz – declarou Manuel, baixando os olhos.
– Não, não é – intrometeu-se Maria.
– Isto está giro – disse Martim.
– O pai está ali!
Todas as cabeças se voltaram para João. Esta foi a última cena que o povo viu.Os ecrãs, por fim, foram desligados.
– Liguem essa merda! Não podem fazer-nos isso! – gritaram todos.
– Eles são irmãos - declarou Maria, olhando para o Padre cabisbaixo.
Como pôde fazer-me isso,Padre? Eu perguntei-lhe aquando da nossa conversa - disse-lhe Luís, aproximando-se dele.
João levantou os olhos e declarou:
- Existem coisas na vida das quais só damos conta muito mais tarde. Depois, bem…, depois, é tarde demais – afirmou, baixando de novo os olhos.
Luís ficou olhando-o, pensativo.
– Não lhe partes o focinho? – perguntou Manuel.– Este filho da puta…
- Olhe a casa do Senhor! – insurgiu-se o padre local.
– Vai para o caralho – retrucou Manuel.
– Ai jesus – suspirou o sacristão, colocando as mãos nos ouvidos.
– Não partes tu, parto eu!
Luís meteu-se entre Manuel e João.
– Você não me é nada.Por favor, ponha-se lá fora – gritou-lhe Luís.
– É teu tio, filho – disse-lhe baixinho Martim, tocando-lhe nas calças.
– Pronto, é meu tio – concordou Luís–, mas mesmo assim quero que se afaste.
– Por favor, faça o que ele lhe diz –pediu Albertina.
– Tudo bem, eu vou – respondeu Manuel – mas nós vamos ter uma conversazinha –concluiu, apontando na direção de João.
– Por favor, dentro de uns minutos, quero ter uma conversa com esta senhora - afirmou Luís.
– Acho que fazes bem – concordou Diana.
– Venha,Padre – disse Albertina a João.
– Desculpe-mepor lhe dizer isto mas o senhor foi um verdadeiro canalha.
João não emitia qualquer som. Conduzido por Albertina até à porta, limitou-se a limpar as lágrimas.
– Olha, é ele!
A multidão reconheceu o causador da barafunda.
– Vamo-nos a ele!
Enquanto alguns queriam fazer justiça por suas próprias mãos, a maioria não deixava.
– Todos nós erramos - era o pensamento difundido.
Testemunha atenta do casamento, Marco era mais um na multidão. Antes que algum assistente mais afoito fosse ao encontro do Padre João, Marco antecipou-se e, chegando junto dele, disse-lhe:
- Venha,Padre.Eu levo-o daqui para fora.
João esboçou um sorriso.
– Eles estão furiosos – comentou João.
– Isto é só teatro, padre – declarou Marco, guiando-o por entre a multidão que os apertava.
– És o anticristo! Vai lavar as escadas do inferno, bandido!
– Vá, saiam da frente – gritava-lhes Marco, abrindo caminho.
- Obrigado, jovem – disse o Padre.
Depois de algumas cuspidelas e insultos, Marco guiou-o até ao seu carro.
– Diga-me uma coisa - perguntou-lhe –, foi por amor?
João olhou-o. Esboçou um sorriso e, colocando a mão no ombro de Marco, respondeu-lhe:
- Existem amores impossíveis, meu caro. O meu era um desses – acrescentou.
– Porque durou tanto?
– Foi a melhor maneira de me sentir vivo – declarou João.– Fica com deus, amigo – despediu-se João, entrando no carro e arrancando velozmente.
Entretanto, no interior da igreja e com as coisas bem mais calmas, a conversa adiada 22 anos desenrolou-se na sacristia, por sugestão de Albertina e com a autorização do Padre residente.Luís fez questão que Diana assistisse.
XXXI.
João estacionou o carro no parque defronteà grande sala de convívio enquanto os rapazes gritavam o seu nome.
– Como os enfrentarei? – murmurou, a caminho do outeiro.
Urgente era pensar o que fazer daquele dia em diante. Mil e uma coisas lhe vieram à mente. Alguns pingos de chuva começavam acair, o que não o impediu de prosseguir o seu caminho.Quando chegou ao topo, sentou-se na pedra habitual e acendeu um cigarro.
– Tantas noites sonhei aqui contigo… – suspirou, chorando continuamente. – O que será de nós agora? – acrescentou. – Desculpa, amor.Se o fiz, fi-lo por amor.
As espaçadas gotas de chuva deram lugar a um valente aguaceiro mas João permaneceu firme. Entre lamentos, remorsos e algumas certezas, passaram-se algumas horas. O céu fechou-se como se estivesse de costas voltadas para ele. Contudo, o Padre não arredou pé dali.Precisava de adquirir forças para regressar e enfrentar de novo as gentes, mas sobretudo os seus rapazes. Olhou para o céu encoberto e exclamou:
- Meu Deus,quanto fiz eu sofrer Luís…, mas não foi com esse intuito...
– Eu sei,Padre João – ouviu-se.
João sobressaltou-se. Quando se levantou da pedra, Luís olhava-o.
– Como sabias?
– Existem muitas coisas que você desconhecia – declarou Luís, aproximando-se.– Sempre tive curiosidade de saber como era a vista a partir daqui – disse-lhe, colocando-se ao seu lado e olhando o horizonte.
João não conseguia articular palavra, limitando-se aobservar Luís.
– Pese embora o mau tempo, a paisagem é muito bonita, sim senhor! – comentou.– Venha – disse-lhe Luís.
– Para onde?
Luís olhou-o bem nos olhos.
– Para casa.Você está todo molhado.
– Não tens raiva de mim?
Luís não lhe respondeu.
– Espera!Não tens raiva?
– Não,Padre – respondeu-lhe por fim.
– Mas eu fui verdadeiramente um porcaria – declarou João.
– Não será a mim que tem de pedir perdão – disse-lhe Luís.
– Como?
– É como ouviu. – A minha mãe foi a mais prejudicada nesta história – afirmou Luís.– Agora vamos – pediu-lhe, tocando-lhe no ombro.
Luís ficou a saber pela boca da sua mãe como tudo se havia passado e porquerazão tudo fora feito da forma como foi. Maria contou-lhe que levava uma vida desgraçada. Manuel, nos primeiros anos, eram um doce de homem mas, a maldita bebida tudo devastou. A destruição foi tanta que nunca mais quis saber da sua família, nem sequer quando esta mais precisou.O paide Maria massacrava-se constantemente pelo dia em que concordou com o enlace. Lembrava-se das inúmeras vezes que chegavam aos seus ouvidos os maus-tratos de Manuel à sua única filha.
– Vamos embora daqui – dizia-lhe ele variadas vezes,à porta de sua casa.
– Não, não vou – respondia-lhe sempre Maria.– Eu gosto do meu marido – afirmava, para desgosto dos seus pais.
E era verdade.Naquela época, Maria ainda amava Manuel. Ainda tinha a esperança que ele mudasse.
– Só preciso de ser mais atenciosa para com ele.Talvez ele se modifique – pensava ela, a respeito do relacionamento.
Mas embora Maria se esforçasse para ser ainda mais delicada, recebia em troca porrada e mais porrada. Nessa fase da sua vida e com o abandono dos seus pais, João veio dar-lhe a esperança perdida. Regressado do Seminário, recém-ordenado, vinha com o seu coração cheio de fé e de uma devastadora vontade de conquistar almas para Deus.Todavia, ele e Manuel não se davam bem. Coisa antiga, verificou Maria, tempos depois.
João, com o seu jeito brando, com uma palavra de conforto sempre na ponta da língua, pouco a pouco,fez com que Maria começasse a olhar para ele, não como cunhado, não como padre, mas como homem em toda a sua amplitude. À data, foi-lhe difícil aceitar que estava a ficar apaixonada,mas tornou-se incontornável o que o seu coração lhe dizia. Assim sendo e como Manuel foi ficando cada vez mais para trás, Maria, perdidamente absorvida pelo jeito de João, desesperava nos dias em que ele não aparecia. Quanto a ele, não demorou muito para começar a sentir o mesmo. Maria enchia-o de volúpia, facto que o atormentou por bom tempo. Mas o dia tão desejado, mesmo que tacitamente, acabou por chegarquando, por motivo de mais uma altercação, o chamaram a casa de seu irmão. Maria, ainda ensanguentada, lançou-se nos seus braços dizendo-lhe que o amava. Para João, foi tão bom como perturbador. Não haviam passado ainda 3 anos desde a sua ordenação, e já se via envolvido pelo amor de uma mulher. Mas o pior de tudo era que também estava perdidamente apaixonado, louco por ela. Pensou em renunciar, pensou em sair da ilha, todavia não se via longe de Maria.
– Que fazemos agora – era a pergunta que emergia, quando se encontravam às escondidas.
Com a relação num impasse por motivos óbvios, foram adiando a revelação. Depois surgiu a gravidez, para complicar o que já por si era complexo.
– Não, não pode ser meu – lamentava-se João quando ouviu a notícia.
– Éo nosso amor – disse-lhe nessa altura Maria.– Este bebé pode ser a chave de tudo – aditou.
– Eu não posso!O que vão pensar de mim?
João temia sobretudo a justiça popular.
– Eu sou muito amado na ilha, eles matam-me!
Era verdade.Desde que João havia sido convidado pelo Episcopado para substituir o velho padre da Casa do Gaiato, o seu nome era badalado por todos, sendo até frequentesas suas idas a televisão regional. Com uma argumentação persuasiva, João fez com que Maria concordasse em tornar o amor de ambos num amor secreto. Contudo, com o seu coração entregue a outro homem, era natural que se sentisse amais na cama, junto de Manuel. Não era viável entregar-se aos caprichos de um homem que não amava. Todavia, a pedido de João, sujeitou-se a ser inúmeras vezes possuída por Manuel.
Mas a semente que germinava em seu ventre tinha uma matriz, e essa, ninguém podia mudar. A criança que crescia alheia aosofrimento de sua mãe, era fruto de um grande amor. Mas há sempre um dia em que tudo atinge os limites, e Maria atingiu os seus. Nessa altura, entendeu por bem fugir de casa. Tudo preparou ao detalhe, mas não contou com a prematura chegada de Manuel.
Luís, depois de descer do cabeço e de esperar que João trocasse de roupa, entendeu por bem perguntar:
- Isto tudo que acabou de ouvir, é verdade?
Foi só mais tarde, já no gabinete de João, queLuís obteve a resposta.
– É tudo verdade, filho. Desculpa por te chamar assim – penitenciou-se João.
– Então, quer-se dizer que eu sou fruto de um amor impossível?
– Bem, não será bem impossível mas, digamos que era muito complicado – retrucou João, nervosamente.– Se não fosse a minha covardia, se calhar estávamos juntos, nunca se sabe… – acrescentou.
– E porque fez com que Manuel acreditasse que era o pai? Não foi vil em demasia?
– Foi a maneira mais fácil de resolver as coisas – respondeu-lhe João.
Luís não conseguia ter raiva do padre. Quando o olhava, algo nele lhe transmitia serenidade. Então, entendeu dizer-lhe:
- Olhe, padre João, não pense que eu tenho alguma espécie de sentimento ruim relativamente a si. Não foi bonito, muito menos agradável, contudo, se a minha vida não tivesse passado por tudo isso, eu não conhecia agora Diana. O que posso dizer-lhe é que, se ainda sente algo por minha mãe, acho que está bem a tempo de corrigir. Faça como entender – disse-lhe Luís, despedindo-se.
Nessa mesma noite, João recebeu uma chamada do Bispo da Diocese. Entre palavras de solidariedade, retiro estratégico,tudo lhe foi aconselhado.
Manuel passou a noite a beber.Não era nada que não fosse normal mas, desta vez,fazia-o com uma finalidade. Exactamente na altura em que estava a tentar erguer-se, colocar a cabeça fora de água e, talvez, acabar com uma vida de copos, recebe a notícia de que o seu irmão o havia traído durante longos anos. Logo na altura em que começava a olhar para o moço com olhos de ver, tentando compreender o seu comportamento e a sua revolta, é que constata que, afinal, ele não é filho mas sim sobrinho. Vinha pensando em pedir-lhe desculpas, mas foi tudo deitado por terra. Não tinha sido justo com ele desde o início. Um bebé não tem de pagar pelo mundo conflituoso dos adultos,Mas havia sido exactamente isso que fizera com Luís, deixando a criança sem um pouco de amor que fosse. O que não desconfiava era que havia entregado o filho ao próprio pai.
XXXII.
Arrastou-se lentamente sobre a rocha e olhou para baixo. A espuma das ondas avistava-se no escuro da noite. Tentou pôr-se de pé, mas só conseguiu agachar-se. À sua frente, via-se as luzes do pico.
O taxista, quando o deixaranaquele local, ainda lhe havia perguntado:
- Sabe para onde vai?
– Sei, sim – respondeu-lhe –, vou para o inferno!
Manuel escolheu a ponta da espalamaca, junto a um desativado forte militar. As escarpas eram assustadoras, mas o álcool em suas veias tirou-lhe qualquer medo.
– Ó diabo! Ouves-me? Aqui vou eu!
Manuel lançou-sepenhasco abaixo. Cem metros, foi a distância que percorreu em queda livre até àmorte.
Foi encontrado no dia seguinte, entre as rochas, por um dos muitos apanhadores de lapas.
XXXIII.
Depois de uma noite de amor com a minha mulher e de lhe dizer o quão ela era importante para mim, ambos concordámos em visitar os pais de Diana.
A Minha mãe tinha pernoitado na Ribeirinha, pois a minha sogra fez questão de que assim fosse.Ainda não completamente refeita da grande emoção e depois de lhe ter dito que a amava como se ela tivesse estado sempre ao meu lado, adormeceu por fim.
Ora, foi o dia mais importante de minha vida. Num só dia, casei-me com a mulher mais linda do mundo e, para me alegrar mais ainda, conheci os meus pais. Isto, não obstante as primeiras emoções,das quais, ao fim e ao cabo,até acabei por gostar, assemelhando-se toda a sucessão de acontecimentosa um dos inúmeros romance que já havia lido.
Mas as surpresas ainda não haviam acabado. Quando lá chegámos, encontrei o Padre João e a minha mãe, ambos à conversa com os meus sobros. O rosto dePadre João estava sorridente e os olhos grandes de minha mãe brilhavam de felicidade.
– Será que o meu romance vai acabar bem? – murmurei.
– Que disseste, amor? – perguntou-me Diana, de mão na minha.
Alegremente na conversa, junto do lado da criança e do cisne, não deram pela nossa aproximação.
– Olha, amor, fizeram as pazes!
Quando observei o Padre João a beijar a minha mãe, de súbito, as lágrimas brotaram no meu rosto.
- Filho querido – exclamou minha mãe–, porque estás a chorar?
As palavras não se soltavam, limitei-me a deixar escorrer as lágrimas. Diana deitou a cabeça no meuombro e chorou comigo. Então, os dois casais juntaram-se a nós formando uma roda a nossa volta. Padre João foi o único que conseguiufalar, os restantes limitavam-se a verter lágrimas :
- Filho, finalmente e graças ao teu benévolo coração, cheio de compaixão pelo próximo e certo de que me perdoaste,anuncio-te que eu e a tua mãe vamos por fim concretizar um sonho. É na frente de todos vós que pergunto:“meu amor, mulher da minha vida, aceitas casar comigo?”
- Claro que sim – respondeu-lhe minha mãe.
Fim.